quarta-feira, 31 de outubro de 2012


Na paz dos anjos

E dito isto o anjo desce à Terra e pergunta-me porque o chamei.
 - Quero ser feliz. Quero ter paz.
Equilibrando-se a custo no peitoril da varanda, o anjo estende-me uma asa.
 - Para onde me levas? – Pergunto.
 - Para onde serás feliz.
 - Mas eu quero ser feliz aqui.
Abanado pela resposta, o anjo recua a asa para se reequilibrar ou então para reconsiderar o convite.
 - Como queres ser feliz neste mundo, quando foi este mundo que te trouxe a infelicidade e te fez chamar por mim?
 - Não sei, diz-me tu. Os génios da lâmpada, ao menos, não fazem perguntas. Concedem desejos.
 - Pois não fazem. Mas no último desejo voltam a tirar tudo e é apenas isso que acontece no teu mundo. Vives e morres para poder de novo tentar, perpetuando o ciclo da impossibilidade. O teu génio vende ilusões; ilusões que não resistem ao tempo; outra ilusão. Pedes o impossível e ele oferece-te o que não existe. Faz-te correr de slogan em slogan até ao dia em que descobres o engano. O que ele te oferece são fumos coloridos que só servem para esconder a verdade, essa sim, a tua realidade. É isso que queres? Continuar a tentar?
 - Eu só quero ser feliz.
Este corpo de luz e asas brilhantes a esconderem o Sol por trás, salta da varanda para o chão da sala para me abraçar.
 - E os outros? Os outros tal como tu, nunca estiveram aqui. Esperam que despertes, para também eles poderem despertar.
 - Tens a certeza?
 - Para ter a certeza, era preciso que antes existissem dúvidas.
Muito fixe esta resposta. Tão fixe que me deixei ir. 


DuArte

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Palavras Versadas


poema do filho

quero dizer-te como é doce o amor
porque há palavras que rangem como um degrau
e se adivinham no peito mesmo antes de as pisarmos

quero dar-te a ventura de um signo ascendente
guardando apenas a contemplação velada da descoberta
quando nas tuas ondas houver terra nova

onde cairão os meus dobrões de ouro
ao desabar o entardecer da maré no galeão
com a vida sentada à proa, aguardando o naufrágio?

quero acreditar que te darei ainda um derradeiro beijo
em apneia, quero acreditar seres tu num mergulho
e que, doravante, serei eu o teu tesouro
ocultando o meu orgulho no brilho coralífero


Renato Filipe Cardoso

domingo, 28 de outubro de 2012

Provocatio


SEXO?

E foi assim que ele lhe disse que tinha uma namorada, que até gostava dela, mas que tinha saudades do sexo que faziam juntos e que era boa ideia voltarem a encontrar-se...


Carmo Miranda Machado

sábado, 27 de outubro de 2012

Crónica Benzodiazepina


Sem título

Tenho um problema com os títulos. Um problema abrangente porque inclui deste títulos académicos a títulos de patentes militares e, o que mais me desagrada, os títulos a dar aos textos que escrevo. Se professores, doutores, brigadeiros e coronéis não me chateiam nada, já o mesmo não posso dizer do vazio que se instala no meu cérebro cada vez que preciso de nomear um texto. Logo eu, que sou capaz de comprar um livro só porque o nome me seduz. O pior é que em inglês me surge imediatamente o título perfeito. São títulos na língua de Shakespeare, é certo, mas devem ler-se com acento americano, claro. Anda uma criatura há anos a defender as culturas lusófonas e a lusofonia para depois ser assim, despudoradamente, traída por títulos pouco cooperantes.


Missanga

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

PALAVRA EXPERIMENTAL (I)


não sejas criança! correr para quê, se podes perceber?

desatar a correr pelo poema fora sem tentar perceber onde começa e onde termina cada estrofe ou qual é a hora de terminar o que não tem meio nem conteúdo ou final feliz em que as vizinhas choram no fim do casamento agarradas ao avental de trazer por casa de passe “éle-xis cento e vinte e três” que serve para a carris e para todas as carruagens da "cê-pê" se não houver metropolitano serve também para o doutor de toga e cambão e para o matemático aplicado e para o aldrabão encartado ou mesmo para um retornado ou um senhor enigmático ou um imigrante ilegal (vindo das índias ou das áfricas) negro ou mulato ou chinês ou jogador de futebol ou um qualquer artista francês ou uma troika instalada de urinol com exibições horárias quotidianas no parque eduardo sétimo o inglês à espera da visita da catherine de novo que está agora no estrangeiro a negociar submersíveis e só volta para mamar à conta do contribuinte trabalhador que não passa de um sem nada desregrado com mulher de esquina e prole de ranhosos que se mata a trabalhar para comprar um "tê-zero" com uma letra de câmbio sacada ao banco de sangue frio no cemitério dos prazeres onde morre acanhado por não se poder esticar senão mete os pés na tumba do vizinho ou as visitas do dia de finados passam por uma vida de morte a pisar-lhe as extremidades das ossadas tibio-társicas quando vão levar flores aos infiéis defuntos que se reúnem à noite em amena cavaqueira em redor de um fogo fátuo onde assam chouriços caseiros e bebem vinho e cantam músicas do padre borga e põem a mão na mão do senhor e na mão uns dos outros e noutros sítios assinalados como proibidos pelos desígnios do tal senhor segundo o qual só devem ser usados depois de comer uma maçã pecaminosa e de a serpente ter fornecido os respectivos preservativos e toalhas com que se protegerem e limparem de pecados menos originais e assim poderem chegar à altura do céu quando este desce à cota de terreno mais baixa para ficar na horizontal de estar com ganas de fazer amor com estrelas decadentes toda a noite a ver nascer a lua e o sol e a fazer um poema que termina com o amor feito ad hoc no clímax quando este andava perdido num mar de rimas e de estrofes sem saber como e para onde redigir sem parar até ao fim do fundo de um mundo intestino lá no limiar da realidade virtual em que se avista a linha da meta-poesia onde finalmente se solta uma criança radioactiva dentro de nós e só nos apetece desatar a correr pela humidade do poema afora sem tentar perceber...


Joshua Magellan

quinta-feira, 25 de outubro de 2012


Confundir o amor

Por vezes as pessoas só necessitam de se sentir amadas, de sentir que existe alguém sempre ali a cuidar delas. E quando se sentem cuidadas confundem isso com amor. Não amam ninguém, amam apenas o que essa pessoa lhes proporciona. Amam-se a si mesmas e amam sentirem-se amadas. E andam nisto uma vida inteira, a trocar as voltas aos amores, a confundir sentimentos dispersos. E a culpa nunca é delas. A culpa é toda do amor, do amor que se deixa confundir assim.


Joana Santos

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

  
Esquadros de por-do-sol

Quando me disse a novidade fomos juntos provar o sorvete, pedi uma bola de brownie, você quis a de frutas vermelhas. Sentamos no banco e vimos o nascer do sol, após longo tempo conversando sobre sorvetes, bolos, chicletes e sonoridades. O dia começou calmo, as folhas inertes e a brisa ecoando o infinito. Você perguntou:
- Não acha que a cidade está silenciosa?
- Sim, uma sensação de calma.
- Não seria de paz?
- Não, de calma!
- Calma não é um estado?
- Só estou sentindo, não sei.
- O sorvete estava gostoso, e agora, essa brisa morna.
- Sim.
- Você disse que não gostava de doce.
- Às vezes tenho desejos, de alguns, são poucos, os menos açucarados.
- Escutou a música daquele carro com o som alto?
- Péssima.
- Ele diminuiu a velocidade quando passou por você.
- Deixa p'ra lá!
- Sabe, cidade ocupa anseios, são todas iguais por dentro.
- Por dentro?!
- Quero dizer que, por mais organizada que sejam, são cidades sempre em desenvolvimento, assim o querem, todas elas.
- Você se expressa de uma maneira que não entendo.
- Como?
- Não entendo algumas coisas que você fala!
- Deixa p'ra lá então!
- Mas eu quero entender.
- Deixa.
- Deixa o quê?
- Esquece.
- Como?
- Olhe bem, está vendo aquele quadro?
- Qual?
- À sua frente, defronte, em frente, ao longe.
...
- É o infinito!


Manuela Barreto (Brasil)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Palavras Versadas


dentro de nós

sei que algures dentro de nós existe uma biblioteca
em prateleiras de mel que escorrem para quem amamos
e de dentro das sedas que lambem os livros respiras tu
em eternos sopros de dádiva e saber
em cascos húmidos de humanidade

sei que algures dentro de nós existe uma biblioteca
com livros livres de lombadas e paginação
perto das memórias intemporais do amor
em que se cedem cópulas alquímicas e misteriosas

sei que algures dentro de nós existe uma biblioteca
em que se a cuidas, casa-alma, dita-la para mim
e o graal surge, em forma de beijo
imponente, cristalino, honesto e unicelular


Miguel Barroso


domingo, 21 de outubro de 2012

Provocatio


A Memória

Há momentos e pessoas e lugares que nos marcam para sempre. E há momentos e pessoas e lugares de onde apetece fugir. Penso que é nesta triagem que reside a nossa capacidade de avançar. Como escreve Alçada Baptista, em "O Riso de Deus":

"A gente só deve guardar na memória o essencial, que o resto faz parte do peso do mundo."


Carmo Miranda Machado


sábado, 20 de outubro de 2012

Crónica Benzodiazepina


mer, fo e c...

Não consigo um bom relacionamento com palavrões. Na minha boca uma vulgar e singela  mer  fica grosseira, até parece um desenvergonhado fo ou um avassalador  c que, a meu ver, é o supra sumo da batata de todos os palavrões. Tenho enorme dificuldade  em dizer c até quando estou sozinha, como agora. É que nem o consigo grafar, sai-me diferente do que tenho na cabeça, sinto-o excessivo,uma agressão, uma guerra mundial.
Conheço pessoas que usam e abusam de palavrões e aquilo flui, até com graciosidade como acontece com a Vi, toda a gente acha normal e no fim da conversa ninguém se lembra que ela disse uns valentes. Rio-me muito com isto.  Já em mim, toda a gente repara, aterram uns segundos de silêncio quando digo mer, que é o máximo que digo.  Por mais vontade que tenha de os soltar, parecem tirados a ferros, contra natura até e isso dá nas vistas, incomoda quem ouve e quem diz.
No dia a dia das conversas mundanas os palavrões abundam, mas são murchos, pobres em intenção e sentido, que é como são usados na maior parte das vezes. 
Entre os palavrões mais vulgares, fo é, naturalmente, o menos interessante, e não é por ser grosseiro, mas porque não inspira grande coisa, é um palavrão muito massacrado e gasto de tão usado e sem motivo. Metem-no pelo meio das outras palavras, vá-se lá saber porquê! Isto não é bom para a reputação do fo , porque o seu uso indistinto suja a língua de uns e os ouvidos de outros, pouco mais do que isso. Bem diferente é a sua música quando bem contextualizado: " -que se fo as contas da Zon e da EDP e das Águas e do seguro do carro e raio que os parta".  Ganha logo outra vida!
Já mer, embora corrente marca a sua presença marota e, sem parecer, até diz muito do que se quer dizer sem querer. Mesmo quando aparece ligeira, despercebida e sem maldades, que é o que acontece na maior parte das ocorrências. Todo o povo aprecia palavrões e vice versa, mas o mais acarinhado é mer: do mais novo, ao mais velho, do instruído ou ignorante, rico ou remediado, ninguém lhe escapa.
O mais genuíno de todos os palavrões é c. Nenhuma camuflagem lhe serve. Tenho pena quando as pessoas o utilizam em vão, por exemplo: - "estava p'rali a falar e o c ...",  é desnecessário, cai em saco roto, apesar do rasto que deixa. Um rasto áspero, às vezes amargo!
Quando devidamente utilizado c tem uma força brutal, eu até estremeço quando ouço, fico embaraçada, - ouvi bem? disse mesmo c? é preciso coragem! C nunca é totalmente inócuo. Isso explica bastante do seu poder.
A mim, incomoda-me sempre, mas nem por isso no sentido negativo, é um misto de desagrado e enorme respeito. À entrada do metro dos Restauradores grafitaram umas coisas, entre as quais está isto: "Austeridade o c". É um grito poderoso, é aquilo mesmo e não é outra coisa. Estava a tentar explicar isso lá no trabalho, mas não o consigo reproduzir... Isto explica muito da sua força! 


Iolanda Bárria

sexta-feira, 19 de outubro de 2012


Uníssono

Ele era baixo e troncudo,corpo curvado, não por traumas físicos, mas pelo peso da consciência.

Cabisbaixo, andava com uma maleta colada de adesivos pop-arts, vestia-se de preto, sempre as mesmas roupas, das quais retirava a etiqueta – estas sempre espalhafatosas, como plumas e casacos de pele que se usa na ida ao melhor evento de uma cidade de capital interior. Em momentos introspectivos, acendia o cigarro e observava os desenhos formados pela fumaça. Tão novo, semelhava a um senhor, de ordens gritantes para a sociedade inóspita perante seres melancólicos, quando não pensantes. O som dos carros era-lhe constrangedor, as buzinas lembravam a copa da África, xipalapala, ou o caos que habita cada cidade. Haviam dito que tais jogadores já nasceram fracassados, o que não desdiz o fato de que alguns jogadores despertam tarde.

Pois bem, João, com sua fiel pasta, saiu para um almoço no boteco de seu Jorge, costume sedimentado. Sentou qual o pacato cidadão para beber sua cerveja, acompanhada com um copinho de cachaça e tratou de iniciar a conversa. Todos do boteco conheciam seus dizeres.

Na pasta, levava muitos livros de Manuel de Barros e uma gaita para recitar alguns versos reinventados. Sua voz era suave, semelhava a certa rouquidão nostálgica, seria uma simbiose entre sujeito e objeto musical. Não incomodava, ao tempo que a cachaça entranhava os poros, o falar multiplicava-se de piadas a críticas à maquina social, que ali mesmo o dissolvia. Os companheiros esperavam a hora epifânica, afinal, conversa de boteco só muda de endereço, o que diferencia é a presença de alguns sujeitos.

Nessa hora, João, conhecido como João de Barros, anseia por uma inspiração, uma musa difusa em seus pensamentos, concretizada por alguma transeunte que lhe abra o apetite poético. A mitologia lhe é distante e fluida, recita e sente feito cobra a se movimenta ao som da flauta.

Musas se materializam em botecos, o tímido João de Barros corteja-as através da literatura, do movimento das notas intercaladas entre sopros e versos. Perde a timidez, mas não o existir nostálgico, salpicado de pitadas singelas de humor e gentileza. Não se semelha a um sujeito belo e charmoso que encanta, qual galã de filmes europeus da década de 50, entretanto, sua elegância perpassa os olhos da musa do boteco e a mestria com que efetua o seu labor literário. Os versos tomam a forma de um corpo de mulher a se movimentar por entre acordes da gaita, a moça dança com a leveza de uma gaivota e perfuma o ambiente prenhe de harmonia.

Momento em que os transeuntes curiosos postam-se na entrada para assistir ao espetáculo poético, corpo e alma de signos em simbiose, a mulher que dança, o homem que toca, o poema que vive. Todos respiram o artis ar.


Manuela Barreto (Brasil)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012


O riso e as sombras

O riso cativa-me. Gosto de almas cheias de riso. Gosto de ver o sorriso no olhar das pessoas. A língua inglesa tem uma palavra recente, smeyes (não sei se dicionarizada) que significa sorrir com o olhar. E se o riso me cativa, as sombras fascinam-me. É a eterna dualidade que sempre me seduziu. A luz e a sombra, o bem e o mal. A nossa essência. Suponho que existem pessoas genuinamente más e pessoas verdadeiramente boas. O comum dos mortais, onde me incluo, parece-me ser ambas as coisas.


Missanga


quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Enganos

Enganos não merecem resposta, a não ser que os queiramos manter. A única aprendizagem que podemos ter de um engano é a de que estávamos enganados. As únicas consequências que podem advir de um engano provêm sempre da convicção de que não estávamos enganados.
Somos capazes de ficar tristes porque estamos enganados, irritados com alguém que se enganou, somos capazes de culpar um equívoco sem nunca atender ao facto, só por si absolvedor, de que é um engano, não é para levar sério.
Porque raios haveríamos de levar a sério um engano? 


DuArte

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Palavras Versadas


A sabedoria dos amantes

Todos os amantes do mundo sabem tudo sem saberem
sabem que podem ler juntos os silêncios de ambos
sabem o sabor de saber estar juntos só por saber
inventar prazeres onde o mundo esconde lugares
lamber palavras ditas e ouvidas em silêncio
mastigar gemidos por entre os lábios
com as bocas coladas em outras bocas presas
acender nas noites venturosas manhãs
no lugar exacto onde escondem os afectos
descobrir secretos (amares) onde encerram delícias
dentro de uma gaveta de fundo azul perdido
o céu numa secretária e apenas um lugar escondido
onde as flores geram frutos ao sol do sentir

lá onde o prazer vive como corpo (i)material
não existe pecado nem vergonha na natureza animal.


Joshua Magellan

domingo, 14 de outubro de 2012

Provocatio


No silêncio do vosso ventre

Uma ferrugem de silêncio empolou o bafo etílico da criança. A mãe grevista lia revistas azul-fininho. A irmã que berrava muito foi sufocada pelo pénis do pai.
A criança brinca com as fezes do irmão e sonha traficar papel higiénico no hospital psiquiátrico mais conceituado do mundo.

Bendito seja o ventre do vosso deus. 


Miguel Barroso


sábado, 13 de outubro de 2012

Crónica Benzodiazepina


As mulheres e os saldos

 - Estou com vontade de escrever sobre a possibilidade de certas mulheres poderem ser conquistadas em saldo. Refiro-me aos relacionamentos, engates, romances, coisas que podem até resultar em casamento. Oportunidades que surgem do nada, só possíveis porque pequenos ou grandes defeitos baixam os custos da abordagem.
 - Queres dar-me um exemplo?
 - Eu sei que este texto não vai favorecer a minha imagem, mas tens de reconhecer que um pêlo numa mama é coisa difícil de engolir.
 - Que horror!
 - Vês! E tu és mulher. Imagina que sou confrontado com uma mama e um pêlo espetado. A maior parte dos homens vê aquilo como um logro, mas eu quando olho para cima e vejo um rosto belo, rapidamente percebo. Eu, que sou feio, só estou com ela porque tem um pêlo na mama. Aceito e compro. Aquela mulher tem uma fragilidade, e isso fez baixar as suas expectativas para um nível em que também sou aceitável. De outra forma nunca olharia para mim.
Uma mulher com um rosto assim, pertence à liga de elite. Eu pertenço a um campeonato distrital. Aquele pêlo é uma bênção.
 - Estás a enterrar-te tanto. Mas ainda não percebi. Se ela tem um pêlo na mama, o preço está de acordo com o que oferece. Não é saldo, muito menos bom negócio.
 - É... Claro que se olhares para o todo, o que dizes é verdade. Porém a situação piora mais, se valorizas umas mamas perfeitas. Mas se a tua chávena de chá são as caras lindas, esta é uma oportunidade única de um trolha namorar uma Grace Kelly. Neste caso é um pêlo grosso de tanto ser cortado, coisa horrível, mas também podia ser apenas uma fragilidade psicológica, ou o tique nervoso de cuspir na calçada. Não faltam defeitos de fábrica. Quanto maior é o defeito, maior é o desconto.
 - Devias ter vergonha!
 - Limito-me a ser pragmático. Há homens incrédulos com a sorte, quando deviam era estar encolhidos à espera do reverso da moeda. Se estranharem, de tão felizardos, duvidem! Não tarda elas vão começar a fazer ruídos estranhos com a garganta, ou...
O homem está muito bem sentado na carrinha, a ver a tal mulher tirar a camisola, a desabotoar a camisa. Já saliva quando ela descobre os seios lindos de morrer. Grandes mas firmes. Nem uma carta de poker conseguias segurar na quebra por baixo das mamas. Uma visão dos céus.
 - Silicone.
 - Nada disso! Tudo natural. Alimento para a alma. O pior é quando mais tarde ela despe as calças, as nádegas quase desaparecem e fazem covinhas. Nádegas pequenas e com covinhas...
 - Um cu de homem, queres dizer.
 - Olha que há quem se magoe num tombo destes.
 - Por outro lado, se esse homem for um recalcado, pode ter uma agradável surpresa. Um cu masculino, mas ainda assim socialmente aceite. É tudo tão relativo. Num só corpo tens dois saldos. Um para as mamas divinas, no caso de seres straight; outro para o corpo andrógino, no caso de seres diferente.
 - Começas a ver a minha ideia?! Essas mulheres são como múltiplas no totobola. Oportunidades raras. Quando ouço uma mulher dizer mais palavrões que um papagaio, levanto logo as orelhas. As palavras obscenas são como os slogans da rádio. O cabelo oleoso. Uma carteira cheia de anti-depressivos. A toxicodependência, então, é uma mina de diamantes.
 - A mim parecem minas de problemas.
 - Que nada! Precisas de ter faro. Encontrar o lado mais positivo que o defeito desvaloriza, e fazer as contas a ver se merece o investimento. Estas mulheres são verdadeiros achados. Uma mulher fragilizada, é uma mulher carente. É como a bolsa. Está em queda. Licita como podes. Se não podes, licita na mesma.
 - Isso é vampirismo.
 - É. Vampirismo de trazer por casa. Está na moda. Elas dão o que têm, descontando o que não podem. Eles fazem igual. A empatia vê-se nestes pormenores. É como o amor, mas sem ser de marca. Uma pechincha.


DuArte

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A CAGADA DE BAIXO - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (V)


A CAGADA DE BAIXO

V

Comi e bebi com os vizinhos. A franqueza e a partilha da comida é, ainda hoje, um dos pontos fortes das gentes da Beira Baixa. E assim se viviam as tardes. Bebíamos e ríamos cúmplices. Contávamos estórias, voávamos pelo tempo passado cientes do grão na asa. “Coma ao menos uma fatia de melão e beba um copo de vinho! Olhe que está fresquinho!”, insistia o Sousa. E rematava jocosamente, para me animar: “Olhe que este vinho é caseiro, é só sumo de uva; não só dá saúde, como ainda o faz esquecer as merdas todas”. Eu aceitava as ofertas com um sorriso e um bem-haja; a Cecília deitava-me os olhos como se quisesse também uma fatia; o garoto rosnava imitando o som de uma máquina de remover areias; o Esteves lambia-se, sorvia os restos, usava o palito hidráulico na remoção dos despojos, limpava a boca ao braço e abocanhava um naco de queijo, o sabão do estômago, como sempre gostava de frisar; depois, bebia mais um “penalti” e repetia o este ritual diariamente; o Cherreque cagava à sombra, apressado, voltava e dirigia um olhar esfaimado aos presentes, ávido de uma qualquer vitualha.

Foi uma alegre semana de férias, apesar de todas as merdas, o meu mundo viveu ali todo inteiro durante aqueles dias. Não me preocupei com nada, não vi notícias, não me liguei à internete, não fumei tabaco. Nada de especial me teria acontecido se não tivesse sentado em cima da merda do cão, o que não me agradou mas logo me passou a arrelia. O Cherreque lambeu-me os dedos dos pés, dirigiu-me um ar de súplica e ficámos amigos – quando me via abanava logo o rabo. E o Sousa subornou-me com um copo de tinto: “Tome lá um copinho, para que não diga que trato mal os comunistas!”.


Joshua Magellan

quinta-feira, 11 de outubro de 2012


"The Wedding Dress" 

Pode a mesma história ser repetida e recontada, vezes e vezes e ser sempre, sempre diferente? 

“The Wedding Dress” é, antes de mais, uma promessa. Um compromisso de eternidade que, nas telas,  se cristaliza em instantes de paixão, sedução, prazer, mas também dor, angústia, vazio.
Um ir e vir!
Um ir e não voltar…
Há uma infinidade de momentos e instantes que conhecemos sobretudo pelo que nos é contado pelas muitas mulheres que habitam as telas, e pelos despojos que vão ficando, de cada instante, cada promessa!

A mesma história. Sempre, sempre, histórias diferentes!


Iolanda Bárria

quarta-feira, 10 de outubro de 2012


Promessa
 
"Amo-te por tudo o que partilhamos e já te amo, por antecipação, por tudo o que ainda temos para viver."

Nicholas Sparks


Promete-me uma coisa: se um dia não conseguirmos ser imbatíveis e nos deixarmos vencer pelo tempo ou pela distância, promete-me que nunca vais deixar que os músculos do rosto se retraiam, que nunca irás deixar apagar o brilho que trazes no olhar e que nunca baixarás os braços. Promete-me que tentas.

(...) Eu tinha tanto para te dizer!


Joana Santos


terça-feira, 9 de outubro de 2012

Palavras Versadas


DIANTE DO MUNDO

diante do mundo,
ele exclui a fuga possível, a numeração
das palavras
como soma da simplicidade. é impossível
recordar
quando se ouve outra música.
(a distância é uma garrafa que tenho
na barriga).
diante do mundo, ele procura o silêncio
dentro da legibilidade.
e os dias são os mesmos,
excepto a sua removabilidade,
excepto a susceptibilidade de podermos tirar
uma coisa e depois outra e outra
e outra.
daqui a pouco, diante do mundo,
direi o indizível
com as palavras que ele me tirou
(e que aparecem na minha garrafa)
e será ainda e sempre
diante do mundo, na nudez que o observa
igualmente.


Sylvia Beirute

domingo, 7 de outubro de 2012

Provocatio


Ventania não traz melancolia  

Antenor cultiva como pode um certo ar triste e melancólico. É o que lhe fica melhor, sem dúvida! Mas não é fácil manter a tristeza e a melancolia, quando se vive num local assim tão ventoso.
Antenor tem de se mudar (e sair daquele vendaval). 


Iolanda Bárria

sábado, 6 de outubro de 2012

Crónica Benzodiazepina


A banda sonora do amor

Na década de 90 não havia vídeo de casamento digno desse nome que não incluísse na sua banda sonora uma música do Kenny G. Nunca cheguei a perceber se era sempre a mesma musiquinha ou se eram várias, padecendo os meus ouvidos de alguma espécie de inaptidão crónica para as distinguir. Os meus ouvidos até nem são snobs ou ecléticos. São uns ouvidos que se conformam em ouvir rock, salsa e kuduro só porque sabem que o corpito gosta e reage logo. Fossem eles ditadores e só escolheriam jazz, música clássica, violino. Não são. Vivemos numa alegre democracia. Voltando ao Kenny G., que me parece estar para a música como o Nicholas Sparks está para a literatura, não sei se ainda é rei e senhor dos agora DVD de bodas. Nesta fase, não só já não assisto a casamentos a toda a hora, como também já aprendi a arte de escapar airosamente ao visionamento dos respectivos vídeos. Tenho assistido a divórcios. A sua banda sonora é, contudo, muito diferente. Ainda assim, e passados largos anos, sempre que o meu aparelho auditivo capta as notas da dita música – ou músicas (esta dúvida ficará comigo para sempre), sou imediatamente remetida para imagens de noivos e noivas sem rosto, muito fofinhos e prestes a embarcar no primeiro avião com destino à República Dominicana.
Grande cabra, dirá o leitor que teve o Kenny G. como banda sonora ou aquele que foi de lua-de-mel para o referido destino. Muito pior dirá aquele que fez o pleno.


Missanga


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A CAGADA DE BAIXO - BLOGONOVELA EM CINCO EPISÓDIOS (IV)


A CAGADA DE BAIXO

IV

Passei uma semana à sombra dos riscos do pano do Sousa e do Esteves. Foi uma semana em cheio. Aprendi muito: a salsa tem de ser capada; o melhor vinagre é o de vinho tinto; no Sporting falta “humidade” aos jogadores; o genro do Jesus, o do Benfica, vai ao mesmo barbeiro que o Tó Esteves; o Pinto da Costa é que havia de ser o primeiro-ministro – com ele ganhávamos tudo e não se pagava nada ao fisco; o tinto da Pampilhosa é dos melhores tintos que se bebe, entre a Sertâ e Coimbra; a loiça deve ser esfregada com areia antes, para não gastar tanto sabão; o Nodi é bombeiro; a filha do vizinho dos Esteves andava metida com um apresentador da tê-vê; o Toni Carreira também é filho da Pampilhosa (de uma aldeia lá perto); O Micael é filho do Tóni; a Sandra é uma cabra, anda sempre a fazer olhinhos ao Tó; o Sousa esteve no funeral do Salazar e quem levava a urna do “Botas” era o Otelo Saraiva de Carvalho; o Marcelo é que deu boas reformas aos Guardas; a professora lá da aldeia é doida – anda metida com o filho dos Samarras, rapaz corpulento e bem parecido sem jeito para as letras mas com muita queda para mulheres; o Hugo tem um aipede que o pai (chofer de um senhor do governo), lhe ofereceu pelo Natal; a rapariga que faz limpeza na Junta da Cagada de Baixo, acumula com algumas horas a sós com o presidente no gabinete deste; e mais um sem-fim de conselhos e informações úteis para quem quer viver neste mundo.

Sic transit gloria mundi e convém que andemos a par das modas. No melhor (como no pior) pano cai a nódoa, seja gordura ou outra porcaria, absorve-se com farinha e lava-se com sabão azul e branco, segundo a Cecília. As nódoas do fato são fáceis de apagar e fazem a alma ficar mais bonita, mais leve.


Joshua Magellan

quinta-feira, 4 de outubro de 2012


Menarquia fúnebre (Uma vida que finda como um aborto ou Mariana perdeu a regra) 

Após sair da delegacia Mariana fez os cálculos, não conseguia pensar nos excedentes, pelo tempo da relação o prejuízo fora em torno de R$ 30.000,00, no mínimo, e não durou tanto assim. Parte do rosto ainda estava deformada, só ela conseguia ver sua transformação e sentia vergonha de si mesma, entregou a chave do carro a um estranho que o avaliou por um preço baixo, não pagaria o investimento que fizera por amor, nem a dívida que foi gerada para a família, resolveu apenas a parte que tirava o sono de todos. Sentia a lente dos fotógrafos e as evitava, talvez por medo do monstro que via em si mesma, ainda que ela tivesse sofrido o exame de corpo delito.
 Ser tocada daquele jeito não a tornava vítima, o mundo a escolhera ré primária, afinal, a neutralidade não existe, é per capita. Mariana era mão aberta, tendia a ajudar as pessoas, uma maldição que carregara na vida adulta, visto que, é uma fase em que o efeito pode ser reverso. - Quanta ingenuidade para uma criatura bastante crescida! – Na verdade, ela se faz de boba! A vida prega peças e Mariana aprendeu que não dava mais para brincar de par-lendas, Dedo Mindinho/Seu vizinho/Maior de todos/Fura-bolos/Cata-piolhos, a sua existência era um fracasso público, uma desonra na vida privada. Não assumisse tanta culpa e a deixariam em paz, a culpa é o martírio dos homens, o açoite dos que se prendem a ela e libertam forasteiros, por isso Mariana era como uma Geni.
Esposa fiel e dedicada, mulher independente e reservada.  Jony, seu esposo, nome de registro, não era muito atencioso, homem de poucas palavras, tinha paixão por jogos, viciou-se no jogo do bicho, não houve saída, quem ama demais sofre as consequências, ser íntimo é partilhar de todos os momentos, até os mais inesperados. Mariana silenciou e o ajudou, mas a dívida crescia e Jony tinha até turma, apostavam entre si e em conjunto também. Faltava dinheiro e Mariana trabalhava cada vez mais, contava um, dois, três mil reais e o jogo continuava. Era uma mulher da ciência, não apelava para o divino, não acreditava em divindade alguma, e creditava sua união na cegueira da paixão, era quase obsessão. Até que não veio mais a regra. Optou por cuidar de si mesma, de sua cria e da vida. Ao se tratar de escolha, é como vida, cada um cuida da sua. Esperou mais um tempo: seu erro.
Completaram-se quatro meses sem que Jony percebesse – só tinha olhos para o bicho – Mariana suportou todas as humilhações e gritos, mas não abriu mão de suas economias, calculou o tempo pela matemática e valor das coisas necessárias para ir embora, falhou no cálculo da vida. Mulher forte, decidida, fez as malas enquanto era espancada, sua bondade não permitiria que desse queixa dele, ela também guardava um segredo no ventre – assim se sentia. Abrira a porta, desceu três degraus até chegar à calçada, não resistiu, acordou no hospital, sem filho, sem dinheiro, interrogada por policiais. Não conseguia articular bem as palavras, disse: - Tenho que enterrar minha criança, com muita dificuldade. Ela o fez.


Manuela Barreto (Brasil)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012



Há dias assim...

Há dias em que o simples acordar se torna uma tormenta. Em que o conduzir o carro se revela insuportável. Em que estacionar custa horrores. Em que as pessoas com quem vamos ter nos parecem estranhos. Em que as palavras custam a sair. Em que preferíamos ficar em silêncio. Há dias em que os outros nos assustam, nos perturbam, nos magoam... E então, olhamos para dentro de nós e concluímos que, só pelo facto de existirmos, já não estamos sós. E, por tudo isso, estou disposta a perdoar quem, deliberadamente, me pretende magoar. Quero fechar as portas às velhas mágoas e colocá-las todas dentro de um rio que, no seu percurso, as dissolverá completamente.


Carmo Miranda Machado


terça-feira, 2 de outubro de 2012

Palavras Versadas


prometeu

hoje, no céu
a estrela decadente
quando trilhava
um percurso de combustão

outrora noiva, no véu
corpo teve voz de gente
e desde respirava
rasto até à exaustão

nada mais se morreu
qualquer planeta lhe é ausente
é de ser caverna cava
a alegoria de plutão

por que será, prometeu
querer guardar ardente
tudo que o fogo agrava
se nos carboniza a mão?

e do carvão
ela foi o zeus seu
o meu
olimpo lavado inocente
titã feita incandescente
a coragem sonhada lava
sonho que dissolve o vulcão
que montanha te acorrentava?
não me perdias na corrente
se nenhum castigo te dava
por fazeres do fígado coração


Reanto Filipe Cardoso