terça-feira, 31 de julho de 2012

Palavras Versadas




Não, não tens ferrugem.
Sardas são procissões da alma rumo à boca
aventuras dum deus que nos encena embriagado
e esclarece que a fé de um espelho te é translúcida
a cada poro que se encolhe na carícia de um só dedo_
Tudo conduz ao crepitar dos elementos,
ao estertor das defesas que se me falecem
entre cada pulsão dos olhares que lambemos
embaciados na dança dos cascos nas chamas_
Embalsamo-te os cabelos tijolo a tijolo
desabotoo as angústias vida a vida
e ao germinar harmonicamente
o teu efervescente desnudo
fico só
simbolicamente perto
dum qualquer nosso lar


Miguel Barroso

domingo, 29 de julho de 2012

Provocatio



Número


- Não há razão para te enganares neste problema.
- São números a mais, ainda me baralho com tantos...
- Os da janela?
- Não, os que estão à varanda! 


Iolanda Bárria

sábado, 28 de julho de 2012

Crónica Benzodiazepina



Semear crises para colher interesses

A tomarmos medidas, elas devem ser sempre rumo aos nossos melhores interesses.
Um país que toma medidas tendo em vista uma futura crise está a semear a crise que dê suporte a tais medidas. Quanto mais drásticas forem as medidas, mais terroríficas serão as crises que se prevêem e inevitavelmente se seguirão.
Tendo em conta que são as próprias medidas a garantir o sucesso e dimensão das crises, elas acabam por nunca resultar descabidas, muito pelo contrário, revelando-se acertadas tanto no timing como na grandeza, parecendo dar razão a quem as tomou.
Semeia-se pela vontade de colher. Crises.
Medidas são efeitos. Carregam consigo a função de dar causalidade. Não importa se vêm antes ou depois.
Só a loucura pode levar um homem a pôr o carro à frente dos bois. Ou a semear crises. Loucura não é merecedora de culpa, mas sim de cura.


DuArte

sexta-feira, 27 de julho de 2012



Nos meus lugares secretos

Há lugares secretos em todos os cantos do dia, na penumbra, sob a poeira da ventania. Fecham-se para não se saberem abertos. Só se abrem à voz do dono e raramente se revelam. Trabalham apagados para que a consciência não se aperceba das ideias esquerdas, com todas as janelas panorâmicas cerradas durante as horas de expediente. Trabalham dentro de si para renascer, para fazer nascer novos dias. Para se abrirem à luz. É bom deixar entrar a luz do dia, os olhares da vizinhança. É bom vê-los sair. É bom ver a noite a sós com alguém que nos diz... Cada casa tem o seu telhado de vidro, a sua pia abissal de águas bentas, o seu pacote de larachas de água e sal, o seu pão ázimo comprado com o que restou da dízima. Cada casa tem o seu lugar secreto, os seus lugares secretos, os seus recantos discretos ao fundo dos corredores iluminados. Cada casa tem a sua asa – se tivesse duas, voava. Claro que, as asas – para voarem –, teriam de possuir casas suficientemente fortes para suster o peso de um vôo. 


Joshua Magellan

quinta-feira, 26 de julho de 2012



Por falar em amor

Então é isso. A vida como teria de ser, atravessada por um redemoinho de sensações. Palavras que adquirem vida própria e nenhum espaço para autodefesa. Rimasse o existir com sonetos de amor e os ruídos, as vozes, os discursos indiretos livres seriam mais condescendentes. O mundo livre de perversões, dicionários ausentes de termos precisamente dispensáveis: malícia, maldade, vingança, traição, manipulação, demagogia, guerra, injustiça, et cetera. Em outra perspectiva, não haveria pontos de vista, nem verdade absoluta, mas a pureza dos discursos, o sentimento universal seria responsável por conduzir percepções, a tênue fronteira entre o dizer e o fazer estaria protegida por soldados da paz e da ordem cósmica. E então é isso, a vida como alguém disse que seria. Outro alguém a dizer como ela é para um desconhecido. O fictício é banal para realidades inventadas. O silêncio grita esperança, o corpo mimetiza, tão longe e tão perto de todos, em algum lugar desse universo, há um texto que implora perdão.


Manuela Barreto (Brasil)

quarta-feira, 25 de julho de 2012



FÉRIAS

Sim, ausentei-me por uns tempos. Ausentei-me de mim, que isto de andarmos sempre connosco atrás também precisa de algum descanso.
Voltei mais completa. E mais rica. Porque se regressa sempre mais rica, venha-se de onde se vier. Vi gente e lugares. Fui em busca do sol. E esqueci-me que existiam computadores. E cidades. E Centros Comerciais. E pessoas a correr. A dolência apoderou-se de mim. Usufrui do prazer de ser apenas. Nada mais do que ser simplesmente.
Agora que voltei, apercebi-me que tinha saudades de ti.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 24 de julho de 2012

Palavras Versadas



BANDEJA COM ESTRELAS

num rosto não cabem dois.

que as coisas tenham para nós
uma perduração
e que emendem a revelação
das reentrâncias.

proíbo-te à infância.

a minha voz
ilumina a palavra não.

que este silêncio seduza
a tristeza que nos
desmerece e que entra no fulgor
desnecessário
da nossa separação infinita.

e no final de tudo está sempre
o melhor início.

numa bandeja de estrelas.

que as coisas tenham para nós
uma perduração.

que a morte se deixe ficar
onde está.


Sylvia Beirute

domingo, 22 de julho de 2012

Provocatio


ordem unida

em verdes anos
ao militar
quando tentava
fazer sentido
mantinha firme
uma pose
até nova ordem
mental porém
nunca me senti
racional
nem à vontade


Joshua Magellan

sábado, 21 de julho de 2012

Crónica Benzodiazepina


S. A.

Calma. Sosseguem as gentes mais levianas e serenem as gentes mais púdicas. Não tenho desvios sexuais incontroláveis nem tão pouco preciso de ajuda. Mas este grupo sempre me intrigou. Camuflado de bom cristão, sob o verniz de décadas de uma educação prendada e religiosa, tentei entrar neste mundo por “mera curiosidade sociológica e científica”, como legenda o meu querido amigo Ricardo sempre que quer compreender algo fora do seu quadro de referências. (vá, fui subtil, não resmungues). Consegui ser considerado um “newcomer” dos Sexaholics Anonymous, fui aceite (sim, oh sim!), e espera-me uma primeira reunião na delegação de Madrid no próximo mês, pois ainda não se expandiram para Portugal. Claro que não vou. Eu queria mesmo era ter acesso a mais informação. E após uma leitura atenta, de uma dessas brochuras “Test yourself”, “The problem” e “The twelve steps”, meus senhores, fiquei com a clara sensação de sermos todos perversos, até aqueles anjinhos que dobram o pijaminha depois de se levantarem. 

Bruno Vilão

sexta-feira, 20 de julho de 2012


 

Dos sonhos...

E de súbito desabam personagens no meu sono. Várias, todas diferentes, todas querendo ter voz, todas querendo que eu as conte num pedaço de papel. E eu contaria algumas de bom grado, tão inusitadas são as suas estórias. Desgraçadamente, o acordar apaga quase sempre a memória das palavras murmuradas nos sonhos. Resta apenas uma recordação vaga, demasiado delicada que se desvanece mal os meus sentidos se focam no dia que começa. 


Missanga 

quinta-feira, 19 de julho de 2012


No comboio da vida 

Gosto muito de comboios. Adormecer embalado pelo bater das rodas nas uniões mal acabadas. Dar por mim uma ou duas estações mais à frente, parado na plataforma a olhar para trás. 
É engraçado, quando penso em comboios, a ideia que me preenche o imaginário não é de linhas paralelas, sempre paralelas, mas linhas que se cruzam nos emaranhados das estações. Talvez porque a vida se faça assim, tão aparentemente linear, eu goste tanto destas linhas, porque se podem desviar. Como uma alavanca, um botão, um clique de rato, podem decidir o futuro dos passageiros, desviados para um túnel escuro, ou então, porque a sorte nem sempre é madrasta, para uma paisagem ribeirinha, cavada em socalcos, repleta de luz.


DuArte

quarta-feira, 18 de julho de 2012



“Númaro”, “Ação”!!!

A Manela é contra o Acordo Ortográfico. Considera-o uma grosseria, uma descaracterização "das palavras à portuguesa", como ela gosta de dizer. Eu nada digo, mas compreendo-a, pois alterar a ortografia não é nada simples, nem ligeiro. Particularmente, para os que sempre zelaram pelo “português” à portuguesa, como a Manela, que sempre disse “númaro”, em vez de número, e agora vai ter de escrever “ação”!


Iolanda Barria

terça-feira, 17 de julho de 2012

Palavras Versadas



birdwatching (day shift) 

sei que me trazes pelo bico.
reconheço que te vou comer à mão
e sei que sem ti eu não

mas não me fico
porque ele há outra coisa
muito clara

: tens uma maneira de juntar as palavras
que nos separa

por isso, morena,
está na hora de mudar o tom do pio
se não, tenho muita pena
lá fora faz frio


Renato Filipe Cardoso

domingo, 15 de julho de 2012

Provocatio



Desvia-te

Se há só uma direcção, porque há tantas direcções?
Quantas direcções serão as que não têm direcção?


Iolanda Bárria

sábado, 14 de julho de 2012

Crónica Benzodiazepina


 

OUTRO OLHAR

Tenho andado arredada das viagens virtuais e deste mundo cibernaútico. A verdade é que, de vez em quando, nem me lembro que ele existe o que é muito bom sinal por um lado, porque significa que ando ocupada em actividades bem mais úteis e gratificantes; ou muito mau sinal, por outro, porque é o reflexo de um computador inoperante, atacado por estúpidos vírus que o destroem lentamente.
Hoje acordei cansada. Porque a semana foi difícil. Porque acordei diariamente às 7h da manhã. Porque adormeci sempre tarde. Porque as aulas ainda não terminaram. Porque, porque, porque...
Assim, mal acordei fui assaltada pela ideia urgente de esvaziar-me de coisas, de objectos. Estou farta de tanta tralha à minha volta. Literalmente, tenho a casa repleta de tralha que me prende as energias, me ata os movimentos, me limita a criatividade. De inutilidades, de gavetas cheias de nada, de móveis atulhados de tudo, de prateleiras repletas de livros, de cd's, de revistas espalhadas... Enfim, sinto uma necessidade urgente de me despojar. E isso não se refere apenas às coisas materiais, garanto-vos. Pelo contrário. A necessidade de esvaziar o passado, porque perfeitamente desnecessário, é em mim premente. Trazemos connosco esse mesmo passado pois somos o resultado de todos os momentos que fizeram a nossa vida até este preciso momento em que teclo. Mas viver é reinventarmos permanentemente o nosso tempo e é sobretudo termos outra forma de olhar a vida a cada dia que renasce. 


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 13 de julho de 2012



O ser dos meus dias

Há dias raros em que tudo são inexplicações. Dias em que acordo atónita, como se uma tempestade me devassasse as entranhas. Dias em que nada faz sentido. Dias em que duvido de tudo, em que questiono tudo. Dias em que deixo a solidão entrar-me na alma e fico só a olhar por entre as lágrimas.
Há outros dias, menos raros, em que tudo parece ser tão evidente. Em que tudo parece arrumado no devido lugar, como se nem pudesse ser de outro modo. Dias em que a hesitação, o medo e a tristeza não são convidados e a vida flui, leve.
E há os dias de busca, de procura. Dias em que acordo com vontade de sustentar o mundo na palma das mãos e desvendá-lo. Dias gloriosos que me enfeitiçam com poentes de assombro, palavras envoltas em magia, brisas suaves que sussurram segredos.

Que dias prefiro? Não sei, de facto. Todos eles me acrescentam, todos me completam, todos fazem de mim aquilo que sou e aquilo que serei…


Missanga

quinta-feira, 12 de julho de 2012



Aprecie com moderação

Encontrei-a na manifestação. Disse-me que havia sentido em todo aquele ato comunista, no futuro, haveria anarquistas e seria importante saber quem é quem. Joguei os dados, esses não disseram nada, absolutamente nada. Ah, recordo-me daquela professora que ressaltava na faculdade o quanto eram anarquistas os que não eram disciplinados. Aprendi bem o bê-á-bá; na infância era a casinha feliz. Cada qual mora onde pode, o alfabeto é reto, não tem k, w, y, dá saltos, dribla obstáculos. É árduo, doutora - enquanto a senhora reduz nossos danos, o feitiço vira contra o feiticeiro. Somos todos aprendizes.

- O pernil está servido.
- Sim continue.
- Não vai devorar?
- Não como carne.
- Os judeus também têm certas condutas.

Eu sou um autêntico glutão das letras, escreva um artigo, leia-o no mais tardar, verás nada, coisa nenhuma. Ciladas do tempo.

- São tantos deuses, não é mesmo?
- Sou ateu
- Esqueci-me disso. Isso é religioso?
- O quê?
- O projeto, de vida.
- Social.
- Entendo.
- Você usa câmera?
- Não entendo de imagens.
- Sei.
- Um agente secreto.
- Cachorros curam suas feridas com saliva, você sabia?
- Não como cachorros.
- Resposta quente. Tem quem o faça, nem loucos, nem insanos. Acredite.
- Aceita um cafezinho?
- Sim, sem cafeína, por favor.
- Sinta-se à vontade.

Ó estrangeiro, ó peregrino, ó passante de pouca esperança - nada tenho para te dar, também sou pobre e estas terras não são minhas. Mas aceita um cafezinho. A poeira é muita, e só Deus sabe aonde vão dar esses caminhos. Um cafezinho, eu sei, não resolve o teu destino; nem faz esquecer tua cicatriz. Mas prova... Bota a trouxa no chão, abanca-te nesta pedra e vai preparando o teu cigarro. Um minuto apenas, que a água está fervendo e as xícaras já tilintam na bandeja. Vai sair bem coado e quentinho. Não é nada, não é nada, mas tu vais ver: serão mais alguns quilômetros de boa caminhada. E talvez uma pausa em teu gemido!
Um minutinho, estrangeiro, que teu café já vem cheirando... 


Manuela Barreto (Brasil)

quarta-feira, 11 de julho de 2012



Para lá de

Não tenho culpa de ter asas no pensamento. Daquelas que me elevam para lá das nuvens, para lá dos limites da razoabilidade, para lá de qualquer galáxia ousadamente sonhada. Não tenho culpa se a razão, essa bastarda, nada me diz, em nada me orienta. Não tenho culpa de preferir flutuar por cima de tudo isso a ter os pés estancados no plano das coisas terrenas. Não tenho culpa de não pensar racionalmente nas coisas para lhes alargar o âmbito palpável. Prefiro-as assim. Moldáveis e flutuantes. Pois a lógica da razão alaga-me de coisas instáveis e inquietantes.


Bruno Vilão

terça-feira, 10 de julho de 2012

Palavras Versadas



geometria do voo num canto de cisne

navegar no compadrio das forças americanas
ir pelo ar a todo o gás pimenta e sal “quê-bê”
perseguir uma lua de melpoméne desacreditada
mergulhar no pigmento do céu entre os diluentes
diluir-me até realçar uma única cor activa
ser terra verde alface tenra como pano de fundo
despir-me da natureza desta idade nédia
perder-me na esperança de não ser o cinzentão
sorver os escapes livres do perigo de incêndio
acender a última cinza de um condenado que jaz
anónimo sentado numa fé de electrocutado
sendo enquanto a vida espera pela corrente alterna

resta-me fazer círculos de fumo entre o pó e o carvão
engolir os nós da garganta atravessada por uma secante
erguer a voz ao desencanto e antever uma alma de cisne
cuja vocação para o canto era tangencial


Joshua Magellan

domingo, 8 de julho de 2012

Provocatio



Vento Suão

A morte é como aquele vento que vem de África capaz de dizimar as searas de trigo no Alentejo que, ao invés de arrepiarem caminho rumo ao sol, se deixaram distrair pelos encantos da terra.


DuArte

sábado, 7 de julho de 2012

Crónica Benzodiazepina


O CARDUME

Há algum tempo atrás, quando ainda valia a pena, recordo-me de ter acordado, olhado em redor e ter percebido que a casa onde vivia precisava de uma volta. Assim, saltei da cama, tirei os lençóis, coloquei lavados. Sacudi tapetes. Aspirei. Lavei chão do quarto. Limpei WC. Esfreguei a banheira. Pus os lençóis na máquina. Estendi a roupa que lá estava. Aspirei o hall. Sacudi mais tapetes. Limpei a varanda. Tratei dos gatos. Arrumei armários da despensa. Reciclei lixos. Recolhi roupa. Levei-a para a engomadoria. Trouxe roupa da engomadoria. Fui ao super. Fiz as compras. Carreguei as compras. Arrumei as compras. Limpei gelo do congelador. Fiz jantar. Lavei a loiça que não cabia na máquina. Pus a máquina a lavar. Arrumei a loiça. Perfumei a casa. Pus a mesa. Fiz um chá de canela e sentei-me a descansar um pouco no sofá a olhar para a minha peça de arte favorita: o cardume. Foi então que ele chegou e disse:

 - Sortuda, TODO O DIA EM CASA SEM IR TRABALHAR! O que é o jantar?

Nesse dia percebi que alguém estava ali a mais.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 6 de julho de 2012



Partir e voltar

Gosto de partir. Gosto de voltar. A minha estória poderia muito bem ser feita de partidas e chegadas. A vida aconteceria entre esses dois momentos. Gosto de ir, rumo ao desconhecido, de me perder em culturas distintas da minha, de conhecer lugares, pessoas, estórias. Gosto de andar debaixo do mesmo céu mas em horizontes longínquos. Gosto de me surpreender com lugares de assombro, pessoas com vidas inimagináveis. Gosto de ir e misturar-me com as gentes, sentir a energia da terra que piso, tentar comunicar nas línguas locais.
Gosto de voltar ao meu porto de abrigo, ao meu refúgio, aos meus livros, à minha música, à companhia dos que me amam e que eu amo. A vida não acontece só entre o ir e o chegar. A vida surpreende e acontece em todos os momentos.


Missanga

quinta-feira, 5 de julho de 2012


Para a Elisabeth Correia

Todo o sonho de uma vida

Resguardada numa hibernação lenta, longa, vivia dentro de si como uma larva que teima em tardar no interior do seu casulo. Aperfeiçoando a vida, aperfeiçoando-se até ao infinito. Lá, no infinito, habitaria o lugar de um novo estádio, uma tumba feita berço onde haveria de desnascer para renascer. Fazia durar o seu percurso por aquela fase de vida quase vida, o calor do seu íntimo acomodava-a como uma poltrona. Teimava em não ser crisálida, teimava em guardar-se nos pensamentos que a protegiam do mundo. Lá fora tudo era agreste e impiedoso, até o próprio tempo ao passar queimava doendo. Quando saía de si era impermeável ao viver das gentes, apenas os olhos saíam para desfrutar do panorama do mundo. Quando caminhava reservadamente pelas ruas era apenas uma visão, uma aura que dissimulava a sua presença. Nunca quis ser vista, nunca quis ver ou inteleger para além do mundo sensível. Para além, sentia apenas o escuro, o inseguro, o intangível, o que não era para si um mundo seu. Mas, haveria de conseguir sobreviver às provações quotidianas, de subsistir para ganhar nova forma. Haveria de criar asas, asas suficientemente fortes para se ultrapassar. Um dia haveria de querer viajar, sobrevoar o tempo e a vida, chegar aonde o mundo fizesse outro sentido. Ela sabia de cor os lugares bonitos da vida, aprendera-os todos com os livros no coração. As palavras dos sábios ensinaram-lhe muitas coisas preciosas, emoções que nem o amor. Era nessas emoções que podia assistir aos mais belos lugares. Quando pudesse adejar sobre eles, visitá-los-ia, um por um, com os olhos sedentos de novidade e a mente escancarada. Esperava chegar um dia esse dia futuro, senti-lo-ia quando o mundo já não doesse e a terra lhe abrisse os braços. As suas asas cresceriam finalmente. Ver-se-ia mariposa espelhada nas águas. E voaria, voaria sobre todas as mágoas, voaria até ao topo de um sonho tão efémero quanto a sua existência.


Joshua Magellan

quarta-feira, 4 de julho de 2012



Viajante Urbano

Era um garoto à procura de um santuário para guardar seus segredos mais íntimos. Observaram-no de longe, muito longe, e havia tanta dor, tantos desejos recônditos. Ele os pôs em prática. Triste sina, um viajante solitário a andar em círculos, sempre ao redor de si mesmo. Ah os segredos, quando habitam o ego não há mais volta, sobrevivem de sopro! Não me disse nada, cabia ler cada ato e pedir ao meu amigo para escrever essa tese da vida alheia. Um bar seria o lugar ideal para encontrá-lo, sua loucura era acreditar ser um vampiro juvenil, encontrar pessoas perdidas, carentes, frágeis, ressentidas, todos ansiosos por afetos num mundo em que o próprio teatro é o dos vampiros. Bebidas e conta paga. O que importa se somos escravos do sistema, escolhemos onde queremos atuar. Na vida mundana a liberdade é grande, o preço justo. É difícil ser você mesmo, um dia você acorda e pensa sobre o que fez no ano passado, a resposta nunca é encontrada, entretanto, os atos solidificam-se. Aquele garoto não aprendeu nada, queria viver como o nobre numa terra de plebeus. Pergunte ao meu amigo de que maneira o fazia, apenas testemunhei. O mínimo que posso entender é que “não se pode servir a dois senhores”, e explico: não é possível ser você mesmo e ser outro, a ciência de manipular destinos não ensina a curar dores. Vide verso.
Quando não se entende a matemática dos erros, os ensaios ficam fragmentados, fui coroinha e sei rezar o terço, nenhuma doutrina me enobrece, religião não envaidece, nunca fui alcoólatra, o alcoolato fez-me saber a medida da alcoolometria. Vício é vício, não tem prescrição. Meu amigo relatou tudo:
 - Aceita uma bebida?
 - Sim, por favor.
Um olhar astuto dirigia-se ao rapaz atencioso e gentil, um cavalheiro à moda antiga. Sabia que alguma coisa estava acontecendo entre eles, chegada e partida era a vida daquele mancebo.
 - Vou preparar um especial para o senhor.
 - Está bem, confiarei em seu talento.
Ao se tratar de confiança, leia-se “confio em mim”. Era essa a primeira lição inesperada entre ambos. A bebida estava saborosa, outras pedidas foram fervorosas, a clientela crescente, propaganda de boca em boca é a alma do negócio. Contratado:
 - Sou o dono desse recinto, sinto muito em lhe informar que apreciei suas bebidas, também sou um degustador nato, nenhum encontro é casual, não é mesmo?
 - Não entendi, senhor.
 - Entendeu sim, garoto, vamos para as próximas etapas, do começo não se sabe o fim dos sujeitos, sabem-se passantes.


Manuela Barreto (Brasil)

terça-feira, 3 de julho de 2012



DESERTO URBANO

se me derem um deserto para viver.
do deserto selecciono a minha independência
para ver ao longe aquilo que ao perto
já não amanhece.
e no grande livro do nada
uma conjunção avermelhece
como estrutura transitiva,
como massa de água que resolve as luzes
e ainda assim ilumina todas as raízes.
e por fim desejo não ter de escolher as palavras.
que os dias sejam levados com os astros.
que o meu segredo seja um exercício infinito,
mapa para nenhuma coisa.


Sylvia Beirute