sábado, 31 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (VI)


# 2.3

— Tens espuma no canto dos lábios.
O polegar, discreto, desponta em crescendo da mão e viaja num movimento premeditadamente curvo até à boca. Arrasta suavemente a sua impressão desde a periferia até à aresta de uma expressão teatral de desinteresse. Nada. O polegar recolhe seco à proveniência. A mão torna à mesa, apaziguada. Fitas-me. Não há no teu rosto interrogação; ainda assim, pressinto que esperas de mim uma resposta.
— Do outro lado.
— Hã?
— Limpa do outro lado. É no canto esquerdo.
Aquiesces, exalando um suspiro de enfado. Desta vez o processo inverte-se: é o polegar da mão direita que executa a depuração. Desta vez a moção é determinada, repentina, um gesto com menor elegância do que antes e sem qualquer réstia de volúpia. Estou, nestes esparsos segundos, absorto no labirinto matemático que acolhe a dicotomia entre mão esquerda no canto direito e vice-versa; e de como temos sempre dois lados distintos que, amiúde, aprendemos a aplicar com parcimónia e temperança nos múltiplos cenários em que a vida nos coloca. Pois é: dá-me para os pensamentos mais estúpidos e inúteis nas ocasiões mais inadequadas — que ele há, verdadeiramente, ocasiões adequadas para cultivar pensamentos estúpidos e inúteis, e não tão poucas quanto isso.
— Podias ter dito logo.
— Tens razão, desculpa.
Erro crasso. Primeiro a imprecisão. Agora, dar-te razão e, acto contínuo, desculpar-me pela falha. Expus-me demasiado. Tenho a certeza que neste momento, antes sequer de abrir a boca, adivinhas o que vou dizer-te; consegues desde já estabelecer o motivo pelo qual te convoquei, uma hora antes do previamente marcado, para este café da baixa, onde previsivelmente não levantarás a voz nem farás cenas passíveis de nos exporem aos olhares da turba. Detestas que te encontrem em trajares mundanos, não suportas que te, ou nos, olhem com curiosidade e menos ainda com congeminação bisbilhoteira. Quanto a mim, além de muitos outros temores, vivo apavorado de que possam adivinhar o que pretendo dizer no momento seguinte. É-me insuportável. Quero manter-me imprevisível. Inesperado.
Pressinto que as tuas mãos se esforçam para ocultar o tremor.
— Suponho que a tua resposta é não.
Tudo menos isto. Estive horas a cogitar, a moer e a remoer a estratégia de argumentação destinada a aliviar a minha consciência junto de ti. Há dias que não penso noutra coisa; e de cada vez que pensava imaginava-te lívida, desagregada, talvez chorando ligeiramente, perante o choque da minha revelação estrondosa e apunhalante. Mas não. Trocaste-me as voltas e antecipaste-te, desconcertaste-me. Principiaste-me no ponto em que esperava terminar-te. Vejo-me embaraçado. E gelado, de um gelado liquefeito que me injectassem nas veias. Invade-me uma vontade de negar o teu vaticínio pela simples birra de te contrariar. Mas não posso. Tudo isto é demasiado sério para que nos possamos dar ao luxo da distracção, das cerimónias. Perdemos já tempo precioso a brincar às casinhas. É chegada a hora de crescermos.
— O café aqui é muito bom, não é? Tiram-no com muito creme.
— Há melhores. Está um tanto queimado. Mas não vejo que raio de importância tem isso agora.
Sobreveio-me uma pungente necessidade de te friccionar o ânimo com esta porção de algodão embebido em álcool etílico, antes da injecção letal que trago encoberta no bolso. Para te quebrar o ímpeto. Contudo, uma vez mais és tu quem me desarma. Seja.
— Decidi aceitar o emprego. Segunda-feira começo a trabalhar no jornal em Lisboa. Já falei com eles, está tudo tratado.
Que mania irritante a minha de encetar os assuntos sérios com um posicionamento nos meios-termos… Coragem, Edgar, coragem.
— Portanto, está consumado. Não tenho voto na matéria.
— Na verdade, não. Acho que é o melhor para ambos.
— Achas… achas o que te dá mais jeito. Sempre. Não fazes a mínima ideia do que é melhor para mim. Se calhar, nem do que é melhor para ti.
— É um risco que corro. Mas a decisão está tomada. Não digo que não me tenha custado, mas está tomada.
Minto. Não custou. Foi, aliás, um alívio. Estarmos gastos e fenecidos de vícios rotineiros é o que eu mais dispensava na vida. Tu sabes que é assim; sabes que abomino a trivialidade e a repetência; sabes que o esqueleto em que encarnámos como dueto em construção está ancilosado; sabes que assim já não íamos, jamais, a lado algum. Todavia, acreditas que ainda existimos — detesto, também, quando usas a imagem da brasa adormecida que deve ser avivada, reavivada, e asseveras que somos nós a dita. Essa é uma das maleitas de que padecemos — os lugares-comuns. Afora os cafés onde era costume estarmos de mão dada a ver o Mundo passar, todos os outros sítios se metamorfosearam em banalidade seca e rúptil. Já não nos reconheço em mesteres tão costumeiros.
Apetece-me dizer-te que preciso de atrevimento. Ou coisas maiúsculas como Arrepio, Paixão. E olhar para as ruas sem conseguir vislumbrar o seu término. Mesmo correndo o risco de porventura não haver saída e tendo consciência plena de que esse risco possa resultar em desventura (outra maiúscula: Risco). Mas tu tens um plano. Vais assediar-me com os mirabolantes avatares de uma casa com vista para a foz que tenderá a ser nova ou mutante; vais bombardear-me com o filho milhentas vezes fecundado em ti, mimeticamente inseminado em mim, sobre cuja educação e preceitos de civilidade tantas vezes deambulámos e discutimos acerrimamente ao ponto de nos zangarmos, umas vezes com lágrimas e ranho, outras com os cotovelos a roçar o riso e a loucura do destempo futuro; vais acicatar-me com as cabazadas que me darás no snooker, e esse simulacro particular far-me-á figurar-te debruçada sobre o caixilho de madeira do bilhar, para uma imperiosa tacada com a bola branca puxada com efeito, e o gozo que normalmente me advém ao saborear a cobiça dos outros homens confrontados com o espectáculo entusiasmante do teu traseiro fabuloso, que é meu; vais enlear-me com o nome dos destinos de viagens e com a acme taquicardíaca dos crepúsculos e dos monumentos que trazemos fotografados no passe-partout da musa-de-cabeceira; vais embevecer-me com estórias de amigos dispostos a envelhecer connosco e com os vinhos novos que irão evoluir e, quando velhos, aprenderão a aguardar o seu tempo no rodapé das conversas.
Não é que não queira tudo isso. Talvez queira. Dói-me a memória, contudo. E sinto, agora, que preciso somente de coisas de que não consiga lembrar-me. Tenho para mim que me quero solto, acrónico. E tudo quanto gravite no universo mnésico do passado é uma grilheta infecta e febril. E a minha história está desbotada de analepses.
— Não me respondes?
Enquanto tergiversava tudo isto foste brandindo palavras. Perdoa-me, não te escutei. É a tal coisa: presumo saber o que vais anunciar e pura e simplesmente dispenso-te, subtraio-me a ouvir e a prestar-te atenção. Olho agora para ti, finalmente resignada, apostada no vazio translúcido do vidro que nos emoldura a cidade em atavios tais que, à luz indomável e parnasiana da tarde, apetece pedir que nos embrulhem pastéis de frenesi em caixas de meia dúzia.
— Desculpa, perdi-me em pensamentos. Não queria…
Detive-me. Não devia ter dito isto. Há no ser-se franco o egoísmo de libertar a própria consciência transferindo a sobrecarga do peso para o outro, cingindo-o à omnisciência incontornável da nossa verdade e do nosso motivo; roubando-lhe o direito a ser injusto, individualista na sua interpretação e ponto de vista. Remato:
— Vamos jantar.
— Depois do que me disseste… Ainda vale a pena? Faz algum sentido?
— A mesa está reservada. E continuas a ser especial para mim. Tenho os bilhetes comigo na carteira. Vamos ver a peça. E a vida há-de continuar.
— Beija-me.
— Ainda tens um bocadinho de espuma…


Renato Filipe Cardoso

sexta-feira, 30 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (V)


Beijamim

Beijamim chegou àquela terra com a curiosidade de um papa-formigas, mas não viajava em busca de alimento, fugia da persistência tendencialmente histérica que muitas mulheres lhe dedicavam graças ao ar apolíneo de um deus que paira, não caminha, sobre a terra. Era, de facto, um homem garboso, daqueles que só de olhar para ele se sente a corrente sanguínea espevitada e a revigorante hematopoese. O seu ar circunspecto, genial e distraidamente combinado com o seu cheiro natural de besta no cio, produzia um efeito quase calamitoso em qualquer mulher que entrasse num perímetro de cinco metros à volta daquela figura. Condenada à desonra para toda a vida e perda irremediável do amor próprio, a infeliz mulher, mesmo com o sistema circulatório renovado, caía na fatalidade de, cegamente, o perseguir até de modo impróprio com o fim único de tocar nele e ser tocada por ele das mais variadas formas possíveis. Os encontros eram, geralmente, fatais do ponto de vista emocional. Alguns finavam em tragédias de sabor novelesco. Beijamim, com este nome que ninguém sabe de onde veio (os pais negam a responsabilidade), nunca compreendeu a atracção de tantas mulheres nem tão-pouco conseguiu retribuir na mesma moeda. Por isso, foge constantemente, desejando mais depressa ser um suspeito criminal que tem a polícia à perna. E foi parar àquela terra como ovelha perdida que se foi resguardar num covil.
Era uma terra agreste que tinha por tradição mais ancestral fazer correr à frente de pedras certeiras as pernas que se queriam ver mais céleres. E, com isto, aquela populaça do diz-que-disse mas não disse nem dirá sacode as mãos como Pilatos lavou as suas. E fecha a gaveta. Com isto não sofre Tó Xico que ainda se vê arredado das lides do mundo, mas Beijamim, com este nome que algum deus esquecido lhe deu, será certamente o senhor que se segue.


Berenice Greco

quinta-feira, 29 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (IV)


Uma saúde débil numa alma em ferro

Eu já tinha ouvido falar de bruxas, já sabia que existiam demónios, já me tinha dado conta do poder dos demónios e dos deuses, e de quem os representa, mas isto nunca me tinha sucedido, nem poderia imaginar que me viesse a acontecer. Alguém me sussurrara em tempos que existiam organizações secretas e ultra-secretas, e outras tão, tão secretas, que nem os próprios organizados sabiam da sua existência. Ainda continuo convencido que algumas destas seitas ou organizações, teve algo a ver com o que sucedeu comigo. Ou talvez o sindicato dos músicos, se calhar a minha vizinha, ou, quem sabe, o padre da igreja, ou mesmo o próprio Estado.
Em tempos, ouvira falar de um homem que, ao despertar, se viu transformado numa barata; de um outro homem que alegava e jurava ter ouvido dois cães a falar, assim como se fossem humanos; e de um outro ainda, um desses fidalgos russos, que jurava ter-lhe fugido o nariz, fazendo-se depois o nariz passar pelo pobre “desnarizado”. Tudo isto me pareceu normal, tratava-se apenas de uma questão de identidade (ou de alteração dela), ou apenas da mudança de uma qualquer característica dessa identidade. Tomara que a minha situação fosse alguma destas, mas não. Um dia, até sonhei ser um sapo, claro que contando sempre que seria um daqueles batráquios que com um simples beijo ficaria prometido a uma princesa e me aboletaria com um trono qualquer. Agora, com esta desgraça que me aconteceu, é que nunca vou lá chegar. Nunca passarei de um vulgar sapo envenenador.
Imaginai vós que me transmutei em parte: que, como os cães falantes do Cervantes, mudei a forma da minha expressão oral e passei a ladrar; que me transformei num insecto repelente, numa barata com asas e tudo, como o insecto de Kafka; ou que, perdi em parte da minha identidade, como o herói de Gogol perdeu o seu nariz. Pior do que isso: não só me aconteceram as três situações referidas, como não se trata de uma mera substituição kafkiana por um outro animal, ou mesmo da falta ou de acrescento de parte dele. Di-lo-ia já, se não temesse uma risada sarcástica por parte do leitor, caçoando desta minha tão desesperada quanto inesperada forma. É verdade, tudo verdade, até as letras com que o vou relatar são verdadeiras. Creiam que tudo isto é possível. Eu vivi-o, na minha própria vida.
O leitor já terá, com certeza, ouvido falar (pelo menos, vagamente) de biónica, de seres biónicos. Eu também já tinha lido qualquer coisa sobre o assunto, num livro de ficção científica, ou em qualquer peça literária do género. Ora bem, quando na semana passada me apercebi deste meu estado, deste meu estado musical, digamos, decidi ir consultar um técnico de saúde. O problema já não era só a minha transformação parcial, para além disso sentia algumas dores localizadas nesse novo componente que incorporara. Recorri a um amigo, o único a quem tive coragem de revelar o meu caso, por ser o meu maior amigo e por nunca ter duvidado de mim. Contudo, até este, quando se deparou com a minha infeliz situação, sorriu por segundos, disse-me que era uma “dor d'alma” ver-me assim, quis mesmo tocar-me uma sonata ou um requiem. Depois mostrou um ar preocupado, aconselhou-me a consultar, sem demora, um especialista em medicina molecular, a um desses médicos bem implantados no comércio das curas – a coisa estava feia, não devia negligenciar o concurso de um bom profissional e dos melhores cuidados e remédios.
Assim fiz: cobri o corpo com um capote e quando caiu a escuridão da noite dirigi-me ao consultório do tal experto em moléculas. E a ele me queixei então: – Sabe, o meu problema é na alma, suspeito que tenho uma pequena racha na alma. Eu vou explicar... O médico já nem quis ouvir mais, dispensou o relato dos meus restantes problemas e, sem me dirigir uma palavra, chamou a “ramona” do Hospital psiquiátrico. Chegado ao hospício deram-me ordem de internamento e um pijama novo. Foi lá que tive acesso a um verdadeiro “médico-afinador”, a quem contei o meu infortúnio, inclusivamente a minha falta de saúde. Não me olhava como o outro médico, este ouvia atentamente o meu relato. Lá lhe fui dizendo: – Saiba o senhor doutor que, apesar de tudo, não me queixo do instrumento que me encastraram, tem uma boa alma, uma alma em ferro. Só me queixo de algumas dores numa pequena racha que sinto na alma. Quando exposta à humidade (da chuva, ou do banho), faz-me dilatar as madeiras, ou quando exagero no esforço de percussão e as cordas puxam demasiado pela estrutura, sinto algumas dores.
Depois de um longo e pormenorizado exame, o especialista fez o seu diagnóstico: duas cordas um pouco sobrecarregadas, podem partir a qualquer momento se esforçadas; as madeiras um pouco ressequidas, o que provoca um deslizamento das cordas e uma consequente perda da afinação; e a dita racha, não passa de uma brecha mínima na alma. Chaga que só poderia vir a incomodar se houvesse necessidade de substituir algumas madeiras, ou reforçar a estrutura que sustenta o cordame, segundo ele. Até me foi feito uma espécie de “electro-audiograma”, que revelou valores de escala muito próximos aos de um “cravo bem temperado”, o sumo padrão europeu. Já não aguentaria o esforço de um concerto inteiro, é certo, mas podia bem acompanhar uma noite de tertúlia. Podia tentar uma cirurgia, porém, o douto curandeiro recusou a ideia de me soldar a alma, era uma operação radical e minuciosa demais, implicava algumas horas de entranhas abertas e um esforço hercúleo para mim, por força da fraqueza inerente à minha provecta idade. Em suma: a máquina tinha alguns anos, tinha bastante uso mas era uma boa máquina, estava num estado aceitável – poder-se-ia dizer que gozava de uma saúde débil, mas tinha no imo uma alma em ferro.
Não era um Steinway de cauda, ou um Bechstein, nem sequer um Fritz Dobbert, ou mesmo um Kaway… Era um Pleyell, um vertical piano de estudo orgulhoso da sua origem gaulesa, com cerca de 75 anos, o qual – segundo o afinador –, se fosse estimado, podia durar outros tantos ou mais anos ainda. Afinal, dei-me por contente, resignei-me a ser um “homem-piano”, ou um “piano-humanizado”, um homem biónico que, em vez de incorporar desses dentes de fibra óptica, ou um membro em liga de carbono, ou uma articulação em aço cirúrgico – tinha uma pianola septuagenária acoplada ao tronco. Entretanto, por mor da idade, já meti os papéis para a reforma. Enquanto não ma concederem, vou ganhando umas coroas como “pianola-de-rua”, a animar os transeuntes em troca de algumas moedas. Na verdade, ando a tentar amealhar algum: quando puder faço uma cirurgia de remoção deste piano velho; e um transplante – vou mandar implantar um jovem piano eléctrico.


Joshua Magellan

quarta-feira, 28 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (III)


Âmago Azul

Você chegou em casa e molhou o corpo no chuveiro, pensamentos vagavam do despertar da alma acolhida em quietude artística. Dia exaustivo, muito trabalho, e fumaça de asfalto não faz sua cabeça. Cabeça é feita de ideias, há cabeças que são apenas feitas, intransitivas e diretas. Você pensou sobre linhas retas e traçados, e o equilibrista em algum corpo tatuado. Mas pensar não ambientaliza mundos, por instantes, de repente, minutos, estava inteira no chuveiro, ao passo que apenas as extremidades sentiam o cair da água. Molhar a mente, esfumaçar o ambiente, o pensamento escorre entre os poros, desafia contornos com prudência, enquanto a racionalidade predomina lá fora. Você obedeceu a seu chefe, que, por sua vez, não elogiou seus acertos, ele quer um operário perfeito, as máquinas rugem feito gigantes andróginos, herméticas em fabricar lucros incertos. Você sabe o poder do trabalho, e não se apodera de nada na arquitetura do corpo modelado. Os prédios estão cada vez mais altos, favelas nunca crescem para baixo, e as vias de acesso são planos retos enclausurados. A mobilidade é para poucos e você, do chuveiro, dispensa o espelho do banheiro. Espelhar é viver a multidão que lhe toca, nem todos têm acesso a sua rota, pois as máscaras vendidas no mercado convencional caíram na bolsa de valores. Você superou a esquizofrenia contemporânea de seres que a circundam e descortinou espaços censurados, dizem que cada ser tem o latifúndio que o cabe, todavia você superou a maioridade, revertendo o preço dissimulado do afeto. Neste momento, você pode estar em qualquer lugar da cidade, nada lhe importa, do chuveiro, a água sempre escorre por cada parte de seu canto azul, são límpidas as palavras que escorrem pelo ralo, do outro lado da rua, o sol reluz sobre o subsolo em que habita um ser obscuro: recôndito poeta a desentranhar-se de outra imagem.
 
 
Manuela Barreto (Brasil)

terça-feira, 27 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (II)


A História do desejo

Um homem estava muito doente e experimentou todos os tipos de terapia, mas nada o ajudava. Então foi a um hipnotizador e este deu-lhe um mantra para ele repetir continuamente: "Eu não estou doente." Durante pelo menos quinze minutos de manhã e quinze minutos à noite. "Eu não estou doente, eu sou saudável." E durante todo o dia, sempre que se lembrasse, deveria repeti-lo. Ao fim de alguns dias ele começou a melhorar. Dentro de algumas semanas ele estava completamente bem de saúde.
Então o homem contou à sua mulher:
 - Isto foi um milagre! Achas que devo ir a este hipnotizador pedir outro milagre? É que ultimamente não tenho sentido desejo sexual e a nossa relação sexual está quase estagnada. Já não há desejo.
A mulher ficou contente. Ela disse:
 - Vai, porque começava a sentir-me muito frustrada.
O homem foi ao hipnotizador. Quando regressou, a mulher perguntou-lhe:
 - Que mantra, que sugestão é que ele te deu agora?
O homem não lhe contou mas ao fim de algumas semanas começou a recuperar o desejo sexual. Ele começou a sentir desejo novamente. Então a mulher ficou muito intrigada. Ela perguntava-lhe constantemente, mas o homem ria-se e não dizia nada. Então um dia, enquanto ele estava na casa de banho de manhã a fazer a sua meditação, ela conseguiu ouvir o que ele dizia: "Ela não é a minha mulher. Ela não é a minha mulher. Ela não é a minha mulher."


Carmo Miranda Machado

segunda-feira, 26 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (I)


À memória dos amantes

Perdi-me de amores por uma bela mulher. Os meus olhos tropeçaram nos dela e, nesses breves instantes, o meu mundo parou ali mesmo. Foi num baile de carnaval. Ela trajava um sumptuoso vestido negro e no rosto trazia uma máscara de gata. Só os olhos, os belos olhos verdes, os voluptuosos lábios carnudos, a ponta do nariz e parte inferior do maxilar, eram visíveis. Tive-a nos braços o tempo de um tango. Foi o tempo necessário para combinarmos um encontro para o dia seguinte. Levaríamos as máscaras que nos cobriam grande parte do rosto. Ela a de gata, eu a de zorro.
Na tarde seguinte, inventei uma desculpa e saí sem a minha mulher. Dirigi-me, nervoso, ao local combinado com a bela desconhecida, temendo que ela não aparecesse. Apareceu radiosa. E pareceu-me ainda mais bela. Sentámo-nos num sossegado banco de jardim, ambos usando as nossas máscaras. Isabela: nunca um nome me soou tão doce. Meia hora depois entrávamos no quarto de um pequeno hotel das redondezas, durante umas horas o mundo lá fora deixou de existir. Isabela não quis tirar a máscara, nem deixou que eu tirasse a minha. Eu ardia de curiosidade de ver o seu rosto desnudado mas ela foi intransigente. Combinámos novo encontro no mesmo local, para a mesma data, no mês seguinte. Eu queria antes mas, também aqui, Isabela foi inflexível. Era casada, como eu, e não queria que o marido desconfiasse. Passámos a encontrar-nos sempre nas tardes da primeira Terça-feira de cada mês. Durante algum tempo acalentei a esperança de que as máscaras caíssem. Em vão. Nos trinta anos seguintes as máscaras foram sendo substituídas, mas nunca caíram. Nunca soube o seu sobrenome, nem praticamente nada da sua vida. Durante vinte anos ansiava por cada encontro com aquela mulher, a quem amei como nenhuma outra. Sempre que um de nós não podia comparecer no dia marcado, deixava um envelope endereçado ao outro no pequeno hotel que foi nosso refúgio desde o primeiro dia. O Sr. Camilo, recepcionista, habituou-se à singularidade de nos ver aparecer de máscaras, nunca nos questionou. Um dia, muitos anos depois, encontrei-o por acaso e fomos beber uns copos. Nesse dia contei-lhe a nossa estória. Eu vivia para viver aquelas tardes com Isabela, ela vivia para viver aquelas tardes comigo. Eram a nossa fuga do mundo, a nossa entrega um ao outro. Um dia, o pior dia da minha vida, telefonei transtornado para a recepção a pedir ajuda porque Isabela tinha desmaiado subitamente. O Sr. Camilo subiu logo e verificou que ela não desmaiara apenas. Estava morta. Enlouqueci de dor. Através de informações minhas, o Sr. Camilo ligou para a melhor amiga de Isabela, que sabia do nosso romance secreto. Ainda cogitei retirar a máscara de Isabela: ver, finalmente, todo o seu rosto. Mas, depressa desisti da ideia, por considerar que seria um desrespeito a sua expressa vontade. O seu corpo foi retirado discretamente do hotel e levado para casa da amiga. Fiquei o resto da tarde sentado na cama, chorando a partida do meu amor. No mês seguinte voltei, no outro e no outro. E voltei por mais dez anos. Teria continuado outros tantos, não fosse terem-me prendido neste sítio. A culpa foi do Sr. Camilo.
 - Mas porque continuou a ir, mesmo depois da sua amante ter morrido?
 - Aí é que está. Ela não morreu. Eu sei que, na altura, me disseram que ela tinha morrido; eu, quase morri também, de desgosto. Mas voltei ao hotel no mês seguinte e, para meu espanto, ela apareceu. Pensei que estava a ter alucinações. Mas não, era real, era ela que estava ali. A felicidade voltou a possuir-me a alma. Continuámos a encontrar-nos com a mesma regularidade até ao mês passado.
Nesse último encontro, quando saía, detive-me um pouco à conversa com o Sr. Camilo, a quem já considerava quase um amigo, lembro-me de lhe ter dito que era incrível como ao fim de tanto tempo, eu e ele estávamos notoriamente mais velhos, enquanto Isabela se mantinha tão jovem. Até acrescentei que as mulheres eram conhecedoras de muitos ardis com o fim único de enganarem o tempo. Lembro-me do olhar surpreendido dele perante as minhas palavras e de me ter respondido que Isabela tinha morrido há mais de dez anos. Ri-me dele. Seria tonto o homem. Não a veria ele entrar no hotel, mês após mês, para ir ao meu encontro?


Missanga

domingo, 25 de março de 2012

sábado, 24 de março de 2012

Crónica Benzodiazepina


A EVA FUTURA

Adoro-a. Se pudesse, dizia-lhe agora o quanto me faz falta. Prostrava-me a seus pés e agradecia-lhe os longos momentos de prazer com que me presenteia. Chama-se Lucía Extebarría e escreve, escreve, escreve...
Diz ela que ser feminista não implica odiar os homens (claro que não!!!) e muito menos ser lésbica. Muito menos implicará fazer a renúncia do soutien, do batôn e dos saltos altos. Ah, como eu a entendo. De acordo com o imaginário popular, a feminista é a mulher que quer ser mais forte do que os homens ou que quer viver sem homens... mas "ser feminista não se define, de modo algum, de acordo com a sua relação com os homens, mas sim de acordo com a sua relação consigo mesma e com o resto da população em geral."
E continua: "Partilho com as mulheres a cruz de suportar homens imbecis. E como não quis tornar-me lésbica, tornei-me feminista." Não é delicioso? Mas, confesso: há tantas feministas absurdas como homens cretinos.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 23 de março de 2012


Esta lição não leva tempo a ser aprendida

Mike Caro, uma das maiores lendas do poker, estudioso dos aspectos psicológicos do jogo, costuma dizer nos seus workshops que a ideia fundamental para não te afogares numa mesa, é teres sempre presente que, independentemente do dinheiro com que começaste a jogar, o único dinheiro que é teu, é aquele que ainda está à tua frente, e é só com esse que deves jogar. A ideia de estares a perder ou a ganhar muito, são conceitos especulativos e nunca devem entrar nas contas de um jogador sob pena de ele resvalar para o abismo chamado tilt , a depressão dos jogadores de poker. Ir atrás do dinheiro perdido, só te faria perder o resto das fichas, o carro, a casa, a mulher ou o homem, os filhos, a cabeça atravessada por uma bala de desespero.
Generalizando: aquilo que temos AGORA é tudo o que temos, e é com isso que devemos ser felizes. Se nos vemos mais gordos ou mais magros, é porque nos comparamos com algo que já não somos, é porque estamos a orientar o foco da nossa atenção para um passado que já não existe, e, ao fazermos isso, estamos a tirar o foco do único instante em que podemos tomar reais decisões de forma a que o presente – eternamente renovado – nos possa parecer mais radioso.

"Esta lição não leva tempo para ser aprendida. Pois o que é o tempo, sem passado e sem futuro?"


DuArte

quinta-feira, 22 de março de 2012


Não é à toa que se chamam gralhas, Paulina Dias

Os escritos da Paulina Dias têm gralhas. Nunca mais do que uma por escrito. O quanto baste.
Paulina fá-lo de propósito, pois gosta de brincar com a língua.

Alguém já disse baixinho que é um tipo específico de dislexia "e até se pode tratar". Outros, maldosamente, insinuam "excessos e até desconsiderações de língua".
Não vou comentar.

Os escritos da Paulina Dias devem ser lidos sem negligências. Dá trabalho. Custa. Ela até graceja: "Não falta quem escreva, o pior é ler!" Mas isso é ela a brincar, porque a verdade é outra, bem mais dura e exigente: horas e horas de trabalho a dedilhar no teclado, ensinar os dedos, treiná-los um por um a deslocar uma letra aqui, acrescentar ali, eliminar mais à frente.  Ops, gralha!  Automatismos que escapam à vista e ao entendimento da própria Paulina. Uma gralha no local certo e logo os leitores num mar de dúvidas: "será isto, será aquilo, o que quer dizer?..." Não lhe perguntem porque ela também não sabe. E os dedos não esclarecem.
(Quem lê é que se trama. Sempre).
Paulina tem a língua portuguesa na ponta dos dedos. Literalmente! Ensinou-lhes tudo o que havia a ensinar e não tem mão neles. É isso que verdadeiramente mexe com ela.


Iolanda Bárria

quarta-feira, 21 de março de 2012


Fusão

Comprar um vestido, ir para a esplanada e sentir os tubos de escape. As saudades nunca se levam a bem se não provarmos coisas com açúcar e um bocadinho de amargo. São como calorias perdoadas se tomarmos veneno em pequenas porções. Vamos ser modernos e só degustar sabores de fusão. Se alguém for muito doce consigo derrame-lhe umas beldroegas ou um picante em cima. Se for azedo, sirva-se com doce de caramelo. E a quente nunca se faz nada de jeito. Arrefeça sempre o prato com pequenos sopros. Nunca, mas nunca, coma fast food mais do que uma vez por mês. Se tiver de ser, remate com produtos portugueses de origem controlada. Uma morcela das beiras ou um doce daqueles cheios de ovos para não habituar mal o fígado. Tenho saudades de comprar um vestido, ir para a esplanada e sentir os tubos de escape. Fundir-me.


Ana Santiago

terça-feira, 20 de março de 2012

Palavras Versadas


SEMICORPO AUSENTE

perguntaram
perguntaram pela minha ausência à minha ausência
e ela respondeu sem modéstias à parte mas com
uma dificuldade redutiva que de tão grande
se tornou inalcançável e por isso soberba e arrogante
sim sim estar ausente pode significar arrogância
e eu nem estava cá
por isso quem perguntou
por mim nem deu de caras com o meu semicorpo de adeus
e máquinas de medição
teve de se contentar com a minha ausência
sentada numa cadeira vazia
repetindo-se continuamente
falando sozinha
multiplicando todos os movimentos da ilusão.


Sylvia Beirute

domingo, 18 de março de 2012

Provocatio


Pião com fuso

Ser fuso
ser pião
e mudar constantemente
de direcção
de sentido
e acabar completamente
perdido
no meio da multidão


Joshua Magellan

sábado, 17 de março de 2012

Crónica Benzodiazepina


Do riso e da lamentação

Sempre me pareceu que o provérbio “muito riso pouco siso” foi inventado por alguma beata de igreja, completamente virgem e intimamente ansiosa por se entregar nos braços da luxúria. Tão intimamente que nem ela própria teria completa noção de tais desejos. Deixando a beata de lado, e passando ao riso, que tão bem faz à alma, gosto de me rir por tudo e por nada. Gosto quando o riso vem cá de dentro e, indomável, toma conta de mim. E é das poucas coisas boas que é contagiante. E gratuito. Não há troika que me impeça o riso (a não ser quando metem as patitas no dinheirito, fruto do meu trabalho, e que devia ir parar à minha conta bancária). De resto, continuo a rir-me da vida, de mim, dos meus amigos, das desgraças que me acontecem, das coisas boas que vou vivendo, dos livros, dos filmes, das minhas certezas inabaláveis que de repente deixam de o ser. E só não me vou rir da beata porque, na verdade, a lamento!
 
 
Missanga

sexta-feira, 16 de março de 2012


Não tentes enterrar a dor

Porque ela estender-se-á pela terra, sob os teus pés; infiltrar-se-á na água que tenhas de beber e envenenar-te-é o sangue. As feridas fecham-se, mas ficam sempre cicatrizes mais ou menos visíveis que voltarão a incomodar quando mudar o tempo, lembrando-te na pela a sua existência e, com ela, o golpe que as originou. E a recordação do golpe afectará as decisões futuras, criará medos inúteis e tristezas vis, e crescerás como uma criatura apagada e cobarde. Para quê tentar fugir e deixar para trás a cidade onde caíste? Pela vâ esperança de que, noutro local, num clima mais benigno, já não te doerão as cicatrizes e beberás uma água mais limpa? Em teu redor erguer-se-ão as mesmas ruínas da tua vida porque para onde quer que vás, levarás a cidade contigo.
Não há terra nova nem mar novo; a vida que não aproveitaste ficará por aproveitar em qualquer parte do Mundo.


Carmo Miranda Machado

quinta-feira, 15 de março de 2012


Há dias...

Há dias em que o pulsar da vida está mais activo do que nunca. Uma força desconhecida corre-nos nas veias a uma velocidade estranha, como a seiva nas plantas, implacável e fluida. Nesses dias “o mundo não é suficiente, mas é um óptimo sítio para começar…” como dizia a música dos Garbage. São dias absolutamente perfeitos, em toda a sua imperfeição. A música certa, a refeição saborosa, as chatices resolvem-se, se forem passíveis de se resolver, caso contrário, resolvidas estão. O sono está em dia e faça chuva, vento ou sol, tudo é simples e simpático. Pudéssemos nós guardar estes dias preciosos como quem guarda uma carta de amor. Daquelas que já ninguém escreve. Pudéssemos manter esta força, retê-la como os corpos retêm líquidos ou gorduras e a mente, recordações amargas. Fosse a Filosofia suficientemente praticável para vivermos eternamente em estado de graça. Habitaria aqui, assim, egoisticamente, na maior das ignorâncias, mudar-me-ia de vez para a casa da estupidez feliz e despretensiosa.


Lucinda Gray

quarta-feira, 14 de março de 2012


Como as cerejas...

Como confiar na memória, sabendo que cerca de metade das memórias que geramos ao longo da vida são falsas? Mais alarmado fico quando recordo as palavras do Dali, segundo as quais «a diferença entre as memórias falsas e as verdadeiras é a mesma das jóias: as falsas aparentam sempre ser mais brilhantes, mais reais». Esquecendo-me das memórias por um instante, há pessoas que são exactamente assim. Parecem mais brilhantes que todas as outras. Como aquelas cerejas suculentas. Frescas. Hipnotizantes. Verdadeiras ou falsas pouco importa. Despertam o desejo e pronto. A questão das cerejas, ou seja, das memórias, isto é, das pessoas, é que podiam continuar a ser dotadas desse brilhante falso realismo que nos tolda os sentidos, mas desvendar subtilmente aquilo que colateralmente provocam. Vai uma dentadinha? Not today.


Bruno Vilão

terça-feira, 13 de março de 2012

Palavras Versadas


enguias

eu trago poros exclamantes no silêncio ardente
um castelo de sangue à deriva nos dedos
lento me volto para onde a tua sombra cai
é leve a tua sombra, é púrpura de êxtase
uma vela agitada brandida como um gume
canivete entrecortando rápidos de perfume
e sua fechadura austera esculpida em coragem
durante o lume do sonho a cinza da viagem

a paz viaja em mim como a mão por dentro
do bolso, o suor da mão crescendo na seara
porque semeaste um dia salgado de beijos
dizer-te não peço nada, e chorar depois
somente
como um solo feliz
a terra envolvendo com gestos aranhiços precisos
enleada a semente, tocada no seu pranto
a semente feliz que extingue sobre si a luz
para germinar em negrócio dormentemente tranquilo

espera um pouco, meu amor, havemos de ter fome
e tanto mordiscar vezes esguias como anzóis
outras sendo sibilantes como enguias em lençóis


Renato Filipe Cardoso

segunda-feira, 12 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Editorial


EDITATORIAL

Comunicado aos sapientíssimos leitores e proto-leitores

(E, ainda assim, a todos os degenerados filhos de mães regeneradas e não regeneradas dos políticos caídos na prostituição do ímpar lamento de um desgoverno por falta de bons fundos)

O F. e o F., na qualidade de autores únicos e inclusivos deste espaço blogosférico, vêm por este meio denunciar todos os subscritores dos textos publicados até à data sem fim lucrativos ou afirmativos; e afirmar lucrativamente perante o público que os mesmos se limitaram a transcrever psicográfica e transcorridamente as ideias que, tanto o F. como o F., sábia e copiosamente lhes ditaram. Fica por isso sabido, para os que ficarem sabedores, que todas as palavras, todos os fonemas e morfemas, todos os hífenes, os traços, os travessões, os acentos mais agudos e os mais graves (com pendor e pendão para a direita ou para a esquerda); todos os tiles nasaladores e todos os circunflexos de acento abafador; todas as vírgulas, bem como todos os pontos parágrafos e finais delimitadores – são exclusivamente da sua autoria e não dos ditos e sobreditos autores, seus prosélitos, que com toda a prosápia se arrogam a criadores das prosas versadas e dos  prosaicos poemas.

Mais ainda, vêm o F. e o F. anunciar aos leitores a descoberta de uma solução viável para um problema solúvel como o é a escassez de ideias e de ideais e solver e resolver a presente crise, sacando um coelho da cartola e iludindo o próprio ilusionista e o palhaço do coelho que nos tenta iludir. Assim, bastará o que basta para salvar o país: uma venda em hasta pública de todo o património ontográfico do F&F, mais as letras de câmbio e de intercâmbio literário que mantém depositadas em conta calada numa caixa de pandora. Só assim, sendo e não sendo o que se quer, se pode agradar a gregos e a germanos e salvar a honra da nossa pátria euro-estética com uma empenhada palavra posta em casa de penhores demo-literais. Para encetar este processo de recuperação da razão e do brilho nacionais vai o F. continuar a esbanjar (sem censuras), com o contribuinte leitor, toda a sua arte e penhorado saber acerca das mais sagradas escritas literaturas, contando para tal com a colaboração e incondicional apoio do F.

Resta-nos então convidar todos os amigos das letras alheias a roubar quotidianamente alguns minutos às aborrecidas tarefas do seu precioso templo caseiro e a depositá-las em nome desta sacristia pagânica, paraíso fiscal em que a dízima da ousadia do furto de vistas alargadas se paga com um pequeno esforço de mente (em certas ocasiões, demente) . E por último, querem os citados agradecer todas as horas, minutos e segundos, dispendidos pelo leitor no árduo exercício de decifrar os filosóficos e fanfarrónicos enigmas propostos e estender-lhes a passadeira vermelha para penetrarem neste Olimpo ortográfico, onde o próprio Zeus se disfarça de chuva de prata para os seduzir.

A bem da razão e das letras,

O editador

Post Mortem: Podem apagar os cigarros, charros ou outros fumáveis na própria tela do computador se a leitura não for do vosso agrado. Em todas as ideias tentaremos ser dignos das vossas cinzas.

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Provocatio (VII)


COMO OS VENTOS DE MARÇO

Moderna.
Emancipada.
Está a prémio.
Popular.
Sonhadora.
Misteriosa.
Subtil.
Vaga.
Sentimental.
Vulnerável.
Feminina.
Muito feminina.

INSTÁVEL.

Tão instável como os ventos de Março. Porque ela escuta o oceano e ele diz-lhe coisas.


Carmo Miranda Machado

domingo, 11 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (VII)


I WILL TRY TO FIX MYSELF...

Já sei por onde vou e já sei o que quero. Revi, organizei, tirei conclusões.
Não te quero amar, porque tenho medo de te amar e não te quero desejar porque não te posso ter.
Vou amarrar a minha paixão porque não a posso soltar.
Vou calar a minha voz para não gritar ao mundo o meu amor por ti.
Vou oprimir as minhas fantasias e todos os meus desejos secretos.
Vou ignorar todos os meus pensamentos e vou fingir que não vejo o caminho que meu frágil e sensível coração quer que siga.
Só me resta amar-te em silêncio porque não te quero virar costas, não me quero afastar se não me amares.

Critica-me, grita-me, mas não por gostar demasiado de ti!


Joana Santos

sábado, 10 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Provocatio (VI)


O lusco-fusco

Há alguns dias um colega falou-me da cena de curtir intensamente durante o lusco-fusco. Estive a pensar e realmente faz sentido. Durante o dia, trabalha-se; à noite, a malta diverte-se. E o que é que se faz durante o lusco-fusco?

É um espaço de tempo por rentabilizar. É que aquilo são cinco a sete minutos, mas são cinco a sete minutos tão intensos.
 
 
DuArte

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (VI) - Palavras Versadas


CÂMARA DE GÁS

é a maneira como inscreve.
como o gás inscreve no ar a sua audiência passiva.
como a agonia, mestre do concreto, desliga os homens.
como o silêncio inverte as qualidades emocionais
do tempo e lugar certos.
o papá poderia vencer a guerra se lhe
rompesse a harmonia. ou até com a maneira
de escrever com palavras omissas
os meus ombros e o meu dorso lento
de um amor que hoje imita a sua ausência.
o papá sempre conheceu a maneira
de perguntar aquilo que seria uma resposta.
o papá poderia voltar se desse muito peso
à refeição que servirá aos deuses.
mas o hoje é o agora.
e é a maneira como ele inscreve.
como o gás inscreve no ar a sua audiência passiva.
o papá está morto.


Sylvia Beirute

sexta-feira, 9 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (VI)


PARAÍSO

DAQUI A 10 MILHÕES DE ANOS DOMINAREMOS POR COMPLETO O UNIVERSO. DAQUI A 20 MILHÕES DE ANOS SEMPRE EVOLUINDO ESTAREMOS ÀS PORTAS DA PERFEIÇÃO. E DAQUI A 30 MILHÕES DE ANOS ESTAREMOS TODOS VIVOS OUTRA VEZ E NO PARAÍSO PARA SEMPRE SEM INVEJAS NEM EXCLUSÕES NÃO PELA MÃO DE DEUS MAS PELA MÃO DOS HOMENS E DAS MULHERES DO FUTURO. SE HOUVER JUSTIÇA E EVOLUÇÃO TALVEZ O PARAÍSO PARA TODOS SEJA POSSÍVEL DAQUI A 30 MILHÕES DE ANOS.


João Belo

quinta-feira, 8 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Provocatio (V)


Um dia não são dias

Segunda-feira :
...manhã, tarde, sexta-feira ou domingo, cedo, menos cedo, escuro, claro ... (manhã!)

Terça-feira:
é assim, mesmo. Paciência! Aguenta!
- Desculpe, mas não é permitido sentar-se!

Quarta-feira:
chove menos... quase não chove, será que chove?
(sim, chove!)

Quinta-feira:
vira-te, visto-te o impermeável! A Vi está assim por causa do Alfredo! Não há dia que não se vejam, mas desencontraram-se, já lá vão uns anos

Sexta-feira:
diospiros já não há, menina, acabaram-se em Janeiro. Leve laranjas!
(parvo!) (sabem ao mesmo, é?)

Sábado e Domingo (gémeos)
sonhei que inventava recordações (toda a gente o faz) e que rasgava a carne a coçar-me, derivado à urticária!

Segunda-feira:
manhã, tarde, sexta-feira ou domin...


Iolanda Bárria

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (V) - Palavras Versadas


vocação

se os pescadores escrevessem poemas
os poetas morriam à fome.

os poetas alimentam-se de tempestades e são
igualmente viciados no sal da morte prenunciada
a salgada vertigem que precede os pulsos
sanguineamente alongados pela rede pendida

também os poetas precisam de água pelos joelhos
na sua faina
precisam de deitar-se no fundo dos barcos
e baptizar os filhos com nomes de deus
acender-lhes fogaréus de orientação na bruma
e no desespero
nomes esperançados que afastem a tormenta
os nomes que se afastam quando atormenta,
também os poetas vêm tatuar esses nomes bem fundo
nos confins inexoráveis da água

no santuário divino dos peixes que caminham sobre a água
pensam eles poder levar consigo os filhos na morte
ou antes apaziguar diabólicos quereres que lhos morram
gravando a devoção
esculpindo a pureza
exaltando a estética de construção espinal dos deuses
fugindo ao xadrez das camisas: “as águas jogam e ganham”
peixe-mate!

os seus filhos brincam eternamente pela rua lavada
à espera de crescer
mas não — os poetas não envelhecem
nem os pesqueiros se esgotam:
os poetas lançam as suas redes
cuja malha deixa passar as palavras mais pequenas
esperando que se reproduzam e cresçam
para que o poema amadureça
enquanto no mundo se agrava a fome de metáforas

os pescadores têm alma de papel
a paixão impúdica das musas, e nos seus olhos
corre em marés inconstantes a tinta mágica
da translação planetária

e se um dia se lembrassem de escrever poemas
aos pescadores bastar-lhes-ia verter a pele
no silêncio da poesia
que todos os poetas morreriam à fome:
os pescadores escrevem-se tão melhor
e não haveria quem pescasse


Renato Filipe Cardoso

quarta-feira, 7 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (V)


Na solidão do centro do mundo

Como se não bastassem os raios de luz límpida inundando a praça e os meninos correndo felizes atrás da bola redonda e os velhotes sentados em bancos de madeira gasta aquecendo as suas dores; como se não bastassem os casais passeando alheados da alegre algazarra e as mães empurrando carrinhos com os seus bebés; como se não bastassem os aromas a flores e a primavera misturando-se com o cheiro a fritos da tasca da esquina e os tons garridos dos toldos da esplanada; como se não bastassem os grupos de amigos conversando animadamente e um gato indolente sentado à janela e eu apenas tendo a solidão como companhia, mirando em silêncio rostos desconhecidos, tentando fazer parte do alarido e da felicidade aparente das gentes que passam…


Misssanga

terça-feira, 6 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Provocatio (IV)


chávenas de gente

os chás sociais
sucederam
aos cafés volúveis
as madames
sitiaram as chávenas
aos tea breaks
e consumaram 
os corpos distraídos
deixando-os
em êxtase agudo


Joshua Magellan

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Palavras Versadas (IV)


Batalha capilar

Tens uns cabelos muito presos à terra
e ouvi dizer que gostas d'aguardente
mas quando estou longe ouço sempre a mesma pergunta:
"Olá, Paulo, quando é que cortas o cabelo?"
Sabes, filha, não gosto não gostarei e nunca gostei
das frases falinhas mansas à mistura com verniz
O tabaco e a pintura nos teus seios oh flor
poderiam de novo fazer-te aparecer
em mais um programa de rádio
ou na última corda bamba empoleirada no circo
tal e qual como quando apareceste junto de mim
e fizeste-me reparar na marca-merda de perfume
perfume-de-merda que trazias
E por isso eu hoje falo-te com mãos vermelhas de assassino
e dispo-te mais uma vez pra te atirar
às águas do rio líquido fossa
E agora digo-te antes a barba a cicatriz
o deixar crescer o pêlo
Que ires depois gritar a quem depois o for ouvir
que "o Paulo não corta o cabelo"


Paulo Brito e Abreu

segunda-feira, 5 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO (IV)


A mulher que eu amo é também a única que eu odeio

Talvez seja isso o amor deste mundo; ódio prensado de forma poética, ódio engolido em seco, assustado, culpado. Eu não quero engolir o meu ódio por ti. Continuas a ser a escultura mais fiel dos meus medos, a angústia, a culpada pelas coisas todas que fiz ou deixei por fazer. És a revolução que não saiu à rua, a frustração, a vida que nunca consegui ter contigo e impedi sempre que tivesses com outros. És o meu ódio mais visceral, o meu desespero, os desejos todos arremessados contra a parede. És o que de mais horrível pode um homem alcançar: a separação feita carne, o horror materializado mulher. E se me atrevo a ir mais para dentro, és a vontade de matar alguém, todos à minha volta, encher os hospitais de sangue, ambulâncias a toda a velocidade a anunciarem o holocausto. E por fim, depois de te matar, darei um tiro na cabeça. Órfão repentino do meu sustento, acabarei rendido ao destino, para nascer, procurar-te e odiar tudo de novo.


DuArte

domingo, 4 de março de 2012

2º ANIVERSÁRIO D'O FILÓSOFO E O FANFARRÃO - Provocatio (III)


Um, Outro e Terceiro

Um e Outro sonham com o dia em que, juntamente com Terceiro, conseguirão falar e dizer exactamente o mesmo :
as mesmas palavras
e espaços
e tempos
e entoação
e amplitude sonora
e movimentos faciais
Maquinalmente e em simultâneo. Os três. O mesmo!

Um, treina com afinco a flexibilidade dos músculos faciais e da língua.
Outro, exercita mais a rapidez de resposta dos reflexos.

Terceiro, fala.


Iolanda Bárria