terça-feira, 19 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (I)


Esperei por ti até ser eclipse

Ainda resistes? Haverá café nos joelhos excrescentes da tempestade que nos agride com a carne do mesmo único osso onde podemos agarrar-nos ante a sonolência que nos sonega o não podermos navegar? Haverá vida para além da sorte? Haverá céu na boca, ou apenas um tecto estéril de palavras? Haverá planetas a nascer no teu sorriso? A última vez que estive no parque vi um cisne debicar o chão onde outrora o pão crescia. O cisne não conhecia nenhuma das minhas lágrimas. Não chorei para ele, mas partilhei a minha fome de asas. É mais fácil falar disso com as aves que não voam — a frustração delas é, porventura, maior. Será que vais gravar este texto, ou despenhar-se-á no torniquete de lixo que incopiosamente descartamos? Será que alguma destas respostas terá pergunta? Será que está tudo do avesso? E se estiver do avesso? Tenho uma manga enfiada no parapeito do coração, queria atravessá-la com um rio que não corra, que não imerja com vidros inquebráveis. Alguém me disse um dia, um dia especial como os outros, "tudo o que seja coração deverá partir-se; aprende, querido, a viver dos cacos". Disse assim. Depois morreu. Ainda esperei que voltasse. Tanto tempo. Nunca fui de futilidades como acreditar em necrologias ou astrologias. Sempre preferi os passatempos do jornal para aproveitar a sombra. Um dia houve, porém, em que se me afigurou vê-la num remoinho de café. Nada mais que a minha memória rodopiante. E os teus lábios de açúcar secos como um túmulo. Não falo de ti. Tu estás aí. Acompanhas-me. Sempre acompanhaste. Eu estava descalço e tu corrias no precipício dos meus olhos. Quis fechá-los ao julgar-te cair. Mas afinal voaste. Era o teu dedo nas minhas pálpebras, não era? Diz-me. Prometo não me vingar. Aliás, nunca vingo. Basto-me com um silêncio mordaz. Afago as explosões do silêncio nos teus ombros e sigo adiante com a cara lavada. O corpo lavado — que saudades me sobressaltam de um beijo de imersão. Onde estás tu? Onde estás?
 
 
Renato Filipe Cardoso

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