sábado, 30 de junho de 2012

Crónica Benzodiazepina


Ohhh, so lovely!!! 

A calçada portuguesa é 'so lovely' , mas não para quem anda a martelar paralelipípedos desengonçados e a encaixá-los como pode, debaixo de 40º à sombra. A isso chama-se trabalho escravo. É isso que é a calçada portuguesa, vestígios vivos de trabalho escravo. Já há muitos pavimentos que imitam bem a calçada e que podem  muito bem ser utilizados nas avenidas. Mas não! Não se pode perder a tradição! Martelem, escravos. Pedra a pedra, que é tão bonito de ver!

E que belas caminhadas se fazem por este belo empedrado medieval. Além de trabalho escravo, é vergonhosamente desleixado. Todas as cidades e vilas com a 'so lovely' calçada portuguesa têm aspecto sujo (são raras as excepções e agora, de repente, não me lembro de nenhuma). Não deve ser simples de limpar, presumo.
Na zona histórica de Cascais, onde vivo, quase só existe calçada portuguesa. Suja, torta, esburacada, desmazelada. Trabalho escravo, pedra a pedra. 'So lovely'! 

So lovely,
What can i say, ohhh! So lovely! ... not only lovely, but extremely charming too. 


Iolanda Bárria

sexta-feira, 29 de junho de 2012



Sempre a mesma metafísica

 – Que estás a fazer, Francisco? Perguntou Violeta, inquieta por o ver, há horas, a remexer na enorme pilha de pedras, destinadas, um dia, a serem muro.
 - Ando à procura de Deus.
 - E achas que o vais encontrar aí?
 - E porque não? Parece-me um lugar tão bom como qualquer outro.
 - Já te passou pela cabeça que Deus possa estar no céu?
Francisco tirou, finalmente, os olhos do monte de pedras, para olhar o tecto de nuvens cinzentas.
 - E onde está esse céu? – perguntou, devolvendo os olhos às mãos e às pedras, que levantava e voltava a pousar.
Violeta estava sem ideias, também ela cansada de procurar motivos para alegrar os dias, depois da morte da sua mãe.
 - Não sei. Talvez esteja dentro de nós.
 - Pois, eu estou convencido que o vou encontrar aqui.


DuArte

quinta-feira, 28 de junho de 2012



Nada é definitivo

Quando começo a ficar cheia de certezas, vem a vida e dá-me um abanão. É a forma que tem de me lembrar que nada é eterno, nada é definitivo.
Gosto e preciso do meu porto de abrigo. É lá que me reencontro e reconheço. Mas não saberia viver sem este carácter mutável da vida, que me empurra para estradas novas, que me ensina a crescer, que faz com que não me acomode. 


Missanga

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Palavras Versadas



estranhos 

o poema
é o encontro
casual e meteorológico
entre dois
estranhos:

o que está
dividido em gotas
montado na intempérie
a reinventar a nuvem
no zénite
do impossível
sem saber se a escreveu

e um outro
que retém o calor
aos sóis radiosos
e, por julgar ter lido,
vai rasgando
um céu mais quente
que antes
e quando
desidratado
abre o guarda-chuva


Renato Filipe Cardoso

terça-feira, 26 de junho de 2012

DIA MUNDIAL DA LUTA CONTRA A DROGA - 26 de Junho de 2012


Amanhã é Domingo 

O diabo é sedutor, e a sedução aparece como seu atributo básico. Cativa o homem para convertê-lo em seu próprio cativeiro. Neste sentido, o diabo é mais sedutor do que opressor.

Mia Couto 

Andávamos na merda há uns dias. Havia quase uma semana que não encontrávamos “produto” em lado nenhum, as dores começavam a moer o corpo e a mente não tinha ar, recusava-se a pensar. Todo o esforço era dirigido ao objectivo encontrar uma dose de “branca”, ou de “cavalo”, ou lá o que fosse, desde que nos disparasse da nossa mente para fora. A droga rareava no mercado, uma série de rusgas sucediam-se, a promessa de limpeza do Casal Ventoso de todo o lixo material e humano que a droga trazia desta vez chegava avassaladora. Passámos na Curraleira, no “Vinte e oito de Maio”, na Cova da Moura, mas apenas encontrámos umas cenas maradas, com muito mais “corte” que “produto”. Aquela porcaria derretia-se como plástico, escorria mal lhe chegávamos o calor do isqueiro, nem dava para fazer “base”. No dia seguinte, por sugestão da Sandra, resolvemos passar pelo Bairro da Ajuda, com pouca esperança, mas levados a toque de caixa pela ressaca. Fomos à “casa da velha”, lá sempre paravam alguns “dílares” fugidos às rusgas dos bares e aos riscos maiores da distribuição de rua, onde, apesar de tudo, o negócio era mais rendoso. Quando entrámos, o filho da velha, o Júlio, diz-nos que o “homem”, o Espanhol, já estava à nossa espera havia um bom bocado. E mais: "o Piriscas era um merdoso"; e o Espanhol, quando o apanhasse, lhe ia “fazer a folha em menos de um fósforo". Tinha ficado de estar lá haviam mais de duas horas e ainda não tinha aparecido. O Espanhol estava fulo, estava capaz de lhe dar um tiro, de cinco em cinco minutos repetia:  – Aquel cabrón de mierda siempre está retrasado, le voy a hacer comer la nieve toda por el culo! Enquanto o Júlio nos ia fazendo o relatório da danação do castelhano, fomos andando para a cozinha, ao som da voz grave e catarrosa dele praguejando contra o Piriscas. Quando me apercebi do que estava prestes a acontecer, já era tarde. Empurrado pelo Júlio e pela minha companheira, em lidas de ressaca, franqueei as portas da cozinha. O Espanhol dirigiu-se de imediato a mim, mirou-me com faíscas de lume nos olhos e inquiriu-me:
 – Donde, coño, esta aquel cabrón del Piriscas, que ya lo mato
A minha companheira, a Sandra, tomou a dianteira e começou a falar. Explicou-lhe calmamente como o Piriscas, depois de uma espectacular fuga, conseguira esconder-se numa barraca no Bairro da Boavista, mesmo debaixo das barbas da polícia. Estava agora acoitado em casa do cigano, do Nacho, o homem que tinha feito o contacto e que aguardava a sua percentagem. A Sandra respirava agora fundo, enquanto esperava uma reacção do Espanhol, que entretanto acendera um cachimbo atulhado de “base”. Fumou até queimar a impaciência, depois perguntou-lhe: 
Tienes las pelas contigo
Ela acenou que sim, apontando para a bolsa a tiracolo; e ele abrangeu-lhe uma embalagem de plástico, sensivelmente do tamanho e volume de um dicionário. Trocaram o pacote da mercadoria pelo envelope, que o Espanhol se apressou a abrir. Lá estavam um maço de notas de dólar e um pequeno papel que o Espanhol leu avidamente. Contou o dinheiro com os olhos, sorriu com ar aliviado, e rematou:
 – Muy bien, me voy a ver Nacho, el me esta esperando!

II 

A Sandra quis sair dali imediatamente. Eu segui-a, depois de ter dado dois contos de réis ao Júlio e prometido voltar com um pacote de branca, como paga pelo favor. Estava atónito sem conseguir perceber o que se tinha passado. Onde arranjara a Sandra aquele dinheiro todo? Como preparara tudo sem que eu me desse conta? Como saberia ela deste negócio e da amizade do Piriscas com o Nacho? Eram interrogações que tentaria esclarecer logo que estivéssemos a salvo. Passámos pela minha casa para ir buscar algumas roupas e o pouco dinheiro que tinha amealhado. Em seguida, fomos a casa da Sandra: um dos vizinhos estava de saída e perguntou-lhe se queria ir até ao sul. Esperei junto à porta com o vizinho enquanto a Sandra subiu e amanhou um saco de viagem. Dez minutos depois estávamos a caminho do Algarve, com dois quilos de cocaína na sacola e meia dúzia de notas de mil escudos na algibeira. Ao chegarmos a Albufeira, rapidamente despedimos o vizinho, e fomos directos a uma casa de férias que a Sandra me disse ser de um amigo. Nunca cheguei a saber de quem era a casa, mas, chegados ao local, ela retirou uma chave de uma das janelas e abriu a porta. Mal entrei, corri para a casa de banho, a carência de droga desarranjara-me os intestinos, já não aguentava mais. Deixei a Sandra na sala a acender luzes e a retirar panos de cima dos móveis e dos sofás. Alguns minutos depois, quando voltei, ela já abrira o pacote do produto e, com um canivete, ia dando facadinhas na enorme pedra cristalizada e recolhendo o pó que apontava logo à narina. Já de pupilas bem abertas e com ar satisfeito, pegou no canivete e derramou mais dois ou três gramas sobre um espelho que havia entretanto retirado da parede e depois acenou-me, dando-me o turno. Acto que se repetiu vezes sem conta nas semanas seguintes, até ao colapso total. O tempo foi-se escoando por um fio de excitação, foi-nos consumindo sem que déssemos conta da sua passagem. Deixou marcas indeléveis, levou consigo toda a boa memória desses dias.

III

Só mais tarde, tarde demais, soube a resposta às minhas interrogações. O Piriscas morreu, os jornais noticiaram que tinha sido morto com seis tiros de revólver disparados à queima-roupa por uma jovem toxicodependente, depois de se terem envolvido numa discussão supostamente por motivos passionais. O cigano, o Nacho, levou um tiro numa virilha mas lá se safou depois de ter estado às portas do inferno. O Espanhol foi abatido a tiro quando, encurralado, se envolveu num tiroteio com a “bófia” do País Basco que o tomou por um “etarra”. Jurou-nos vingança até à morte, vivemos ambos com esse espectro até ele se finar.
Estou melhor de saúde agora, mas, desde que tive aquela overdose, nunca mais fui o mesmo. Já recuperei bastante, já consigo andar sozinho e já me aguento sem qualquer amparo por cerca de uma centena de metros. Éramos sonhadores e queríamos viver a vida no brilho de um cristal que nos parecia puro. Fomos os melhores amantes e um dueto imbatível, sobretudo quando se tratava de arranjarmos droga. Fomos os melhores amigos – somos. Nunca perdemos o contacto um com o outro. Sempre apoiei e visitei a Sandra, mesmo ainda sem me poder deslocar senão numa cadeira de rodas. Nos últimos anos, tenho ido visitá-la ao estabelecimento prisional quase todos os dias. Depois de termos descoberto todas as sensações fortes que a droga nos proporcionava, de nos termos encharcado de tóxicos até à insanidade, aprendemos agora a viver a doce sensação dos afectos.
Parece-me difícil crer que se cumprem amanhã vinte anos sobre aquele fatídico episódio que vive na minha memória como se estivesse sempre a acontecer. Não tenho nostalgia nem horror do passado, apenas arrependimento por não o ter vivido; agora, vivo placidamente o meu presente e espero sem nada esperar o futuro, o que ele me trouxer. Amanhã é Domingo. É uma data feliz para ambos: é o dia do meu aniversário, faço quarenta e nove anos; e é também o primeiro dia de liberdade da Sandra. Vou buscá-la à prisão de Tires logo pela manhã. Vamos passear de mãos dadas à beira-mar, até que os nossos espíritos estejam apaziguados e as ondas nos abordem serenas.


Joshua Magellan

segunda-feira, 25 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (VII)


SONDA ESPIRITUAL

às vezes as coisas não correm bem. há meia hora atrás tentava escrever algo. sem sucesso. agora escrevo por cima. bem, não propriamente por cima, uma vez que estamos no mundo do digital, o que nos dá a liberdade de empurrar texto. e é isso que faço. em baixo tenho um texto primitivo em verso. fala numa sonda espiritual, algo mais vivo que um espírito. tem palavras como nicho, arma, orgulho e bala. usa o verbo disparar. diz que disparar é uma forma de partilha. dito assim alguém ficará a pensar no que se perdeu. escrito assim eu valorizo o meu fracasso.


Sylvia Beirute

domingo, 24 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (VI)



SERENEMOS

PENSO QUE POR VEZES SOMOS. ÉRAMOS... E, SERENIS, SEREMOS. APENAS EXISTEM SERES SELENITAMENTE TERRÁQUEOS QUE NÃO SE ENTENDEM, TIPO NÓS, ENTRE OS PADRES DESTA VIDA E OS SENHORES OU SENHORAS DESTES NORTES, COMO QUEM CAPA UMA CAPA OU QUEM LAMBE UMA BOA INTENÇÃO. COMO ALGO INESQUECÍVEL, IN - ATINGÍVEL, QUE MEXE, ESTATICAMENTE E LAMINANTE ESQUIVO. COMO UM ESCOLHO. UMA ESCOLHA NO CERNE FATIO DA ESCOLHA. UNA PUNÇÃO LÍQUIDA, UM ARDOR LANCINANTEMENTE COMPREENSIVO. ENTRE O QUE SE VÊ E O QUE SE QUER VER NOS ESGARES DES - CONFIADAMENTE PUERIS DUM POTE DUENDAL ARCOISTICAMENTE EGOCÊNTRICO ENFIM DO MONSTRO DO ESPELHO QUE CAI E DOBRA COM PÉS E CÃES A DIAGNOSTICAR O DIFERENCIAL QUE SUA E SE ABRIGA COMO LOMBRIGA QUE OBRIGA, SIGA, ESTOU A GOZAR, MAS OBRIGA A DIAPASAR O SEGREDO DO DEGREDO QUE É NÃO CONFIAR. UMA ESPADA COMUM. UM SOM. UM ECO. COMUNHÃO FÚTIL. DISCUSSÃO ÚTIL. E A ALGO A TESTEMUNHAR. A TRIBUNA ESTÁ ESPESSA. OBESA. TESA. UMA MESA POSTA DE DILETANTISMO A PURGAR. FODAM AS RIMAS A PENSAR QUAL A MELHOR POIS O POETA – ISA TEM MAIS PARA PENSAR. QUE A RAPARISA SE FAÇA ENEVOAR. COMO QUEM FAZ UMA VIDA, COMO QUEM SOFRE, QUEM OSSA, E DESOSSA A COMUNGAR HÓSTIAS LICÉRGICAS E JORNAIS PRÉ PROSTITUÍDOS NUM QUALQUER PROSTÍBULO FUNICULAR. UMA MÊSA ACESA COM INCENSADAS VELCRAS FUNDAS LÂMINAS E SALIVAMENTE CIRCUNCISANTEMENTE bordelescos, Amor… 


Miguel Barroso

sábado, 23 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (V)


FORMULÁRIO CONTÍNUO

Robôs, alienígenas, naves espaciais, viagens no tempo, artes marciais, raios laser, 
mortes, ressurreições, finais felizes... segue a vida

a noite indo embora indiferente, sons embalando sonhos esquecidos, olhos se abrindo vespertinos

golos da rodada, zagueiros, atacantes, artilheiros, as últimas notícias, o glamour dos atores e atrizes, o entusiástico ritual da higiene...

e o estômago se satisfaz com a fome

mais sons guiando os passos para a praça, aquela praça, aquela gente, aquelas flores onde vitrines fazem jardins

rápidos cumprimentos manuais, revezamento de novidades obsoletas, assuntos sem tempo para a memória... despedidas

cartazes de cinema, hollywood na película, novos ingredientes, velhas fórmulas

robôs, alienígenas, naves espaciais, viagens no tempo, artes marciais, raios laser,
mortes, ressurreições, finais felizes...

sons embalando passos automáticos na casa que volta, olhos domesticados encontrando telas

golos da rodada, zagueiros, atacantes, artilheiros, as últimas notícias, o glamour dos atores e atrizes, desejos lançados à distância, orgias virtuais, pretensões numa teia

rápidos cumprimentos digitais, revezamento de novidades obsoletas, assuntos sem tempo para a memória... despedidas

a noite indo embora novamente, sonhos embalando sonos perdidos, olhos se fechando matutinos

retomando o fôlego para mais um ontem que se inicia e (maldição)... segue a vida


Rinaldo Leriano (Brasil)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (IV)


Sou...

Sou um homem, uma vaga nocturna, um espelho retorcido, uma miragem definida que busca um oásis perdido no epicentro da árida normalidade. Sou uma inebriada meditação, uma concepção esquecida, uma extasiada reflexão. Um desastre sociológico. Aparo lápis com as têmporas, mordo a realidade. Também derreto madrugadas, por vezes. E relógios, e ponteiros. Sou um atraso pontual, um crime incendiário. Banho-me com insónias, barbeio-me com furor. Porque as palavras envoltas em ferocidade ceifam-me os dias lentos. E inscrevem-se na linha dos sentidos, numa qualquer página distante.
 
 
Bruno Vilão

quinta-feira, 21 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (III)


Um mundo cão 

Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me servem os barbitúricos.

Herberto Hélder 

Sempre tentei correr pelo lado corrente da vida, mesmo que na contracorrente do que sou – eu, em
mansa mente – sem objecções de monta, sempre atento para fora, sempre contrariado por dentro. Obstinado em objectar interiormente, por vezes; outras, feito homem feito, a teimar em seguir o meu caminho, alargando o passo direito a nenhures.
Corri por todo o lado, cheguei a ouvir uma conversa de dois cães de guarda, fugidos da decrépita constelação do "Cão Maior", cuja função era prever a última hora de luz na terra. 
 – O senhor vem do fim do mundo? Inquiriu-me um deles. Eu não deixava de o observar, receoso de que me fizesse uma pergunta ainda mais difícil, do tipo “Sabes ladrar?” Nunca dominei bem o idioma dos cães, apesar de ser verticalmente um cinófilo. Não obstante essa minha incapacidade, até consigo falar com pessoas, estrangeiros e outros que não se calam só para se poderem ouvir.
No entanto, digo-vos: aquele canídeo era um animal complicado, sem termos de identidade ou residência, um cão livre, improvável. Provavelmente um cão anarquista inscrito na "carbonária", que, sem porquês, me pergunta de novo: 
 – Sabes se por aqui é proibido proibir o permitido? Logo a mim, que não me queria envolver em questões políticas. 
 – Não sei, não, não sou de cá. Só cheguei há uma hora e tal e estou de passagem… Por enquanto, não me proibiram nada. E fiquei-me por ali, sem mais nem porque não, sem abrir a boca. 
Por azar, sou topado por um polícia, um dos da secreta, que estendendo a orelha até ao pé de nós, acabou por confundir pergunta e resposta. O que foi o suficiente para perceber que tinha dito (ou calado) algo errado, notei-o imediatamente na expressão do agente policial. Ainda assim, exerci o meu livre arbítrio até ao cúmulo de perder o controlo de mim, ao dar ouvidos a certos latidos.Também nunca percebi muito bem se estava numa via de passagem, ou aonde ia nessa minha viagem. Mas, o polícia, (o tal, o grande orelhudo), que nem era bicho nem homem, teimou em ensinar-me o caminho da liberdade de ser preso. A liberdade de ter comida a horas e camarata certa.  A partir de então, nunca mais quis ser livre. Pelo menos, livre em todos os sentidos que não me permitem. Vivo ainda hoje abatido sob o pesado jugo das palavras-incompletas, das palavras-meias-verdades, das palavras-que-ficam-por-dizertudo pode ser ouvido, mesmo que não seja dito com palavras significantes.  São como que falsas palavras, palavras insignificantes com mau significado: sugestões que nos arrastam para a lama da censura, murmúrios que rugem com a raiva de marés vivas, silêncios que trazem a nortada nas entranhas para nos silvar castigos.


Joshua Magellan

quarta-feira, 20 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (II)



O mercador de palavras

Ameixa a dissolver na boca gulosa, derramado, um doce líquido se espalha, feito tinta coagulada.
A boca, pois, degusta outra fruta, do degustar contínuo cresce a fome descontrolada, de boca em boca, todas cheias, saem verborreias condicionadas, com convenção e política exatas. São postos, então, terno e gravata. Poderes estão sempre alimentados, saciados em prol do bem-estar do corpo social.
Dirigidos para decência do espetáculo, quando famintos, apurados os fatos, há sempre um condenado, bode expiatório, subordinado em flagrante autuado – o poder sempre quer mais sem mea culpa. Conjuga-se o verbo em qualquer tempo, apodrecidos os frutos, lançam-se novas sementes ao vento, o capital se apodera da poesia, da flor, do belo recolhido em pensamento.


Manuela Barreto (Brasil)

terça-feira, 19 de junho de 2012

SETE PROSAS SURREALISTAS (I)


Esperei por ti até ser eclipse

Ainda resistes? Haverá café nos joelhos excrescentes da tempestade que nos agride com a carne do mesmo único osso onde podemos agarrar-nos ante a sonolência que nos sonega o não podermos navegar? Haverá vida para além da sorte? Haverá céu na boca, ou apenas um tecto estéril de palavras? Haverá planetas a nascer no teu sorriso? A última vez que estive no parque vi um cisne debicar o chão onde outrora o pão crescia. O cisne não conhecia nenhuma das minhas lágrimas. Não chorei para ele, mas partilhei a minha fome de asas. É mais fácil falar disso com as aves que não voam — a frustração delas é, porventura, maior. Será que vais gravar este texto, ou despenhar-se-á no torniquete de lixo que incopiosamente descartamos? Será que alguma destas respostas terá pergunta? Será que está tudo do avesso? E se estiver do avesso? Tenho uma manga enfiada no parapeito do coração, queria atravessá-la com um rio que não corra, que não imerja com vidros inquebráveis. Alguém me disse um dia, um dia especial como os outros, "tudo o que seja coração deverá partir-se; aprende, querido, a viver dos cacos". Disse assim. Depois morreu. Ainda esperei que voltasse. Tanto tempo. Nunca fui de futilidades como acreditar em necrologias ou astrologias. Sempre preferi os passatempos do jornal para aproveitar a sombra. Um dia houve, porém, em que se me afigurou vê-la num remoinho de café. Nada mais que a minha memória rodopiante. E os teus lábios de açúcar secos como um túmulo. Não falo de ti. Tu estás aí. Acompanhas-me. Sempre acompanhaste. Eu estava descalço e tu corrias no precipício dos meus olhos. Quis fechá-los ao julgar-te cair. Mas afinal voaste. Era o teu dedo nas minhas pálpebras, não era? Diz-me. Prometo não me vingar. Aliás, nunca vingo. Basto-me com um silêncio mordaz. Afago as explosões do silêncio nos teus ombros e sigo adiante com a cara lavada. O corpo lavado — que saudades me sobressaltam de um beijo de imersão. Onde estás tu? Onde estás?
 
 
Renato Filipe Cardoso

domingo, 17 de junho de 2012

Provocatio



Sem ruído

Os actos importantes não são ruidosos. Quando as coisas se desmoronam e caem, o acto mais dotado de sentido pode consistir em ficar-se sentado.


Carmo Miranda Machado

sábado, 16 de junho de 2012

Crónica Benzodiazepina



O amor nunca é demais

A minha cadela está muito mal. Está muito doente e tem mais de dez anos. Desenvolveu uma coluna vertebral psicológica e esqueceu-se da real, e com isso foi perdendo sensibilidade nos membros posteriores que agora arrasta penosamente. Quase não ouve. Os olhos belos e meigos estão baços e pouco devem ver. Os pelos do focinho estão da cor dos cabelos de um ancião. Treme muito. Volta e meia, ladra, chegámos à triste conclusão que é de dor. Nos próximos dias vamos dar-lhe um medicamento que a alivie das dores, depois vamos fazer de conta que somos o deus todo poderoso, decidir que a qualidade da vida já não é suficiente e levá-la para uma injecção misericordiosa.
Ontem sentei-me ao fundo das escadas que ela já nem tenta subir, de forma que ela pudesse pousar a cabeça no meu colo. Estivemos a ver o pôr-do-sol.
Eu nunca menti à minha cadela. Acredito que ela também nunca me mentiu. Se lhe dava para arrancar uma fralda cheia de cocó dum saco de lixo para depois a desfazer, não tinha pudor em fazê-lo à minha frente. Nunca vi, nesses e noutros episódios, motivo para gostar menos dela; e ela parecia ser sabedora do mesmo amor incondicional.
Nos dez anos que a Corkie me acompanhou, amizades se fizeram e caíram nos esquecimento, paixões de Primavera, amores de Verão, Outono e Inverno. Relações alternativas, familiares e tudo o que não me recordo, veio e foi. A Corkie foi indiferente a tudo. Mantendo-se fiel apesar de todas as minhas variantes, todas as minhas asneiras, todas as minhas hesitações.
O amor nunca é demais. Demasiado é o que se pede em troca.


DuArte

sexta-feira, 15 de junho de 2012


Um convite sem álibi 

É excitante! São dias torrentes, a contra gosto espero seu convite para jantar. Sim, sem minha vontade, porque fui criada numa tradição em que vocês, homens, convidam-nos para sair. Já pensei sim, já pensei em agir de outra forma, mas, acredite, seria considerada uma vagabunda, uma vadia. Não é dessa forma que vocês expressam tal atitude?! Sim, eu seria uma vadia insana, concordo com você por outra perspectiva. Eu gosto de vocês, há desejo, precisaria ensaiar um convite. Aconteceria da seguinte forma: chamaria, pela primeira vez, um rapaz por quem estivesse interessada para sair comigo, não importa o ambiente, sempre há o álibi – o convite é o álibi, antecede-o; para que não haja julgamento precipitado e a condenação não seja com base em pressupostos não comprováveis, levaria a um local público, óbvio, condizente com hábitos também não pré-julgáveis, ou seja, cinema, teatro, exposição, algum espetáculo, nada de bebidas. Pois bem, suponha que ele aceitasse o encontro, não sei quais seriam os próximos passos, enquanto vocês, homens, dão saltos, nós, mulheres, somos adeptas de rodeios, voltas, retornos, curvas, prolongamentos. Sim, de certa forma, fomos conduzidas a isso. Jantaríamos num restaurante modesto, seria descontraído e pouco intimista. Com todo esse percurso, ele chegaria à conclusão de que era uma saída de amigos, sem segundas intenções. Consigo me sobrepor à condição de mulher de tal forma articulada, e afirmar esta mesma condição em outra perspectiva, até então haverei superado meus pré-conceitos, de resto, espero que o homem aja.
Não fiz o convite. Sou jovem e ultrapassada. Fui criada assim, ou nasci na época errada. Gosto de andar contra a maré. As mulheres estão rápidas, um cartão de visita e economizariam tempo. Convidam para encontros efêmeros, aventuras dispersas. Às vezes, leio jornal, gosto muito da sessão de classificados. Enveredei por novos caminhos. No início, senti um incômodo necessário, depois, penetrei naquele universo de inclassificáveis. Mulheres que vendem o próprio corpo, homens que fazem o mesmo, publicam pequenos dizeres, ao gosto do freguês, alguns são mais românticos, outros, mais diretos, então, percebi gêneros em contextos, a similaridade entre eles. Corpos que se assemelham ou se invertem pelo discurso. Corpos simulados. O discurso é o corpo. Criei uma persona, invenção de mim mesma. Anunciava em jornais venda de casas – uma forma de lidar com uma solidão tão particular – com informações diversas, muitas vezes díspares, inventava modelos, arquiteturas, decorações. O gosto por isso cresceu de tal forma que tive nomes e sobrenomes de variadas nacionalidades. Passava horas ao telefone com o suposto locatário, contava sobre minha vida, meus filhos, meu marido, namorado, enteado, cunhado, sogra, sempre havia um empecilho para a concretização da visita e do aluguel, enquanto me tornava exímia em estender a conversa e em ouvir. Aos poucos, descobri aqueles corpos no palco da mídia, desvelei a realidade ignorada. Em um descuido coloquei o endereço certo, recebi uma visita, chamava-se Odete Rios. Tornámo-nos amigas, em meio a tantas ideias partilhadas, ela recitava seus poemas:

"Crês que o amor é teu oposto?
- enganas-te!
O verdadeiro amor sou eu, tua
[semelhante!]
Não vês uma sombra misteriosa
desenhada nos traços do meu rosto?
Não te atraem os meus olhos
como um ímã poderoso?
Não sentes os nervos vibrando
como cordas tangidas
por mãos invisíveis?
É meu pensamento atuando sobre ti!"

Aceitei seus posicionamentos amorosos. Eu e Odete éramos solitárias, em cada uma transbordavam pensamentos desalinhados do sistema, mudava a forma. Ela desejava as mulheres e as convidava para sair, transmitia sexualidade. Eu desejava o oposto e jamais efetuava convites. Eu me inventei locador, ela se fizera locatária, fora tudo uma brincadeira curiosa, uma performance perversa. Odete também construíra sua persona e fizera o convite. Não aceitei. Era dela o álibi.


Manuela Barreto (Brasil)

quinta-feira, 14 de junho de 2012


Ela já não mora aqui

Ele entrava e saia da vida dela ao sabor dos seus próprios caprichos. Por vezes sim, outras vezes não. Ela nunca sabia. Entristecia-se nas idas e acolhia-o sorridente nas voltas. Um dia ele foi e tardou em voltar. Ela chorou o seu amor. Tempos depois ele sentiu saudades dela. Recordou a sua voz doce e risonha e o seu rosto sempre iluminado por um sorriso. Precisava dos seus beijos e de senti-la de novo sua. Apressou-se a regressar.

Ela já não mora aqui. Partiu feliz e sem deixar endereço.


Missanga

quarta-feira, 13 de junho de 2012


Modo-errata

Conduzo-me através dos dias a trezentos estados emocionais por minuto. É por essa razão que quando penso que detesto o alter-ego pedante e pretensioso que habita em mim acabo por escrever que o adoro. Era ele a escrever por mim. Em modo-errata, entre a realidade que se ousa ter e a vida que se ousa sonhar, cerro as pálpebras e sinto-me rodopiar. Nada me detém. Todo eu sou movimento. É uma chama a sussurrar por dentro. Esqueço-me então que habito numa paisagem de aridez extrema e quebro, imóvel, diante do momento. Não sei se grite, não sei se fume. Certo, é que tenho a alma cheia de lume.


Bruno Vilão

terça-feira, 12 de junho de 2012



O PERDÃO CEGA DENTRO DO SANGUE

O perdão cega dentro do sangue que voa
A jangada comprime-se entre o paladar justo das pálpebras
Agarro o vento entre dentes
e cuspo tratados, duendes, crenças e lágrimas cansadas

O perdão sangra acima da jangada pálida
A navegação entorna o mar dentro dum trago esventrado
Agarro o vento entre as pálpebras
e salivo dentes, capitais, poemas, aço e dores cessadas

Do teu olhar trespassa a solidão e pobreza dos deuses
e abro a boca e pandoro-nos
perdoando a cegueira sanguinária do teu estertor utópico
porque sentir só tem um sentido: de nós para nós


Miguel Barroso

sábado, 9 de junho de 2012

Crónica Benzodiazepina


Falsas, dizem eles! 

O jornalista Nando Garcia (ex - El Mundo), criou uma agência para apoiar pessoas que se dizem prejudicadas, nos media. Entre os seus ‘clientes’ estão Gaetano Pisano e Blandine Pellet, dois artistas plásticos que vivem em Girona e que, há tempos, venderam algumas das suas obras ao nazi Aribert Heim. Tanto Pisano como Pellet afirmam desconhecer a vida de Heim à data da venda das obras e negam em absoluto as alegadas ligações ao nazi, que os media espanhóis têm sugerido. 
Pisano e Pellet querem repor o seu bom nome e exigem justiça junto da opinião pública. Por isso, recorreram à agência de Garcia, a quem também não faltam razões de queixa sobre os media, que diz terem arruinado a sua vida profissional, com a publicação de calúnias infundadas. Uns e outro contaram isto e mais coisas ao El País (onde eu os conheci, num artigo ironicamente intitulado “Demasiadas historias falsas”).
  - Há muita coisa a mudar nos media e os media. Não sei se a agência de Garcia, a CYNC é o melhor exemplo disso, mas é um bom sintoma. E o destaque que o jornal lhe dá, também.
 - Faz-me algum sentido que esta presença de Pisano, Pellet e Garcia nas páginas do El País seja fruto do trabalho de media relations da agência do ex-jornalista do El Mundo. Mas isto não está lá no artigo. Sou eu a pensar alto ( e a achar que ele não trabalha nada mal…)
 - Faz-me sentido que Pisano, Pellet e Garcia procurem limpar os seus nomes precisamente onde acham que se sujaram: nos media, isto é, junto da opinião pública. Os tribunais já não são suficientes.
Mas, e se o El País tiver sido precisamente um dos jornais que antes lhes ‘sujou o bom nome, a integridade pessoal e profissional’? O jornal não é explícito quanto a isso, mas pode ter noticiado o mesmo que os outros, é o mais normal.
Então: o jornal publica uma notícia a acusar ligações entre o casal e o comprador de arte nazi e meses depois publica outra a explicar que o casal se queixa da notícia anterior acusando-a de falta de verdade e rigor, mais: diz que o casal se juntou a outros queixosos de outras notícias pouco verdadeiras, numa agência que nasceu para ajudar gente que se queixa de ser injustiçada e maltratada pelas notícias dos jornais, e trabalha para repor a verdade e o seu bom nome. Onde? Nos jornais, justamente.

Não sei bem dizer o que isto é. Mas é modernaço!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 8 de junho de 2012



Para a Joana Santos

Estou exausta...

Começa com um desabafo. Um desabafo que nos tira o ar. Um desabafo que nos faz lembrar que tudo começa com o problema de respirar: problema resolvido de cada vez que encontramos um pouco de oxigénio para inspirar; problema renovado de cada vez que terminamos de expirar, exaustos e sem ar, de novo à procura daqueles centímetros cúbicos que nos permitam seguir em frente, à procura de mais, mais ar, sempre mais ar.
Este problema, sempre presente, reconhecêmo-lo aos berros desde o primeiro instante, quando nascemos, percebendo o contrato infeliz que acabamos de assinar. Porque respirar custa muito. Viver tem custos altíssimos e ninguém quer assumir as despesas. Viver implica uma tal inquietude que leva muitos a desejar a morte, cansados de um currículo que ninguém até hoje soube ensinar, e que, apesar de tudo, todos insistimos em aprender.


DuArte

quinta-feira, 7 de junho de 2012



A minha alma

Não sei se alguma vez conheceste a minha alma. Mas sei que há muito tempo que não conversas com ela, não sabes o quanto ela mudou, o quanto ela está a pedir desesperadamente para que a oiças.
Ou já não. O prazo acabou. A minha alma já não precisa que a oiças. Porque agora encontrou maneira de se ouvir a si própria.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 6 de junho de 2012



Na escuridão do mundo  

O mundo tem lugares escuros. E não são somente os locais dessa África imensa onde se perece de fome, de sede, de crueldade, onde tantos morrem sem nunca terem vivido. Nem os campos de batalha de guerras sem nome e sem sentido. Ou os sombrios becos da vida onde se rouba, mata, viola, agride. Há lugares escuros dentro de nós, dentro daqueles que amamos. E, por vezes, esses lugares turvam-nos a alma. Porém, sem esta escuridão, não reconheceríamos a luz. São as duas faces da mesma moeda. Perco-me para me poder reencontrar, na eterna dualidade que existe dentro de mim.


Missanga

terça-feira, 5 de junho de 2012

Palavras Versadas


TU NUNCA FOSTE UM ANÚNCIO

tu nunca foste um anúncio
nunca vendeste nada
nem sequer o teu amor

tu nunca tiveste qualquer pequena coisa
à prova de bala
tu nunca escreveste coisas simples
{coisas como eu gosto de ti
ou és especial}

tu nunca foste uma resposta
e talvez por isso te perguntei
tanta coisa.


Sylvia Beirute

domingo, 3 de junho de 2012

Provocatio


O fim da greve é grave!

Greve! 
Sciopero!
Strike!
Grève!
Streik!
Stailc!
Strajc!
απεργία!
Huelga!
Staking!
Stavke!
стачка! 
Sztrájk! 
Strejke!
Lakko!
Streik!
štrajk!
Streikuoti!
Streiks!
Grevă!
Strejc! 

Mais do que as palavras que mudam tenho muita pena das que se desgastam e deformam. Com o tempo são condenadas a uma existência formal espalmadas nos dicionários. Até ao dia...


Iolanda Bárria

sábado, 2 de junho de 2012

Crónica Benzodiazepina


As estrelas do breu

A noite só cai, verdadeiramente, em lugares onde o excesso de iluminação ainda não chegou. Nos grandes centros urbanos nunca é, realmente, noite. A luz eléctrica ilumina ruas, estradas, lojas, fontes, pontes, discotecas, mendigos, bandidos, prostitutas e toda a sorte de, noctívagos. Só fora desses centros podemos contemplar a noite em todo o seu esplendor, a escuridão imensa que se abate sobre o mundo e que torna tudo ao nosso redor invisível. Há uns tempos passei uns dias em Santa Clara. Era inverno e a casa rústica onde fiquei situava-se ligeiramente fora dos extremos da localidade, na sua parte mais alta. Gostava imenso de, ao final da tarde e já noite cerrada, vestir um agasalho, sentar-me no pial e olhar para baixo, para a aldeia muito branca e sossegada. Estava iluminada e das chaminés das casas, tão tipicamente alentejanas, saía o fumo das lareiras que aqueciam o lar. Olhava em volta e a escuridão imensa surpreendia-me. Não se descortinava absolutamente nada para lá da aldeia. Era como se estivéssemos numa ilha no meio do vazio. Sobre nós um céu negríssimo pejado de estrelas. Uma escuridão tão absoluta atrai-me de um modo irresistível e, simultaneamente, desperta em mim sensações ancestrais: medo do escuro, medo do que ele possa ocultar. Não passa, contudo, duma sensação vaga praticamente encoberta pelo êxtase celeste, pelo silêncio quase perfeito. Conforta-me saber que ainda há lugares assim, onde posso, realmente, ver o céu e sentir o respirar da terra. E sentir-me parte deste todo.
 
 
Missanga

sexta-feira, 1 de junho de 2012



A uma certa Lolita

A fugaz eternidade dos nossos felizes momentos

Julgámo-nos mal, julgámo-nos incapazes de jogar. No entanto, jogámos. Jogámos ao ar palavras de desprezo, em bocas de fel. Jogámos fora as intenções dos outros – os planos que os outros tinham para nós eram outros para nós mesmos. Atraíamo-nos como pólos opostos de cargas harmonizáveis. Jogámos ao ar os dados de um jogo perigoso: ambos perdemos o orgulho para ganhar a sorte de cálidas noites plenas de ventura. Foram noites de ácido e mel, noites de intensos silêncios sem promessas. Pelo chão, como que deitados fora por uma vida sem sentido, os nossos corpos encontravam tantos sentidos por despertar. Uma estrada branca em torrente nos levava tão longe que temíamos não conseguir encontrar o caminho de volta. Numa das mãos, segurava cautelosamente o meu fio de Ariadne; com a outra, prendia a tua mão, percorria o teu corpo fundido por toda a nudez. Um rio corria contra as margens dos nossos viveres, separando-nos tão juntos. Mergulhei na superfície fria do azul dos teus olhos quando me negavas a profundidade do teu íntimo. Emergi até à apeneia, por não poder respirar para lá do teu respirar. Apenas escuridão abaixo das palavras caladas, apenas medo sem retorno. Beijámo-nos despedidamente para não nos voltarmos a ver. Desfizemos os laços feitos pelas nossas mãos, fomos afastando o olhar até perdermos a vista um do outro no culminar do anonimato da multidão. Restaram em nós os breves e felizes momentos das nossas vidas há muito separadas. Restaram as luzes acesas nessas noites em que nos queimámos tão vivos. Ainda agora guardamos presas aos nossos olhos as estrelas, que se desfazem em centelhas quando por breves instantes nos voltamos a cruzar. 


Joshua Magellan