sexta-feira, 18 de maio de 2012



Sem res-sentimentos

“És sempre a mesma coisa!”, disse-lhe eu muito irritado. Ela indignou-se, achou injusto que a sentenciasse assim tão sumariamente – “como podia alguém que a amava ser tão crítico e administrar um acicate psicológico tão negativista!?” Estávamos para ali atirados os dois a arguir razões de que nenhum de nós dispunha, ambos deixáramos de ter razão antes de todas as palavras em que nenhum de nós foi racional. O nosso último reduto era unicamente a falta primeira de razão do outro; e essa era a nossa razão mais segura. Dissemos coisas que não devíamos, e ficámos mudos ao perceber que a voz pode ser uma bomba com um efeito nuclear e letal, se transmitir por palavras as ideias com a carga de urânio e plutónio certa. O rastilho de uma bomba sentimental acende-se com motivações pouco razoáveis, com mágoas que caem no estômago como indigeríveis pedras e por ali ficam alheias aos porquês do afecto. Discutimos, até que as palavras se nos azedaram nos lábios crus. Zangámo-nos veementes, inamovíveis. Achámos que era melhor cada um de nós seguir o seu caminho, separámo-nos verbalmente. O vazio dividia os nossos mares, para deixar passar uma torrente de diferenças insanáveis, tal como na metáfora de Moisés. E por ali acabámos tombados na promessa de queimar o futuro que julgávamos não ter, deitados numa insónia em quartos separados. Fiquei algumas horas sem conseguir a reparação do sono que previa agitado. Passei a atenção por um programa sobre o Maio de 68 e não pude aguentar mais tempo separado dela. Subi ao seu quarto, acordei-a com beijos, abraçámo-nos, chorámos ambos nervosamente sentidos, sentindo na boca o sabor de uma perda plausível. Despertámos para a ternura, tomámos um chá e comemos torradas. No dia seguinte, fomos até à beira-mar passar o fim-de-semana, como que para fugirmos da explosão de emoções que naquela noite tinha deflagrado nas nossas mentes doridas. Viajámos juntos como se fosse a primeira vez, levando na mala a certeza de que os sentimentos são coisas demasiado importantes para se aventarem como coisas.


Joshua Magellan

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