quinta-feira, 3 de maio de 2012

SEMANA DA LUSOFONIA (III)



Começar de mim 

Não sei por onde hei-de começar a escrever. O próprio começo sugere um fim. Os próprios pontos são tiroteios até alguém se queixar de uma dor de cabeça vermelha. Impossível ver um fim quando o infinito se debruça sobre constelações de crianças em roda. A minha consciência esta noite saiu sóbria do bar e pagou uma conta com um queixo partido. A desfigurar a palavra. Cambaleou até ser pequena o suficiente para caber numa sarjeta ou num escape de táxi onde era proibida a entrada a sangue sem álcool. A vida está-me demasiado diluída neste apartamento. As janelas fechadas. Os estores fechados. Nada aqui contribui para uma cratera na atmosfera. É um terror lento, uma esfera que rebola sobre as divisões até me obrigar a sair para a rua. Nada me espera nesta casa senão o conforto e os planos de uma ideia. Planos. Planos. Planos. Terrenos planos em erosão. Esboços de máquinas sem motor. Animais invisíveis que eu apalpo e que os outros apenas ouvem o rugido. Confessionários sob escuta mas sem provas evidentes de algo humano. Pecado, fodas, pecado. Se és humano, ao menos, peca sem medo de seres odiado! Deixa-te apedrejar uma vez na vida para veres as caras a sorrirem com o teu sangue. As tuas larvas em fogo a descerem pelo teu corpo… o teu corpo, a tua bolsa lacrimal inflamável. Aprendi a tirar gotas de mim. Aprendi que o meu corpo é uma mancha sagrada de um petroleiro suicida e um teste de rorschach na respiração azeda de um bêbado, vómito. Ao mesmo tempo, sou um bípede que pinta com as mãos e um soutien provocador de unhas e pele esmurrada. Hoje estou sensível. Pele… deixei-te pendurada no estendal da roupa.


Ricardo Alexandre (Portugal)

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