domingo, 29 de abril de 2012

Provocatio



Alta fidelidade ou como ser "in"

O problema da fidelidade é o glamour da tentação. Somos todos in-fiéis? A infidelidade só existe porque existe a fidelidade. O que significa que fiéis há muitos, só não andam em cruzadas. In-consequentemente testo a minha fidelidade ao limite. Arrisco mesmo. Não acredito muito na fidelidade por falta de opções. Acredito que a mais alta fidelidade só acontece apesar das opções. E isso é "in".


Ana Santiago

sábado, 28 de abril de 2012

Crónica Benzodiazepina


A mentira 

Há pessoas que mentem compulsivamente e fazem-no com a mesma naturalidade com que respiram. De entre estas há os bons mentirosos, aqueles que constroem uma estória e dizem exactamente a mesma mentira vezes a fio, sem nunca se enganarem. E há os maus mentirosos que se traem a si mesmos na primeira oportunidade, incapazes de manter a mentira e muitas vezes sendo os únicos a não darem por isso.
Os restantes, os que não mentem compulsivamente, mentem de vez em quando, na maioria das vezes por alguma espécie de necessidade momentânea.
Nas raras ocasiões em que menti, além da mentira adicionei toda a espécie de justificações para que a mentira fosse efectivamente convincente. A última vez que o fiz, o visado disse-me simplesmente que não precisava de justificar nada. Só aí percebi que se não estivesse a mentir nunca me passaria pela cabeça justificar o que quer que fosse. Por ser verdadeira, a minha palavra bastaria.
Desde então tenho, quase inconscientemente, prestado mais atenção às palavras que se dizem. E é um facto incontestável. Normalmente, atrás de uma mentira vem um rol não solicitado de justificações que a denunciam.


Missanga

sexta-feira, 27 de abril de 2012


Contorções 

O meu corpo contorce-se ao primeiro sinal de ausência. E tal como o Herberto Hélder, “eu procuro dizer como tudo é outra coisa”. A ansiedade atravessa-me os poros e estala-me os ossos. Faz-me perder o sentido das proporções. A alvorada dos sentidos estremece-me de norte a sul. É crepitação copo a copo, transpiração corpo a corpo, inspiração boca a boca, emoção louca a louca. Não há banho que me lave. Tudo é intenso. Nada é suave.  


Bruno Vilão

quinta-feira, 26 de abril de 2012


SÓ O MAR VOLTA SEMPRE

Só o mar volta sempre, sempre, na manhã seguinte. O resto é uma incógnita. Aquilo que pensamos que somos hoje, amanhã pode parecer uma tolice. Ou até uma miragem. E assim, de que vale a preocupação permanente? As frustrações são uma necessidade. Fazem parte do processo e não podem derrubar-nos.
Encontrei-me pela primeira vez no aeroporto de Milão, Malpensa. Deixei Lisboa com destino ao Cairo com uma sensação de calma, embora sabendo que havia assuntos importantes por resolver. Percebi que, mais uma vez, o prazer de viajar se sobrepunha a todos os outros... ou quase... Talvez eu nunca me fizesse compreender na totalidade mas, ao mesmo tempo em que pensava na hipótese de ter um filho, pensava também que ele me prenderia para sempre à terra, logo eu que não imagino viver sem voar.
Portanto, havia que fazer escolhas e estabelecer prioridades. Não serei nunca plenamente feliz, sabia-o agora. Porém, haveria alguém que conseguisse alcançar plenamente esta estádio absoluto e permanente de bem-estar? Por isso, chegara a altura de viver o presente e não aspirar a coisas impossíveis. Uma gestão dos altos e baixos das minhas emoções já seria excelente. Finalmente, começara a aceitar a inevitabilidade do quotidiano, a rotina nem sempre quebrável de uma vida a dois, a sensação de vazio que por vezes surgia. E comecei a aceitar que, no amor como na bolsa, quanto mais se investe mais se perde.
Acordei cedo e subitamente. Não me apercebi de imediato onde estava mas aos poucos, o som dos minaretes recordou-me: estava no Cairo. Esse Cairo distante, de fascínios vários, que me atraía desde que me lembrava... As minhas companheiras de viagem dormiam ainda profundamente. Deixei-as no quarto número 34 do Windsor Hotel, o mesmo que no início do século serviu de guarida ao Clube de Oficiais Britânicos no Cairo. O Hotel mantém todo o seu traço característico de então, com o seu ar decadente, visível em todos os pormenores... Mas a magia continua lá, por entre mobiliário, tapetes e empregados de ar suspeito, todos com muitas, muitas histórias para contar.
Desci para o pequeno almoço. O primeiro naquela cidade. Uma sala habitada por dois empregados solícitos, alguns casais alemães de meia idade, alguns casais e um ou outro viajante solitário. O primeiro dia no Cairo foi para sentir a cidade, deambular pelas ruas, sentir a vibração da cidade. Explorar alguns locais como o Museu Egípcio, a Cidadela, a mesquita Assan e o internacionalmente famoso Khan Al-khalili.
A cidade parecia adormecida perante um sol escaldante e só após este se esconder por detrás dos minaretes, a cidade renasce e surgem multidões de todos os lados. Os carros repicam as buzinas e o dia começa no Cairo, ao final do dia... Tudo se vende e se compra. Tudo está em constante movimento. Mesmo o principal cemitério da cidade ganha vida com os muitos homens que o escolheram como habitação.
As Pirâmides, uma das sete maravilhas do mundo, remetem para tempos idos, reflectindo a imponência de um povo e de uma cultura. Sakkara e Gizé apontam o caminho do passado ao mesmo tempo que nos fazem sentir seres ínfimos no meio da imensidão das areias do deserto.
Do Cairo, segui para Alexandria, cidade virada ao mar, ao longo de vinte quilómetros de costa. Ali, o mundo quase parecia parar apesar das multidões em constante movimento. A magia da cidade sobrepõe-se a tudo o mais. A Biblioteca Alexandrina transporta-me para longe dali. As ruas, os cafés, com as suas esplanadas abertas ao mediterrâneo fazem lembrar a Europa e parecem encerrar histórias de aventuras, de mistérios, de paixões... Mas os cachimbos de água fumados ao sabor do mar fazem-me recordar que estou em África, a meio caminho para a Ásia.
Amanhã sigo para o Oásis de Siwa e depois para Daheb, na Costa do Sinai. Mas voltarei ao Cairo. Sempre. Tal como o mar. Que volta sempre na manhã seguinte.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 25 de abril de 2012


A mania de procurar o coração das coisas

Não é fácil dar com o coração das coisas, mesmo para quem já leva muita experiência nisto. Posso dizer que o coração do nosso Inverno está em Janeiro, o da Vi bate nas suas mãos é um coração que vive entre os dedos e a palma das mãos, mas demorei muito tempo a dar com o meu e perco-o de vista a toda a hora. O coração pode bater fora do corpo que habita e isso não é necessariamente mau. Só é preciso que não nos afastemos muito.


Iolanda Bárria

terça-feira, 24 de abril de 2012

Palavras Versadas

ECLÉTICO AZUL

quanto mais
quanto mais ainda menos
e o receio das palavras
de tentar ainda mais
ainda menos
um espelho de água
uns olhos frios
uma carne contra as notícias
quanto mais
quanto mais ainda menos
ir dormir
ir pedir razões ao subconsciente
ir nascer de uma ideia
não pensada
quanto mais
quanto mais ainda menos
ainda amanhecer na desculpa pendente
de grau superior
ainda pesar a metáfora e perder nela
a comparação
ainda calcular a cor e ver nela a dor
quanto mais
quanto mais ainda menos
ainda menos porque ainda mais
ainda mais mais.


Sylvia Beirute

domingo, 22 de abril de 2012

Provocatio


A Insónia de Ícaro

Sonharei
até que o sol
me acenda as penas
e o céu me leve
deste labirinto
por entre as nuvens
direito ao topo
de onde fugi

E caindo...
hei-de velar
eternamente


Joshua Magellan

sábado, 21 de abril de 2012

Crónica Benzodiazepina


NISHA SHARMA 

Tem apenas 22 anos e tornou-se a minha mais recente heroína. A poucas horas de se casar e, estando os convites para a boda há muito na mão dos convidados, Nisha decidiu cancelar o casamento. Tudo por causa do dote, um negócio oficialmente ilegal mas que continua a ser praticado em todos os estratos da sociedade indiana.
Indiferente ao facto de provocar uma verdadeira revolução, quando soube que a família do noivo pediu, no próprio dia do casamento, a quantia de um milhão de rupias como dote, a noiva chamou a polícia e o noivo foi detido. Nisha transformou-se assim num ícone da Índia progressista e já há várias associações feministas a prestarem homenagem ao seu acto de coragem.
Gosto do país. Gosto dos cheiros. Gosto das gentes. Gosto das cores. Gosto da Índia em geral. Fui e vou voltar muito brevemente. Não gosto de ver as mulheres serem vendidas como gado, cada uma delas com o seu diferente preço.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 20 de abril de 2012


Uma canção de amor nem sempre parece uma canção de amor

Eu sou de Abril, e os de Abril habitam uma espécie de último reduto selvagem da humanidade.
Um traço de carácter d'os de Abril: custa-lhes esse fenómeno típico da alta civilização, que é aprender a gostar.
Custa, mas não é impossível. Aconteceu-me com a música do Mikkel Solnado.
Como pude em algum momento desprezar e maltratar 'We can do anything'?
Gosto tanto de ouvir 'We can do anything'!
Antes assim. É muito melhor descobrirmos que gostamos, do que o contrário. Mesmo que seja à força de o aprender!
Com o tempo, 'We can do anything' começou a revelar-se melódica e sem segredos. Ouvia mais e mais e  pensava:  isto é tão alegre, tão simples e sincero. Tão bom de ouvir!
Não é fácil conquistar os de Abril.
E é de aproveitar, porque não é todos os dias que se celebra o amor e a vida. Ainda para mais, com tantas palmas e alegria!


Iolanda Bárria

quinta-feira, 19 de abril de 2012


Urbana Miragem 

Ele caminhou mais duzentos metros, não sabia onde ficava a esquina, para a qual orientaram o acesso: - vire à direita, a terceira esquina à direita. Caminhava sem direção, um tanto distraído, desconhecia as lojas, botecos, a feira local inexistia. Constrói cada momento no desvendar dos olhos. Apelidaram-no Miguelito, sufixo familiar. Neste dia, acordou cedo, foi ao comércio e comprou lantejoulas prateadas para enfeitar a roupa, enchera a sacola de tecido bordado, até que essas transbordassem. O amor requer certo deciframento. Após caminhar mais cem metros, um encontro. Você não pode ver o brilho do sol contido. Havia sim um transeunte maravilhado com aquele efeito.
Curioso, dobrou a esquina anterior, uma cidade invisível não suporta detalhes. O tempo é instantâneo, o espaço escapa. O moço magro e misterioso seguia, um tanto carrancudo tecia arte. São dois transeuntes. Xaxado, após virar a esquina dera de frente com Miguelito. Não houve encanto. A beleza estava nas lantejoulas, Xaxado não seria mais o mesmo. Andou sem rumo, dizem, sem norte. Do contrário, aprimoraria a técnica. Na casa de Miguelito, todos eram cuidadosos, uma musa tem máscaras infindáveis. Escolheu uma calça branca, limpa, com pequenos remendos, uma camisa ciana, mais alguns feitos e estava coberto de lantejoulas. Feito no quintal de casa, os muros de pouca altura deram uma visão brilhante. Tempo em que Xaxado,ao passar de volta, ficara extasiado com súbita visão. Faria o mesmo de acordo com os costumes de seu povo? O sol brilhou naquele quintal, estrelas brilharam na calçada do comércio. Xaxado não viu.


Manuela Barreto (Brasil)

quarta-feira, 18 de abril de 2012


A sombra do medo

Abriu os olhos e viu-as nitidamente. Sombras dançando na cadência de uma qualquer música inaudível. Fechou os olhos assustada. Se continuasse a vê-las teria de consultar um médico. Um oftalmologista, um neurologista ou, na pior das hipóteses, um psiquiatra. Adormeceu inquieta. Os dias passaram-se e continuava a vê-las, cada vez com mais frequência. Já não pensava no médico. Observava-as atenta. As sombras divertiam-se, sempre em folia. De vez em quando, parecia-lhe, ganhavam contornos mais nítidos. Vinham junto dela, acariciavam-lhe o rosto e percebia que lhe falavam. Habituou-se a elas. Eram várias e faziam-lhe agora companhia todo o dia. Homens e mulheres numa algazarra muda. Brindavam, bebiam e dançavam. E riam, riam muito.

Subitamente, deixou de ver as ver. Soube depois que tinha estado em coma durante vários dias. Sentiu-se feliz por rever pessoas de verdade. Mas sentia saudades das sombras. Lembrou-se da alegoria da caverna. Também para ela as sombras tinham sido a única realidade durante demasiado tempo, ou assim lhe parecia. Um dia voltou a vê-las. Era já velha, muito velha e estava muito doente. As sombras vieram junto de si, na sua eterna folia, e o seu coração moribundo encheu-se de alegria.


Missanga

terça-feira, 17 de abril de 2012

Palavras Versadas


certo modo de foz

quadrante dos ombros percorrido pelo astrolábio
leme desoriente no ocaso dos raios ultraveludos
guia, amor, esta mão pelos teus seios geodésicos
lembram-me a terra saudosa e a sua madrugada bege
o seu manso lume, e que todo o lume clama água
em cada poro um verso
em cada dedo uma oração
em cada beijo uma sentença
a navegação sentenciada sem rumo, e assim navego
beijo a tua rosa dos meus ventos
levo ondas a banharem a extensão curva das coxas
invado-te de humidade absoluta
— o nome eva repercute-se na minha maçã de adão
viajo em ti traduzido numa só língua
faço de ti um leito
verto-me, converto-me
arrasto as mãos como pedras pela tua corrente
agarro-te pelas margens, beijo-te pelos flancos
vou ao fundo de ti respirar
vens ao fundo de mim desaguar


Renato Cardoso

domingo, 15 de abril de 2012

Provocatio


A leste do meu ser

Tu não sabes, mas os pensamentos que pensas não são teus. Teu é o apego, a força com que os agarras, como se dependesses deles para manter-te vivo. Pensas tudo o que fazes, fazes tudo o que pensas. Entretanto, porque pensas o que não é teu, a tua mente está vazia.

O mundo que vejo foi feito com esse vazio. Foi feito da minha ausência.


DuArte

sábado, 14 de abril de 2012

Crónica Benzodiazepina


Coisas que deveríamos aprender no berço

A minha amiga S. acha que os bebés deviam ter um iphone acoplado à chucha. Para se irem logo habituando, justifica.
Eu, menos tecnológica (ainda que comece a achar bastante piada ao iphone), fiquei a pensar que não seria má ideia se o dito aparelho trouxesse inserido uma série de lições rápidas e fundamentais daquelas que, convenientemente, quase todos os educadores omitem aos petizes.
Numa das lições a criança ia aprendendo a importância de se dizer "não" quando realmente não queremos dizer "sim". Parece fácil dizer "não". Ledo engano. Quantas vezes dizemos sim só para não sermos chatos, desmancha-prazeres ou, simplesmente, para não magoarmos alguém. Só com o tempo vamos aprendendo que muitas vezes o não é fundamental para não fazermos fretes, para que nos respeitem e, sobretudo, para não nos desiludirmos a nós mesmos.
Numa outra lição imprescindível, a criança aprenderia que tudo na vida se pode mendigar, excepto afectos. Haverá pouca coisa mais humilhante que suplicar amor, carinho ou atenção a alguém que não tem por nós tais sentimentos. Muitas lágrimas, dores e frustrações poderiam ser evitadas se nos ensinassem isto logo no berço.
Facilmente continuaria a enumerar outras aulas elementares, se realmente achasse que as devíamos aprender deste modo. Não acho. Há coisas que só a vida nos vai ensinando e outras que só a maturidade nos permite pôr em prática. O riso, a felicidade e a realização não teriam sentido se não soubéssemos também as lágrimas, a dor e a frustração.


Missanga

sexta-feira, 13 de abril de 2012


Sou...

Sou uma dor de cabeça. Um copo a transbordar tumultos. A personificação da angústia. Sou um parente próximo do caos. Uma fagulha de desespero. Um fragmento de cepticismo. Uma centelha à chuva. Engomo ilusões, dobro fantasias, vinco a realidade. Sou uma ideia solta perdida em nenhures. Uma definição presa algures. Uma qualquer longa pausa. Um movimento. Onde está o presente estou eu imóvel, estupefacto. Onde está o futuro estou eu vestido de ponto de interrogação. E no meu cérebro... descobri uma outra porta secreta minúscula.


Bruno Vilão

quinta-feira, 12 de abril de 2012


Na cama com...

No sofá, no carro, no chão, na cozinha, no escritório, na relva... O sexo não escolhe locais e não exige colchão. Isso já todos sabemos há muito tempo e quem não sabe vê nos filmes. Por isso, não percebo porque é que se diz que se dormiu com alguém. Dormiu?! Será uma maneira de romantizar a coisa? Mas a coisa não valerá por si só? Cabe na cabeça de alguém dizer que fulano anda a dormir com sicrana, quando na realidade eles se amassam nas escadas da empresa? Ou que dois beltranos que se encontram à hora de almoço no hotel andam a dormir juntos? Bem esperta, foi uma adolescente que eu conheço, ao responder à avó: "Eu, avó?! Eu não durmo com o meu namorado! A avó não tem confiança em mim?". Engasguei-me à mesa e tive de conter o riso. A safadinha até me lançou uma piscadela de olho... A nova geração é muito mais esperta.


Ana Santiago

quarta-feira, 11 de abril de 2012


O fim do caminho

Chegámos a um ponto do caminho com a sensação de que poderíamos ter continuado. Até onde não sei. O que sei é que o percurso foi repleto de emoções, de todo o tipo, e que fica na boca, na minha boca, o gosto doce e quente das carícias que trocámos. Mas eu não sei continuar. Sinto-me esvaziada dessa força que gera as relações tradicionais. Não possuo essa capacidade. Sou porventura demasiado cobarde. Ou demasiado lúcida. Já não sei. Por isso, fico sempre a meio do caminho. E volto sempre com a sensação de que talvez um dia eu consiga. Mas sei que um dia vou reencontrar-te. Por mais que digas que teria de ser hoje, agora... e nunca amanhã.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 10 de abril de 2012

Palavras Versadas


Uma solidão nunca está sozinha

e da decisão lancinante perpetuam

paladares enobrecidos pela vista
do ninho donde – nua – esvoaçara
;
paredes inebriadas que tecem desarmonias
entre as dores que escorrem pelo cimento
e os diapasões frios da morte dos sonhos

Espraia-se ainda uma inimiga inocência
nas prateleiras daquela falida biblioteca


onde a relva sincera crua nunca cantou
onde as ondas andrajosas jamais sentiram
onde apesar do riso o pó ditou as horas
onde o sonho não se fez ouvir
onde os pés se embaciaram na solidão
onde opúsculos suicidam a ternura
:
Nascem pontapés das nuvens embriagadas.
Mães que fizeram greve aos soluços das infâncias.
Ouvidos raiados de securas ufanas defenestradas.
Areias feéricas do mel das memórias.
Criações censuradas pelo devir anestesiado
(
uma semente não se deprime


nem os gansos se usam a dançar
nem os ventos embebem puzzles


uma solidão nunca está sozinha
)
.
 
 
Miguel Barroso

domingo, 8 de abril de 2012

Provocatio


IMAGEM A DUAS DIMENSÕES

a minha velhice alimenta-se de juventude
e é incrível
uma energia de cansaço, dedadas
na imagem do amanhã
límpido & alegre.


Sylvia Beirute

sábado, 7 de abril de 2012

Crónica Benzodiazepina


O karma e a trindade

O que há de mais giro em relação ao karma é ele ser auto-imposto. Esse reconhecimento, só por si, já dispensaria a mulher-a-dias. O problema é que a mulher-a-dias é uma romena muito bonita e eu estou apaixonado por ela.
Por isso me custa tanto abrir mão do karma. Sem o karma não há mulher-a-dias, e isso eu não quero.
Isto a propósito de nos custar tanto abandonar os medos. É que muito do que pensamos ter conquistado nasceu precisamente desses medos, ou porque os vencemos ou porque eles nos venceram. Abrir mão do medo passou a ser sinónimo de abrir mão das nossas conquistas.
No sonho dualista, amores especiais nascem por oposição a ódios especiais e vice-versa. Sem os respectivos opostos, amor e ódio definham, o que induz mais medo no sistema, extremando ainda mais as posições, mais amor e mais ódio.
Apesar de este mundo ser uma miséria, fazemos fé de que não existe outro mundo à nossa espera, daí que tentemos a todo custo sobreviver, construindo pequenos oásis, os espaços confortáveis a que nos agarramos com unhas e dentes, abrindo trincheiras, cavando fossos em volta, algo que nos defenda das constantes ameaças, das quais os nossos sonhos também dependem.
Como foi possível ao medo, um efeito do mundo, substituir a sua causa, fazendo do mundo aquilo que agora conhecemos?
Foi tal a inversão, que se tornou fundamental a manutenção deste estado, a razão porque preferimos nunca mexer nos alicerces do mundo (o pecado, a culpa e o medo). As mesmas fontes de tudo o que existe de horrível no mundo partilham a tarefa de lhe dar causalidade, colocando-nos permanentemente perante o terrível dilema.

Se o medo não é verdadeiro, também não o é este mundo. Não pode ser.


DuArte

sexta-feira, 6 de abril de 2012


Afectuosamente ateu

Descobri há pouco que é mais penosa a perda de um amigo que o desatar de um laço amoroso. Na amizade, há uma sinceridade crua. No amor, há ilusão. E enquanto estamos iludidos amamos a imagem que temos da pessoa e não a pessoa em si, tal qual ela é. Tendemos a idealizar o objecto do nosso amor com os seus defeitos apagados e as suas qualidades aumentadas, a brilhar no embuste que armamos aos nossos olhos cegos. Até que a desilusão cai sobre nós docemente com uma palavra de conforto, como quem nos diz do topo do pessimismo: “vês, eu não te dizia que não valia a pena...!?”
Na amizade há uma expectativa desinteressada, um dar de receber sem nada querer em troca do que somos. Um afecto que é, como deve ser, dado por dar, só porque nos dispomos a dar, porque temos para dar, sem nos perguntarmos a nós mesmos se o que estamos a dar é consequência do que nos dão. Não existe um merecimento, nem uma sinalagmática, ou qualquer tipo de reciprocidade. Apenas o mal e o bem em vasos comunicantes, subindo e descendo, dando conta de que existe um circuito fechado em que tudo o que é vertido de um lado se repercute no outro.
Tenho algum pejo, digo, medo, ou talvez deva dizer, receio, em descrever afectos, escrever sobre eles, porque nunca me dei conta deles no momento em que realmente os vivia. Por não os saber, não os posso escrever ou descrever sem me mentir a mim mesmo, tal como o faço quando julgo sentir esses mesmos afectos, quando julgo dar-me conta de que eles estão – vivem – em mim. Essa é a certeza mais segura de que nada posso saber do que vivo, porque vivo fechado dentro de mim, à roda de mim.
Não creio no tanto que cri. Tornei-me ateu emocional depois de ter crido com fervor há muitas desilusões atrás. Desde o passado há tanto tempo que o tempo me atenuou a cor das feridas e me alisou a memória patente das cicatrizes. Fui descrendo a cada golpe, a cada desamor, a cada facada direita ao fundo do ânimo. Houve um tempo em que morri, para renascer depois no contar do tempo que me faltava viver.
Se conseguir não morrer antes de me cumprir etérea alma no vácuo de um sonho mais além, viverei somente por viver sem me dar conta do que sinto. A dimensão onírica dos nossos passos é a razão que dá razão aos afectos: sonhamo-los e, no entanto, não os vivemos fora desse sonho que não é mais do que a realidade de que não nos damos conta. Nunca somos os nossos passos, mas tão só a medida deles para lá do sonho.


Joshua Magellan

quinta-feira, 5 de abril de 2012


Encontros

Encontros imediatos em cruzamentos públicos são complexos de gerir. Aliás, já dizia o filósofo e psicólogo norte-americano William James que “quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é”. Daí a complexidade natural, agravada pelo clima do inesperado.

Mas quando ocorrem nas esquinas da imaginação convertem-se em tortura. Pura. Em pura tortura. Não se sabe o que fazer com esta visão e somos soprados para o campo da indecisão. E, uma vez mais, são as palavras de William James que nos entram pelos olhos, estancando-nos o fôlego e amortalhando-nos o coração: “Quando precisas de tomar uma decisão e não a tomas, estás a tomar a decisão de nada fazer. E não existe ser humano mais infeliz do que aquele em que a única coisa habitual é a indecisão”.


Bruno Vilão

quarta-feira, 4 de abril de 2012


"CONFESSO QUE VIVI"

As memórias são intermitentes, às vezes fugidias mesmo... Hoje, porém, recordo cada instante, cada momento, cada pormenor de um tempo em que fui feliz. E a loucura, aquela que anda de mãos dadas com a poesia, apodera-se um pouco de mim. As pessoas equilibradas nunca entenderão a poesia, nunca entenderão o vazio da perda.

Dei tudo o que tinha para dar. Mais não dei porque não tinha. Fui, pouco a pouco, esvaziando-me e hoje cheguei ao limite da embriaguez de nada. E quando ficamos sozinhos, tendemos a caminhar para as luzes que se avistam à distância. Eu nada vejo. Mas penso. Recordo tudo através dos seus olhos , do seu corpo... e sinto tudo a escoar-se por entre os meus dedos, como "a areia do tempo".


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 3 de abril de 2012

Palavras Versadas


AMADA LISBOESA

Ao lado da camisola, há rendas e fitas,
E o vento já rápido sopra nas varandas…
As janelas abertas, brancas e bonitas,
Mostram a cores de som as suas fulvas bandas.

As mesas listram-se, conforme em espirais
As taças de chá sobre elas lentas pousam,
E tapeçarias, à noite, são nácar, nupciais,
E ninfas da nave são brancas, e ousam.

Do cheiro que o Ar emana e da virtude que lhe sobeja,
Uma rútila rosa em luz e oiro brilha;
Irrealizam-se as cores, parte-se a bandeja,
O cavalo negro voa… não tem fim a maravilha!!!

O relógio a bater parte-passa uma cadência,
Aladas tílias aliam, não tem pausa o festival;
Ciganas, Cristinas, são Crato, e na ciência,
Ah, que lindo olor, tu és feito de cristal!!!

Uma cousa é brisa em mim, e bem medieval,
O castelo alado a bronze é roubado puro em Espanha;
Eu sou linda porcelana e brocado mais real,
Pátio de marfim que o Tejo sempre banha…


Paulo Brito e Abreu

domingo, 1 de abril de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (VII)


HENRIQUE CIMENTO ILÍCITO

Eu cheiro-o daqui da varanda e todos o conhecem aqui no bairro. Vai novamente concorrer às autárquicas, o pulha... Fez fortuna em pouco menos de dez anos, o tempo em que o começámos a ver nas reuniões do partido. De dedos dados com vereadores, e bebericando a troca de envelopes com a corja mafiosa que o segue, lá reproduz umas frases demagógicas (e mal salivadas) enquanto inaugura um centro de dia para idosos A oferenda que o próprio diz hercúlea mas cumprida, silencia o barulho da cadeira de rodas que transportou seu pai para morrer só e esquecido num lar de bolorenta categoria. E o povo aplaude. Tem oito processos em tribunal, – "...mas é bom homem" –, diz uma pobre alma do café que um dia recebeu um frigorífico em troca de um voto. Está tudo em nome da família, para não o apanharem. Contas nas Ilhas Caimão rivalizam com os processos. Henrique corta a fita e bebe champanhe com o mindinho esticado, como que apontando ao Céu. Da minha varanda vejo o aquário muito bem. E só não vejo melhor porque ele me construiu um arranha-céus nas ventas, donde o filho alcoólico disparou num vizinho meu - não fosse o juiz parceiro de ténis do "amigo" Henrique - que acabou por falecer. O cardume move-se e o borbulhar das palmas mede os anos que ficará na Câmara a sugar-nos o fígado, o pulha...
Este homem que se conserva no gelo da falsa verticalidade debita cor, música e esperança no futuro. Alapa-se ao leme do poder enquanto vai fechando as pequenas tascas onde dele dizem mal. O séquito de piranhas clonadas da máquina exponencial do sistema vai corroendo as esquinas de forma a que melhor se veja e mais longe se alcance. E o povo aplaude.
Claro que vai ganhar. Curiosamente a sede da principal oposição ardeu de noite e um outrora inimigo doutro partido degusta agora da mesma lagosta nesta mesma inauguração.
Eu continuo na varanda. Não pertenço àquela peixeirada. Sou sal dum mar severo e barco Português de pescador leal.


Miguel Barroso