sábado, 31 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (VI)


# 2.3

— Tens espuma no canto dos lábios.
O polegar, discreto, desponta em crescendo da mão e viaja num movimento premeditadamente curvo até à boca. Arrasta suavemente a sua impressão desde a periferia até à aresta de uma expressão teatral de desinteresse. Nada. O polegar recolhe seco à proveniência. A mão torna à mesa, apaziguada. Fitas-me. Não há no teu rosto interrogação; ainda assim, pressinto que esperas de mim uma resposta.
— Do outro lado.
— Hã?
— Limpa do outro lado. É no canto esquerdo.
Aquiesces, exalando um suspiro de enfado. Desta vez o processo inverte-se: é o polegar da mão direita que executa a depuração. Desta vez a moção é determinada, repentina, um gesto com menor elegância do que antes e sem qualquer réstia de volúpia. Estou, nestes esparsos segundos, absorto no labirinto matemático que acolhe a dicotomia entre mão esquerda no canto direito e vice-versa; e de como temos sempre dois lados distintos que, amiúde, aprendemos a aplicar com parcimónia e temperança nos múltiplos cenários em que a vida nos coloca. Pois é: dá-me para os pensamentos mais estúpidos e inúteis nas ocasiões mais inadequadas — que ele há, verdadeiramente, ocasiões adequadas para cultivar pensamentos estúpidos e inúteis, e não tão poucas quanto isso.
— Podias ter dito logo.
— Tens razão, desculpa.
Erro crasso. Primeiro a imprecisão. Agora, dar-te razão e, acto contínuo, desculpar-me pela falha. Expus-me demasiado. Tenho a certeza que neste momento, antes sequer de abrir a boca, adivinhas o que vou dizer-te; consegues desde já estabelecer o motivo pelo qual te convoquei, uma hora antes do previamente marcado, para este café da baixa, onde previsivelmente não levantarás a voz nem farás cenas passíveis de nos exporem aos olhares da turba. Detestas que te encontrem em trajares mundanos, não suportas que te, ou nos, olhem com curiosidade e menos ainda com congeminação bisbilhoteira. Quanto a mim, além de muitos outros temores, vivo apavorado de que possam adivinhar o que pretendo dizer no momento seguinte. É-me insuportável. Quero manter-me imprevisível. Inesperado.
Pressinto que as tuas mãos se esforçam para ocultar o tremor.
— Suponho que a tua resposta é não.
Tudo menos isto. Estive horas a cogitar, a moer e a remoer a estratégia de argumentação destinada a aliviar a minha consciência junto de ti. Há dias que não penso noutra coisa; e de cada vez que pensava imaginava-te lívida, desagregada, talvez chorando ligeiramente, perante o choque da minha revelação estrondosa e apunhalante. Mas não. Trocaste-me as voltas e antecipaste-te, desconcertaste-me. Principiaste-me no ponto em que esperava terminar-te. Vejo-me embaraçado. E gelado, de um gelado liquefeito que me injectassem nas veias. Invade-me uma vontade de negar o teu vaticínio pela simples birra de te contrariar. Mas não posso. Tudo isto é demasiado sério para que nos possamos dar ao luxo da distracção, das cerimónias. Perdemos já tempo precioso a brincar às casinhas. É chegada a hora de crescermos.
— O café aqui é muito bom, não é? Tiram-no com muito creme.
— Há melhores. Está um tanto queimado. Mas não vejo que raio de importância tem isso agora.
Sobreveio-me uma pungente necessidade de te friccionar o ânimo com esta porção de algodão embebido em álcool etílico, antes da injecção letal que trago encoberta no bolso. Para te quebrar o ímpeto. Contudo, uma vez mais és tu quem me desarma. Seja.
— Decidi aceitar o emprego. Segunda-feira começo a trabalhar no jornal em Lisboa. Já falei com eles, está tudo tratado.
Que mania irritante a minha de encetar os assuntos sérios com um posicionamento nos meios-termos… Coragem, Edgar, coragem.
— Portanto, está consumado. Não tenho voto na matéria.
— Na verdade, não. Acho que é o melhor para ambos.
— Achas… achas o que te dá mais jeito. Sempre. Não fazes a mínima ideia do que é melhor para mim. Se calhar, nem do que é melhor para ti.
— É um risco que corro. Mas a decisão está tomada. Não digo que não me tenha custado, mas está tomada.
Minto. Não custou. Foi, aliás, um alívio. Estarmos gastos e fenecidos de vícios rotineiros é o que eu mais dispensava na vida. Tu sabes que é assim; sabes que abomino a trivialidade e a repetência; sabes que o esqueleto em que encarnámos como dueto em construção está ancilosado; sabes que assim já não íamos, jamais, a lado algum. Todavia, acreditas que ainda existimos — detesto, também, quando usas a imagem da brasa adormecida que deve ser avivada, reavivada, e asseveras que somos nós a dita. Essa é uma das maleitas de que padecemos — os lugares-comuns. Afora os cafés onde era costume estarmos de mão dada a ver o Mundo passar, todos os outros sítios se metamorfosearam em banalidade seca e rúptil. Já não nos reconheço em mesteres tão costumeiros.
Apetece-me dizer-te que preciso de atrevimento. Ou coisas maiúsculas como Arrepio, Paixão. E olhar para as ruas sem conseguir vislumbrar o seu término. Mesmo correndo o risco de porventura não haver saída e tendo consciência plena de que esse risco possa resultar em desventura (outra maiúscula: Risco). Mas tu tens um plano. Vais assediar-me com os mirabolantes avatares de uma casa com vista para a foz que tenderá a ser nova ou mutante; vais bombardear-me com o filho milhentas vezes fecundado em ti, mimeticamente inseminado em mim, sobre cuja educação e preceitos de civilidade tantas vezes deambulámos e discutimos acerrimamente ao ponto de nos zangarmos, umas vezes com lágrimas e ranho, outras com os cotovelos a roçar o riso e a loucura do destempo futuro; vais acicatar-me com as cabazadas que me darás no snooker, e esse simulacro particular far-me-á figurar-te debruçada sobre o caixilho de madeira do bilhar, para uma imperiosa tacada com a bola branca puxada com efeito, e o gozo que normalmente me advém ao saborear a cobiça dos outros homens confrontados com o espectáculo entusiasmante do teu traseiro fabuloso, que é meu; vais enlear-me com o nome dos destinos de viagens e com a acme taquicardíaca dos crepúsculos e dos monumentos que trazemos fotografados no passe-partout da musa-de-cabeceira; vais embevecer-me com estórias de amigos dispostos a envelhecer connosco e com os vinhos novos que irão evoluir e, quando velhos, aprenderão a aguardar o seu tempo no rodapé das conversas.
Não é que não queira tudo isso. Talvez queira. Dói-me a memória, contudo. E sinto, agora, que preciso somente de coisas de que não consiga lembrar-me. Tenho para mim que me quero solto, acrónico. E tudo quanto gravite no universo mnésico do passado é uma grilheta infecta e febril. E a minha história está desbotada de analepses.
— Não me respondes?
Enquanto tergiversava tudo isto foste brandindo palavras. Perdoa-me, não te escutei. É a tal coisa: presumo saber o que vais anunciar e pura e simplesmente dispenso-te, subtraio-me a ouvir e a prestar-te atenção. Olho agora para ti, finalmente resignada, apostada no vazio translúcido do vidro que nos emoldura a cidade em atavios tais que, à luz indomável e parnasiana da tarde, apetece pedir que nos embrulhem pastéis de frenesi em caixas de meia dúzia.
— Desculpa, perdi-me em pensamentos. Não queria…
Detive-me. Não devia ter dito isto. Há no ser-se franco o egoísmo de libertar a própria consciência transferindo a sobrecarga do peso para o outro, cingindo-o à omnisciência incontornável da nossa verdade e do nosso motivo; roubando-lhe o direito a ser injusto, individualista na sua interpretação e ponto de vista. Remato:
— Vamos jantar.
— Depois do que me disseste… Ainda vale a pena? Faz algum sentido?
— A mesa está reservada. E continuas a ser especial para mim. Tenho os bilhetes comigo na carteira. Vamos ver a peça. E a vida há-de continuar.
— Beija-me.
— Ainda tens um bocadinho de espuma…


Renato Filipe Cardoso

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