quarta-feira, 28 de março de 2012

SETE CONTOS DE VIDAS (III)


Âmago Azul

Você chegou em casa e molhou o corpo no chuveiro, pensamentos vagavam do despertar da alma acolhida em quietude artística. Dia exaustivo, muito trabalho, e fumaça de asfalto não faz sua cabeça. Cabeça é feita de ideias, há cabeças que são apenas feitas, intransitivas e diretas. Você pensou sobre linhas retas e traçados, e o equilibrista em algum corpo tatuado. Mas pensar não ambientaliza mundos, por instantes, de repente, minutos, estava inteira no chuveiro, ao passo que apenas as extremidades sentiam o cair da água. Molhar a mente, esfumaçar o ambiente, o pensamento escorre entre os poros, desafia contornos com prudência, enquanto a racionalidade predomina lá fora. Você obedeceu a seu chefe, que, por sua vez, não elogiou seus acertos, ele quer um operário perfeito, as máquinas rugem feito gigantes andróginos, herméticas em fabricar lucros incertos. Você sabe o poder do trabalho, e não se apodera de nada na arquitetura do corpo modelado. Os prédios estão cada vez mais altos, favelas nunca crescem para baixo, e as vias de acesso são planos retos enclausurados. A mobilidade é para poucos e você, do chuveiro, dispensa o espelho do banheiro. Espelhar é viver a multidão que lhe toca, nem todos têm acesso a sua rota, pois as máscaras vendidas no mercado convencional caíram na bolsa de valores. Você superou a esquizofrenia contemporânea de seres que a circundam e descortinou espaços censurados, dizem que cada ser tem o latifúndio que o cabe, todavia você superou a maioridade, revertendo o preço dissimulado do afeto. Neste momento, você pode estar em qualquer lugar da cidade, nada lhe importa, do chuveiro, a água sempre escorre por cada parte de seu canto azul, são límpidas as palavras que escorrem pelo ralo, do outro lado da rua, o sol reluz sobre o subsolo em que habita um ser obscuro: recôndito poeta a desentranhar-se de outra imagem.
 
 
Manuela Barreto (Brasil)

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