terça-feira, 31 de maio de 2011

Palavras Versadas


birdwatching (night shift)

quando chegam aquelas horas
em que pequenas luzes se extinguem
e há quem incendeie os dedos
contra os próprios labirintos,

quando chegam aquelas horas
em que as fomes não se distinguem
e há quem devore os segredos
com os olhos famintos,

quando chegam aquelas horas
que não acendem com interruptores
e há quem camufle o coração
com uma luz que não existe,

quando chegam aquelas horas
de crescerem asas aos perfeitos-amores
e tu, voando perfeita na escuridão,
tocas-me, a mim, o único pássaro que viste


Bill enGates

domingo, 29 de maio de 2011

Provocatio


viúva

liberto das chuvas
o ácido em riste
nas noites viúvas
nem morto me viste
desde o leito das uvas
em que água saíste?
se voltaste às chuvas
se voltaste, é triste
 
 
Bill enGates

sábado, 28 de maio de 2011

Crónica Benzodiazepina


WHAT HAPPENED TO THE WINE AND ROSES?

Não resisto. Tenho de voltar ao celebérrimo guia de auto-ajuda para salvar casamentos irrecuperáveis. Porque quando as situações descritas no livro surgem, meus amigos, não há recuperação possível. Homens surdos aos desejos das mulheres, homens emocionalmente insensíveis, homens que se esquecem de regar o amor, homens que fogem à primeira lágrima feminina, homens que não entendem nada de nada de nada da psicologia feminina... E mesmo assim, o guiazito lá avança na sua tentativa desesperada de ajudar a mulher a salvar o seu casamentozito... Como treinar o seu cérebro para interpretar as afirmações do seu marido? Como usar as técnicas de controlo do ambiente para acabar com as guerras? Como ir de encontro às necessidades do seu marido? Como ver o mundo do ponto de vista dele? Como identificar-se com os sentimentos do homem? Como aprender a ouvir? Como fazer para lhe pedir autorização para falar dos seus sentimentos e emoções?

Concluo deste livro que:
1) os homens são seres insensíveis às necessidades emocionais femininas;
2) os homens são educados para racionalizar;
3) os homens devem ser tratados como crianças, mimados e desculpados;
4) as mulheres se querem manter um casamento feliz devem trabalhar diariamente em todos os aspectos, nomeadamente em desculpar as suas brutidades e as suas indiferenças.

Não há paciência, pois não?


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 27 de maio de 2011


Da torridez de um exame

Aquelas palavras. Soam-me num baque surdo, ainda, na minha memória, uma gaveta velada por espectros do passado. “Ce n’est point dans l’objet que réside le sens des choses, mais dans la démarche.” Saint-Exupéry que me perdoe, mas o olhar de Brigitte ao som destas palavras, naquela tarde tórrida de Julho, deixou-me a transpirar. Até as paredes cinzentas da sala de aula insípida do bafio se tornaram fervorosas e um odor a desejo e paixão carnal invadiu-me as mãos, a boca, os sentidos. Sugava-me numa pulsão incontida. Os olhos dela penetraram nos meus, clamando um ardor desesperado de ternuras irreais. Sorriu fugazmente num misto de provocação e insinuação que me fez antever o frémito da loucura. E deixou-se entrever, em contornos esboçados de um decote cinzelado por mão de artista, aquela Afrodite que se oferecia num silêncio de emoções e num grito de sentidos. Eu imobilizara, entretanto, com a percepção desse momento. E desesperava com a compostura de um cárcere. Ela continuava a lançar um olhar quente que me gelava os nervos sensitivos, enquanto Saint-Exupéry insistia em sobrevoar os meus pensamentos, numa ânsia estranhamente centrífuga.

Nem a perspicácia de um Holmes poderia desvendar as razões que me aprovaram à disciplina de Francês nesse dia.

Agosto. Ardente como as nossas bocas e mãos sequiosas. A tarde, cúmplice dos amantes, passou-se esquecida a beber o sol no meu terraço branco, em homenagem ao dolce fare niente. Numa candura de jovem imberbe perdida há muito, de tronco desnudado, eu sorvia nervosamente uma limonada gélida quando Brigitte parou em mim o seu olhar exasperadamente fogoso. Emudecemos ambos. Até que o sol se foi. Como Brigitte.
Nessa mesma noite, moldada por um céu belo de estarrecer, os meus passos levaram-me sem sono ao farol, sentinela esquecida no meio de rochedos insensíveis. Encontrei-a sentada nos degraus da porta, de ar felino e predatório, que contrariava a placidez diurna perante os alunos, envergando um vestido fino vermelho que denunciava as formas dos seus seios, do seu ventre, das suas coxas. O grito da natureza de novo me aturdiu, atingindo-me como um raio. O sangue fluiu. E aquele seu odor mesclado a baunilha e alecrim chegava-me ao corpo. Ela não disfarçou a sensação que experimentou do meu desejo a tocar-lhe na pele. Brigitte era uma feiticeira indomável e dominadora, que me perseguiu nos sonhos durante muito tempo.


Berenice Greco

quinta-feira, 26 de maio de 2011


O segundo banho no mar

Estou regressada de uma tarde de banhos de mar. Sou a mesma pessoa, mas com novas células. 
Melhor do que um banho no mar, só mesmo o segundo banho no mar. Todos os que se seguem são igualmente deliciosos, mas nada se compara ao segundo banho no mar, quando já sabemos o que nos espera porque já nos tocámos e está a pele preparada, já seca, a querer muito entrar outra vez no mar, para se refrescar. É a segunda vez, mas é uma surpresa.
Dantes pensava que somente os ébrios entravam no mar na madrugada do 1º dia do ano. É um engano. Muitas das pessoas que o fazem estão bem lúcidas. Querem sentir o vigor do mar, aquela força. Eu nunca experimentei, mas sempre que entro no mar lembro-me disso e entendo lindamente. Principalmente quando entro já com a pele ressequida, da segunda vez.

No rio é diferente. 
Ninguém vai ao rio tomar um banho revigorante no 1º dia do ano.
Adoro rios, o barulho que fazem a passar nas pedrinhas, os limos, as correntes, as quedas. (Mas entro com algum receio, é escuro).
Um banho de rio é apaziguador. Não é só por se poder beber,que se diz "água doce". Há ali uma doçura na maneira como a pele escorrega. No primeiro, ou no segundo banho. Tanto faz.


Iolanda Bárria

quarta-feira, 25 de maio de 2011


Fantasmas e demónios

Era um dia de fantasmas e demónios, os meus fantasmas, os meus demónios que, por vezes, se libertam da clausura onde estão encerrados e assumem o comando da minha alma. Nestes dias, tudo me é estranho. Olho o mundo ao meu redor como se não fizesse já parte dele, desconheço os meus próprios pensamentos. Dantes lutava contra estas invasões esporádicas com todas as forças que tinha. O tempo, contudo, ensinou-me a não lutar, a deixá-los sair de vez em quando. Não são os meus demónios, afinal, parte de mim, da minha essência, do meu eu mais profundo? Ignorá-los seria ignorar-me. Ele já me conhece… quando vê o meu olhar cheio de sombras abraça-me e nada diz. No início não reparava nas sombras e só depois de nos amarmos ele me perguntava baixinho: “quem eras tu hoje?”. Depois, começou a perceber… nesses dias eu fico em chamas e são os demónios que me guiam os sentidos e é uma outra mulher, saída dos confins mais remotos de mim, que ele recebe e ama. Abraça-me, depois, e eu sei então que gosta tanto de mim em chamas, como de mim brisa leve e tranquila.


Missanga

terça-feira, 24 de maio de 2011

Palavras Versadas


C'ORAÇÃO

dormes no teu sonho, leitor.
o teu objecto de tempo respira 
o que terias sido
entre a intenção das nuvens.
e isto nada tem que ver com o coração.
o corpo não precisa de um coração
que se consome a si mesmo
com aquilo que a esperança pede.
dormes no teu sonho, leitor.
e agora com estas palavras, com 
a minha morte reproduzida em palavras, 
compreendendo
aquilo que de mais avulso há:
a doença, a surpresa temerosa 
comparecendo
ao silêncio, a atmosfera visível
do sentido inocente exercitando 
a planura do movimento.
e tu dormes no teu sonho, leitor.
enquanto a oração passa 
e nós descobrimos o nada.


Sylvia Beirute

domingo, 22 de maio de 2011

Provocatio


Alegoria da Caverna

Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?


Iolanda Bárria

sábado, 21 de maio de 2011

Crónica Benzodiazepina


Comer, cagar e andar...

Comer, cagar e morrer, é para isto que fomos feitos, tudo o que vier a mais é lucro!!!

Eu não daria tanto valor ao comer e ao cagar. Diria antes que o motivo porque nos fizemos é a vontade que temos de nos culpar até à morte. Comer é apenas o sustento que mantém o esqueleto manhoso de pé. Já cagar, é o motivo porque amamos. O amor sempre serviu de papel de embrulho para o cheiro fétido a assassino.
O nascimento deixou de o ser companheiro inseparável da morte. Agora é visto como a derradeira tentativa infinitamente repetida de nos suicidarmos.
O certo é que voltamos e voltamos e voltamos.. até que o perdão nos pegue ao colo e nos leve para lá do pesadelo.

Eu não daria tanto valor ao comer e ao cagar. Diria antes que o motivo porque nos fizemos é a vontade que temos de nos culparmos até à morte. Comer é apenas o sustento que mantém o esqueleto manhoso de pé. Já cagar... Cagar é o motivo porque amamos. O amor sempre serviu de papel de embrulho para o cheiro fétido do assassino.
O nascimento já não é o companheiro inseparável da morte. Agora é visto como a derradeira tentativa infinitamente repetida de nos suicidarmos.
O certo é que voltamos e voltamos e voltamos... até ao desespero. Até que o perdão verdadeiro nos pegue ao colo e nos leve para lá do pesadelo.


DuArte

sexta-feira, 20 de maio de 2011


Como palavras atiradas contra o silêncio

Há sempre palavras que soam malditas ao ganhar sentido, no contexto em que se inserem: “afecto” é uma dessas palavras. Pois, tal como a realidade nem sempre desmente existências, também os fantasmas se esforçam por continuar a não existir. Mas, nos cantos da boca, fica sempre o gosto da incerteza, um lapso entre a realidade e as nossas fantasias, uma busca que se anuncia eterna e pouco compensadora. Somos nós, enquanto meros vultos convertidos à vida terrena, que repousamos num fauteil com jeitos burgueses e compramos a educação e o respeito com empregos precários. E no fim de compras, apenas e a final, ganhamos o merecido descanso perpétuo, um enorme saldo nas contas à vida que não vivemos, um vento que sopra do norte o frio de uma vida-vazia - onde sempre paira a presença da figura viva da morte.
Para satisfazer a realidade, digo: devemos construir o mundo com palavras novas para todas as sensações novas, reinventar a língua a cada beijo, a cada dentada, a cada união dos corpos nossos colados de desejo. E depois, inventar novas formas de sentir, reinventar o prazer como uma língua nova que aprendemos, cingindo a gramática ao nosso sentir. E assim, viajar pelo corpo até chegar ao fundo, correr como sangue por todos os nossos nervos, até culminar no centro da mente, onde os nossos corpos nus vivem fiéis ao objectivo para que nasceram. E, nesse ponto, reiterar as nossas bodas sempre repetidas, a nossa lua impregnada de mel que nos queima os lábios e os sara no mesmo beijo. Devemos construir a realidade tão real quanto possível, vivê-la de forma a que nos faça viver, de forma a que os nossos fantasmas vivam à dimensão da matéria, como figuras humanas desatadas no cúmulo da lucidez. Provar o saber e o sabor do prazer, engolir a existência até aonde nos levar o crer, até ao limite do impossível, onde cada gota será bálsamo e aroma, odor que se cola aos panos e não se descola do corpo, mora na pele que nunca despimos como um suave ferrete.
Para sermos dignos das nossas próprias fantasias, digo: devemos despir os panos que envergamos andrajo, desbesuntar o espirito de todas as nódoas sociais e vestir o capote negro de cetim com que se cobrem os fantasmas. Só assim viveremos, só assim veremos, na humidade diurna, para espanto nos nossos olhos abertos, etéreas imagens de monstros que se desenham no nosso espírito e que nunca ousámos ver: uma mulher casta empalada na lança de um centurião efeminado, canta louvores à sodomia em latim; um monge pederasta, em busca do paraíso, desfere golpes com o punho cerrado na porta de um nenúfar, sabendo que essa porta não o leva ao céu. A mulher casta vive e dorme, sob a capa das suas peles e das suas fantasias e, no auge do sonho, pede a um centurião que não pare o suplício, que se mantenha firme, que chame a força militar inteira, que venha mais uma lança e outra e outra, que uma força bruta lhe invada as entranhas e sejam acesos toríbolos de círios em honra do seu sacrificio, em cujo fogo se ateará o prazer mais sublime. Ao velar o altar das ninfas, o monge masturba-se e vomita uma oração sem nexo nem vergonha, sempre de olhos postos num deus que lhe aplaca os medos e as sombras – consulta o oráculo e o futuro nada lhe diz acerca do que está para lá do presente ponto final.


Joshua M.

quinta-feira, 19 de maio de 2011


Todos podemos ser santos

Num mundo perfeito seria assim, mas até Jesus se passou com os tipos que vendiam lá no templo. Em compensação amou Maria Madalena. Há que escolher com quem queremos ser perfeitos.
A verdadeira essência da pessoa revela-se sobretudo na forma como vive os seus lados negros. No que é bom somos sempre todos bons. Ou pelo menos é mais fácil disfarçar. Mas no mau, nas partes em que nos viramos do avesso e deixamos ver o pior de nós, é que nos revelamos boas ou más pessoas.
Na fúria, na traição, no vómito, no egoísmo... em tudo o que possa ser mau, há quem seja bom e há quem seja mau. Como explicar? Só vendo e sentindo. A diferença está no olhar, no tremor da voz, na inquietude das mãos. Talvez a melhor forma de identificar seja perceber o que dentro de nós nos atraiu para essa pessoa, geralmente é porque nos revemos nesses defeitos. Os lados negros atraem-se. Sentir compaixão pelo outro não será mais do que sentir compaixão por nós.
Já me apaixonei nesses momentos maus, ainda que de forma retroactiva. O presente acaba por compensar-nos.
E se calha amar alguém que não merece mesmo (calha a todos pelo menos uma vez na vida), então pensemos que tudo o que fazemos de bem, ou de mal, fica connosco. É por nós que amamos. 'Carta batida não é recolhida', diz-se na mesa de jogo. É assim o amor. A perfeição pode ficar sempre connosco.


Ana Santiago

quarta-feira, 18 de maio de 2011


Foi colhida, a Rosemary

Rosemary foi colhida por um comboio de passageiros que já tinha perdido a hora quando se cruzaram na passagem de nível de Bela Mandil. 

"Uma mulher colhida, faltava pouco para as cinco" - disseram nos jornais. Alguém disse. Há sempre pessoas com coisas para dizer.
Ainda espreitei da terceira carruagem mas não consegui ver nada disso. Só um mar de malvas e azedas, poucas figueiras e uma brisa quase vento. Um dia alegre, digam o que disseram.

Com as suas vozes normais, as pessoas cá fora afirmavam que Rosemary fora "colhida, sem oferecer resistência". Ofereceu o crânio, o ventre, as coxas, o coração e as costelas...  ofereceu-se à fúria da composição.
Não lhe ofereceu resistência.
Isso, não.

(soube, depois, que não foi re-colhida na totalidade. estava o esqueleto demasiado disperso, a oferecer resistência)


Iolanda Bárria

terça-feira, 17 de maio de 2011

Palavras Versadas


ESTALACTITE

«Sinto um orgulho enorme em ser feliz»
eis a voz que se ergue em mim
como um vento ou uma árvore tempestuosa
A ideia socrática submersa a palavra eloquente
ou o frenesím estratégico contra o dragão negro
ou a frieza da tenaz e agressiva francesa se equivalem
Na equivalência se fixam a arbitrária flor
o veado sonâmbulo deus e aquele homem de casaco roxo
deambulando em dezanove bibliotecas
E outro alheio à semelhança entre o caos
e quinhentos anos entre vinte e a eternidade
Tanto faz haver uma só diferença:
a assimilação desta consciência
eis a felicidade suprema
Mais perfeita se descoberta no nada
Aqui vos deixo metade do êxtase
como quem vos teme o fracasso e na
justificação esconde a crueldade


João Belo

domingo, 15 de maio de 2011

Provocatio


À primavera e ao amor...

Não sou nada o género forreta, mas estes morangos vermelhos e carnudos custaram-me 2.20€. Uma pequena roubalheira, que me doeu, porque sou avessa a roubalheiras descaradas. Fiquei azeda, logo ali na mercearia! Felizmente, porque há sempre um felizmente, os morangos estavam doces e descongestionaram-me à primeira mordida! Esqueci logo a estupidez do dinheiro que dei por eles.

Antes de os devorar, porém, fotografei-os. Ei-los! Brindo com eles à primavera e ao amor.

Estejam onde estiverem... 


Iolanda Bárria

sábado, 14 de maio de 2011

Crónica Benzodiazepina


11 REGRAS PARA ESQUECER UM AMOR

Falava de Camões e do desconcerto do mundo. Falava-lhes do sofrimento amoroso típico deste autor. Enfim, tentava transformar a minha disciplina de Literatura Portuguesa em algo interessante, que os levasse a ler, a fruir as palavras, a sentir o texto...
Há dias, uma aluna que criou este terrível e inexplicável hábito de desabafar os seus males de amor comigo, perguntou-me em plena aula: "Stôra, diga-me lá o que hei-de fazer para esquecer um amor?"
Engasguei-me. Bebi um pouco de água. Arregalei os olhos. Quando finalmente me recompus, comecei a falar, como se possuída pelo deus dos revoltosos:

1. Rodeia-te dos teus amigos.

2. Ri. Ri. De ti. Dos outros. De tudo. Não pares de rir.

3. Não comas. Bebe água. Aproveita o desgosto amoroso para perderes os quilos a mais.

4. Apanha sol. Vai ao mar. Apanha sol. Vai ao mar. Sempre. Sempre. Sempre.

5. Seduz. Conquista. Seduz-te. Conquista-te. Arranja-te. Sente a mulher única que és.

6. Ocupa-te: trabalha, lê, faz ginástica, vai ao cinema, dorme, escreve...

7. Enumera os defeitos dele. Aqueles que tu não querias ver, mas sabias que existiam. Por exemplo: Era gordo? Tinha barriga? Usava trousses brancos? Não tinha humor? Era possessivo? Olhava para tudo o que passasse em volta e usasse saias? Deitava lixo para o chão? Era assim tão bom na cama? Era assim tão carinhoso? E sensível? E compreensivo? Era assim tão inteligente? Alguma vez lera um livro ou jornal que não a Bola?

8. Retira o seu número do teu telemóvel. Se te apetecer mandar-lhe uma mensagem, manda-a para a tua melhor amiga.

9. Faz uma selecção das tuas músicas preferidas e canta, dança, pula, salta...

10. Pensa que tudo passa, tudo sempre passará e que se tu, uma mulher tão especial, foste rejeitada é porque ele não te merecia. "Só uma besta se atreveria a perder-te!"

11. Arruma a um canto todos os objectos que te façam recordá-lo. Ou, melhor, devolve-os com um cartão a dizer: "Já não me interessas. A tua época passou."


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 13 de maio de 2011


Pintado de fresco

Como se soubéssemos e não quiséssemos, que os candeeiros se oferecessem fúteis e proveitosos pelas ruas da amargura, feitos de luzes breves para iluminar os nossos passos pelo futuro. O nosso mundo é uma luz solitária a acompanhar a solidão das outras luminárias da mesma quelha. E não prevíamos que viesse alguém minar as nossas bases pensando que eram pilares de um balcão desactivado, a quem nem os cães ligassem porque tinham onde mijar sem alçar a perna. Sempre temos a "Mimi travessuras" para dar alegria à malta que é jogadora do futebol, num campo bem adubado de esterco e moedas de ouro enlatado. Sempre temos o zodíaco e os astros, para nos dizerem que somos uma e a mesma merda que já sabíamos ser, muito antes de sabermos as estrelas já contadas em contos de crianças.
Como se quiséssemos e não vivêssemos, porque vivemos em Tokio e na China e no Curdistão tanto como Líbia; e a América com os seus canhões dá-nos um aperto no coração que vendemos para comprar pão. Queremos tudo o que não temos e vamos procurá-lo em lugares que ainda não inventámos. Nós somos, segundo a realidade vitual e deveras real, os inventores de nós próprios, ao inventarmos um deus que não nos inventou. Todos os inventos, a sul e a norte da Cochinchina, são práticas mal amanhadas pelos séculos de uma qualquer estupidez internacional organizada. Todos inventámos tudo e ninguém inventou nada, porque já estava tudo pensado – os alguidares de água em que se estilicidam gotas de azeite são a (in)junção de dois fuídos imiscíveis, mesmo aos olhos de lupa mais atentos e perscrutadores, mas lá está todo o nosso destino vazado.
Como se houvéssemos de construir pontes e não soubéssemos partir ao meio as dores e os segredos, ciosos de sermos nós, por não sabermos o que querermos, porque a nossa identidade foi rasgada pelo polícia que nos aguardava à porta do inferno. Nós queremos tudo e não queremos nadar para chegar onde queremos chegar a nado. Somos nadadores exímios, infractores inveterados e atletas bulímicos, formados de esteróides anabolizantes que agora se usam muito mais do que antes. No estádio actual do nosso desenvolvimento, no plateau onde actuamos, há sempre um palhaço-ponto que nos deve dizer o que dizermos. E nós obedecemos com a consciência do bem comum cumprido, com a nossa verdade posta entre os olhos para não vermos os outros que pisamos, como se pisássemos o caminho que traçamos recto sendo curvilíneo.

Como se tudo estivesse pintado de obstáculos recentes. E não quiséssemos pisar a tinta fresca.


Joshua M.

quinta-feira, 12 de maio de 2011


Ressaca moral

O problema é meu, dizem. Que isso de achar as mulheres mais velhas demasiado cínicas e as mais novas demasiado idealistas é um disparate. Longe vão os tempos em que acreditava que duendes mágicos ainda nos poderiam bater à porta e nós, frenéticos de emoção, poderíamos sussurrar-lhes uns quantos desejos que nos seriam concedidos. Que ingenuidade. Que mentira atroz.
Contudo, não me parece que seja insensível, rude, impassível ou que siga o meu caminho imperturbável. Houve apenas uma qualquer alteração química algures na voragem do tempo que me aumentou o nível de acidez. E é assim que se começam a forjar emoções, alimentando-as muito além do limite da razoabilidade. Pode-se forjar a paixão, regar o estado crepuscular do encantamento, brincar aos impulsos e empurrar o baloiço da emoção, lançando-nos num vaivém emocional que tanto tem de poético como de falso. Mas é um teatro. Um teatro com requintes de uma orgia de personalidades que vão entrando e saindo de cena com as características próprias dos relâmpagos. Intensos, brilhantes... e fugazes.
E começa sempre da mesma maneira. Com a minha face de sobrolho erguido frente ao espelho a perguntar-se se estará bem para entrar em cena. O perfume que exalo anestesia o ar como se de um afrodisíaco se tratasse. Cada pedaço de pele, se arrepia. Cada gota de sangue, ferve. Inventam-se palavras glamourosas de saudação. Criam-se espaços homogéneos onde personalidades se tocam por acidente. Cada toque, um aceno. Cada aceno, um sorriso natural. Uma empatia. Uma cena já desenhada. Depois o teatro fervilha. Amontoados de corpos inflamam-se. Piromaníacos sensuais estão prestes a lançar o maior incêndio da história. Mas à primeira faísca, uma tempestade ensopa cada acendalha, cada fósforo perdido... E o teatro vive, então, enfermo... em ressaca moral.


Bruno Vilão

quarta-feira, 11 de maio de 2011


A Verdade será sempre...

Abriram-se-me os olhos eram cinco da manhã. Não foi um despertar igual aos outros. Foi como se tivesse acordado de um longo sono, sem sono nenhum. Não me virei, como sempre faço, abraçando-me ao corpo mais próximo, entrelaçando as pernas nas pernas que dançam até o sol nascer. Abri os olhos de vez!
"Que se passa? Que barulho é este?"
Olhei para a escuridão do quarto, à procura de um vulto, de um respirar. Na rua, um galo cantava os bons dias; o ruído era da minha gata a convulsar. Levantei-me. A minha testa... Acendi a luz das escadas para não acordar os meus filhos. A gata estava no chão do hall, meio encolhida, a olhar para as duas pequenas bolas de pêlo que vomitara. Acendi a luz da casa de banho e peguei num pedaço de papel para limpar aquilo. A testa continuava a latejar. Lavei a cara e olhei-me no espelho. Como se olham os actores nos filmes, apoiado no lavatório, a escorrer água.
Já não sou eu. Já não sou o homem que era. Esta testa já não é minha.
A imagem no espelho não é nítida. O mundo começou a perder aderência. O mundo, hoje, é outro.
Voltei para o quarto, para me sentar na beira da cama, virado para a janela, para meditar um pouco. Fechei os olhos e deixei-me ir.
As frases começaram a chegar: eles são como tu, no seu sonho, também são como tu. O que pensas, eles pensam; e o que sentes, eles sentem – porque, fora do sonho de cada um, sois o mesmo. O mesmo que eu. Cuidam que nada de falso possa existir no seu coração. Basta que não o sintas no teu coração.
A meditação não foi grande coisa. Não era para ser. Deitei-me, a olhar para o tecto do quarto, tão desperto, até adormecer de novo.
Hoje de manhã, quando abri o livro, ele estava diferente. No topo da página, bem ao centro, encontrei esta frase:

"A luz veio...

O mundo, hoje, é outro;
O livro é outro;
O mundo sou eu."


DuArte

terça-feira, 10 de maio de 2011

Palavras Versadas


amor de fusão (a carne é fraca, pela boca ama o peixe)

ela escreveu: se tiveres fome tens
deus no microondas, mas é preciso
descongelá-lo durante pelo menos
treze minutos a cerca de seiscentos

watts. nunca fui muito católico para
novas tecnologias e pareceu-me que
ao sétimo minuto deus descongelou,
como se ouvisse tomai e comei, este

é o meu corpo picado e intermeado
em camadas de massa estaladiça com
polpa de tomate, orégãos e cogumelos.
na verdade, acabou por ficar um tanto

para o cru, mas estava tão esfaimado
que não quis perder tempo e logo me
dediquei de boca e alma ao repasto,
entretanto deposto no prato segundo

a estratégia de tudo ao monte e fé em
deus. mal ou bem, encher a barriga é
lá coisa que compõe o espírito. meu
amor, respondi nesse mesmo bilhete

que ela me deixara, a lasanha estava
divina, obrigado, mas sem ti sinto-me
fora de tempo e o meu apetite vacila.
se algum dia desistires de me servir

o teu coração em regime take-away
e vieres ocupar o cargo de só minha
prometo uma peregrinação em jejum
e de joelhos ao teu santuário, que é

de lamber os beiços e salivar por mais,
bendita sois vós entre as cozinheiras
da escola culinária italo-vaticana. p.s.
: prometo-te queimar todas as receitas

daquela escanzelada indiana que viste
por acaso sair cá de casa com restos de
caril de peixe nas ancas e também da
outra pálida que tem os olhos em bico,

aquela que te pôs os pauzinhos.


Bill enGates

domingo, 8 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Provocatio (VII)


(In)dependências

Serei independente? É uma pergunta que ecoa na minha cabeça. Serei independente? Encerro os meus olhos por breves instantes e reflicto com toda a minha energia no meu diferente estado, embora não esteja totalmente convicta do seu significado específico. Tudo aquilo que sei é que estou perfeitamente perdida, isolada, exilada num local incógnito como uma exploradora, só, sem bússola nem mapa por onde me possa guiar. Será isto a independência? Afirmo não saber e quiçá desistirei de raciocinar acerca disso. Enfadonha, a minha vida!


Joana Santos (Porto de Mós, Portugal)

sábado, 7 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Crónica Benzodiazepina (VI)


Vibrador, Plug Anal

Compartilhar meu corpo!?

Ser domada por dois corpos, dois pénis, duas línguas e por incontáveis dedos ansiosos de me seduzir...
De que me vale seguir as normas da sociedade se ela não me traz prazer... se continuamente fica faltando algo... se meu corpo se excita ainda mais após o primeiro orgasmo... se ele não me consegue satisfazer numa só vez!?

Já deixa de ser algo diferente para se tornar algo vital: as energias sexuais quando acumuladas geram muita energia física que, às vezes, um só corpo não consegue drenar.
Mas, não é só pela satisfação, é igualmente pela sensação de mãos ávidas de mim, pelas minhas carnes a descoberto, por cada pedaço de trilha indescobrível.

Vou ser humilde e começar por dois corpos... e quem sabe, não revele minha ganância por mais três, ou quatro...!?

P.S. orgasmos auto-infligidos só deixam um rasto de desenterro pendente.


Anja Rakas (Maputo, Moçambique)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (V)


SONHO MEU

Ela tem narinas esbranquiçadas de quem aspira uma carreira de superstar morta por overdose
é a preferida de dez entre dez manchetes de jornais
o rosto nas capas de revistas é a imagem de hábitos ruins
os pôsteres nas paredes adolescentes ainda inspiram exercícios manuais solitários, apesar de tudo
enquanto viajava, dessa vez pelas linhas aéreas, desvanecía-se em sonhos
quanto mais conhecia do reino de morfeu, tanto mais era a solidez de tal realidade
e lá estava ela, voluntária da primeira missão tripulada até a lua
única companheira do piloto automático que a entretia com as novas da biosfera ll
a proximidade das crateras revelava no lado escuro do satélite o brilho fosco da redoma
seu lar pelos próximos cinco minutos da contagem regressiva
o trem de pouso na pista coincide com os pés de volta ao chão
e a águia pousa... na terra
... do misantrôpo perdido na desorganização do quarto não se sabe muito
quem o viu diz que ele mora numa ilha, a milhas de qualquer contato
toda a areia dessa ilha cabe na caixa onde um gato velho deposita as fezes
toda a vegetação, dentro do vaso esquecido e mal-iluminado
a pobre planta se arrastaria para a luz se pudesse
não é o caso do misantrôpo
dentro do oceano de concreto e aço, não guarda hábitos de banhista
cumpre um ritual, o do sono... é imerso nele que sai da concha
dia desses teve um sonho - e sonhos não lhe faltam:
era aceito como voluntário na primeira missão tripulada para a lua
orgulhoso de si mesmo, mal continha a emoção intensa
a nave ganhava os céus, ultrapassava as nuvens, contemplava as estrelas
penetrava no vácuo, percorria do alto a superfície lunar e por fim alunava
a porta de entrada e saída do passageiro, que supunha-se única, reservava surpresa
ao lado do compartimento ocupado pelo cosmonauta, um outro compartimento
e nesse compartimento, outra porta
e dessa porta, uma viva alma a surgir
cumprimentou-a perdido em interrogações e mais do que depressa tratou de saciá-las:
"disseram que eu seria o único tripulante da missão... não entendo o que você faz aqui."
"me disseram o mesmo." - ouviu dela (reconhecera a voz feminina por trás do espesso capacete)
no interior do jardim do éden lunar, a biosfera ll, um romance aconteceu
a garota de narinas esbranquiçadas viajando pelo reino de morfeu pelas linhas aéreas
decidiu que seria feliz
mesmo no mundo da lua... por uma eternidade... que acabaria em cinco minutos
o misantrôpo ilhado no oceano de concreto, aço e sonhos, desfrutará da doce companhia da estrela cadente pelo tempo que for preciso... e enquanto puder sonhar jamais será um solitário em mundos que não são o seu


Rinaldo Leriano (Criciúma, Brasil)

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (IV)


A lâmina pontiaguda do amor

Vejo-te bela, estátua da loucura!
Erguendo no ar a mão nervosa e fina,
Tinta de sangue, que um punhal segura.

Olavo Bilac

Rasgou o corpo como uma folha de papel em branco. As páginas haviam sido apagadas pela dor da existência. Dizem que o amor tem muitas formas, mas foi a primeira vez que testemunhei tal maneira de arrancar o sentimento do peito, ainda que se saiba que ele ocupa todas as partes do corpo, cada detalhe. O amor não é morte, mas pode ser parente próximo desta. Ao passo que a morte distancia possibilidades, conteúdos infindos, adormece a memória, inquieta o coração e mostra a impotência da vida. O amor possui os mesmos sintomas, o que diferencia é sua capacidade de potencializar a vida, ou seja, ambos ativam o medo, consequentemente, revivificam o distanciamento.
Violeta encontrou a resposta que lhe era mais íntima, ao mesmo tempo, mais indecifrável. Comprou um punhal de prata ornamentado, com uma rubi a enfeitar-lhe o cabo. Vestida de branco para que as cores tomassem mais forma, talharia partes do corpo e sentiria cada gota derramada como partes de si mesma apunhaladas pelos desencontros amorosos. Entretanto, ainda antes, destruiria todas as cartas de amor que tivera escrito ou recebido, todas as fotos guardadas no baú ao qual denominara “amores que se foram ou poderiam ter sido”, cada objeto de afeto, cada flor despetalada e seca, algumas mofadas ainda que sempre quistas. Com o punhal, rasgou tudo, quebrou o baú, dilacerou flores, folhas, despedaçou anéis e colares, esmigalhou restos de perfumes, descrente dos provérbios populares.
Permaneceu o último objeto, a última lembrança, para Violeta, o último soluço, não mais amaria. Viver é um infortúnio quando o amor habita espaços recônditos, pensou no corpo como o único resquício a ser mortificado. O corpo objeto de amor, ele mesmo todo amor; e fez o trabalho de autópsia para que jamais permitisse que um novo amante o fizesse. Iniciou pelas mãos, as mesmas que sempre deram carinhos e aconchegos, toques suaves, leves, pétalas caídas sobre mãos alheias a sentir o outro; passou o punhal pela carne viva, quente, pulsante, pela raiz em que ficaram todos os seus amores até que dela brotasse sangue. O punhal percorria pelos braços, tão fortes em abraços convulsos de paixão, talhava-os como quem parte galhos firmes, fortes, que sustentam uma planta nas ocasiões mais inesperadas ou desesperantes. Chegou até o pescoço, o qual deixaria por último, e escorreu o punhal agora rubro sobre o peito, passou pela barriga até encontrar as pernas, outro ato de entrega, de abraço quente e estremecido, de sussurros e gemidos. Tocou a boca com a mão ensanguentada como se estivesse a se deliciar em beijos, machucada e frágil, intensa e verdadeira. Encostou o punhal no peito com força e sua última frase foi: "- Eu te amo, amor!"
Na manchete do jornal havia os seguintes dizeres: “O preço do amor. Mulher se dilacera com um punhal de rubi e prata”. Violeta era apenas uma flor machucada, como tantas que enfeitam as sacadas de muitas casas, com suas cores variadas.
 
 
Manuela Barreto (Salvador, Brasil)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (III)


Ir além do desespero...

A sala de espera era exígua. Sentada numa cadeira desconfortável, fechei os olhos tentando abstrair-me da cacofonia geral. Queria não pensar, estar em branco, em silêncio, mas a algazarra não deixava que a minha alma se apartasse para um lugar sossegado. A desesperança tinha-me entrado na alma e eu não sentia forças para a combater. Abri os olhos. Na cadeira à minha frente uma velhota pequenina, aparentando uma idade impossível, dormitava. Mesmo repousando, ou talvez por isso, parecia transmitir uma aura de paz, de sossego. Mirei-a com atenção. Tinha os cabelos muito brancos e muito ralos. O rosto engelhado, sulcado por rugas profundas e pequenas cicatrizes, deixava adivinhar uma vida dura. As mãos calejadas aninhadas no regaço mostravam, também elas, marcas da idade e de uma vida de trabalhos pesados. Quando olhei de novo o seu rosto, um espanto indizível tomou conta de mim. Os seus olhos, belos, meigos, serenos, cheios de luz, eram a total antítese do seu corpo.
“Sente-se bem, minha filha?”, perguntou com um leve sorriso.
“Acho que sim” respondi hipnotizada pelo seu olhar vibrante e transbordante de ternura.
Olhou-me enigmaticamente. “Não está bem. Tem na alma uma tristeza sem fim, um abandono, uma dor profunda, uma queda iminente e fatal”.
Queria poder chorar, mas as lágrimas tinham secado. Esforcei-me por sorrir. Os seus olhos têm uma luz quente, têm um brilho especial e, no entanto, tem já tanta idade e parece ter sofrido na pele todas as amarguras do mundo.
Sorrindo, “É verdade, padeço de todos os males. Nenhum, contudo, me derruba. Chamo-me Esperança, e a menina?”
Nisto um miúdo tropeçou em mim e num impulso segurei-o para que não caísse. Quando olhei de novo para a velhinha, a Esperança, já não a vi. Desaparecera. Olhei em volta, fui à porta, espreitei para a rua e nada.
Sentei-me de novo. Ter esperança não é fácil, é um caminho longo e sinuoso, é uma vitória sobre nós mesmos, sobre a vontade de desistir, a vontade de ficarmos cheios de pena de nós próprios. Ter esperança requer esforço e paciência. Para a alcançarmos precisamos de ir além do desespero.


Missanga (Lisboa, Portugal)

terça-feira, 3 de maio de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Palavras Versadas (II)


Fraquejo sim...

Encontro-me
ébria das palavras
que libertas pelos soalhos deste espaço.
Brindo a um deus poeta quando te alcanço
...a cada sílaba que me despertas.
Adormeço cativa
dos versos
que rente ao peito
meu murmúrio escaldado solidificará.
Ditos por ti, gélidos ou brandos, rebeldes ou deleitosos
rasuras de tempo entrelaçadas no meu.

Fraquejo sim...


Laura Silva (Lisboa, Portugal)

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Palavras Versadas (I)


CREPÚSCULO

Quando me vires passar desvia o rosto
e deixa que o meu éter se dissipe no teu olfacto
até dele restar apenas a recordação

Finge não reparar nestes passos
cruzando a direcção inversa à da sombra matinal
humedecida a lágrimas que ficaram por chorar

Olhos no chão não me interrompas
e deixa-me passar e procurar
nos interstícios da calçada portuguesa
vestígios perdidos de areia
da rocha dura que não almejei ser


Palas Athena (Lisboa, Portugal)

domingo, 1 de maio de 2011

NO DIA DE TODAS AS MÃES... (IV)


No rasto de ti

Saber que estás aí e pensas em mim, saber que te vais e nunca partes deste mundo, é saber de cor o toque da tua mão derramando ternura sobre a minha cabeça, é saber o sabor do teu regaço debaixo do meu cansaço.

Como somos estreitos na dor que nos pesa e doemos ao ter de ver partir e ficar, como quem nos leva um pouco de nós e é esse mesmo nós também.

Ficaremos para sempre de mãos enlaçadas ao castigo de nos termos tido um ao outro, de não nos podermos esquecer de ser um e o outro, depois de passarmos a ser um sem o outro.

É deste modo a criação, que nos constrói imperfeitos cadáveres em bolandas entre a tragédia e a vida – a morte não é mais do que o destino e sempre a mesma sorte.

E de resto, apenas a dádiva de nascer, apenas a promessa insuspeita da lembrança aturdida, a ténue memória do que nunca fomos realmente, para além de nos concebermos em quimeras.

Tudo é destruído em cada acto humano, a vida e a morte são dois palhaços de rosto ensanguentado: o que ri e o que chora, mas de ambos escorre o desgosto.

Uma urna em braços sem força, num tormento sem desvio, direita ao início do mundo, adivinhando a ressurrreição de uma nova era, já antiga e sempre adiada.

Os passos do povo caminham pelas ruas tristes e os candeeiros debruçam-se à passagem da morte pelo caminho que foi de outra vida além, noutra cidade, por outras ruas, ainda mais tristes, onde os candeeiros se confundem com a noite.

É sempre um séquito arrastado e sombrio, o que nos acompanha pela estrada afora, uma turba de gente anónima em cantata mole a aliviar o pânico do futuro sobre uma calçada de lágrimas emperdenidas.

Tudo nos castiga: é o contágio dos prantos exacerbados pela presença do não-espírito; é a voz congestionada pelos nós que se nos atam à garganta; e é o sal a derreter sobre a face fresca da maresia.

Secam as árvores e ficam as folhas tombadas, memórias ao cair ininterruptas e pesadas, sobre as pausas da voz – momentos de silêncio entre o ulular intermitente da tempestade e o agitado restolhar das folhas das árvores cansadas.

Em todos os momentos, é a queda bruta da espada sobre o teu filho, um rei viajado no tempo a carregar sobre Dâmocles e este entre a dúvida e a certeza do mito.

Somos entre a vida e a morte, o fim só não existe para os deuses, porque os deuses somos nós que os criamos e vivem porque nós os velamos e revelamos, até se instalarem mansamente.

Os homens não nascem deuses, mas os deuses nascem homens e estão ubiquamente por onde o bem e o mal se espalham, em estilhas de si próprios - são violências projectadas contra as paredes do medo.

Por isso, existirão sempre paredes caiadas com o rubro nosso sangue e uma montanha de mágoa por cima de nós a encher-se de saudade, até transbordar as crateras de um vulcão.

Como aquele dia escuro, a fazer lembrar a perda que achamos em todos os dias escuros; como aquele dia em que te foste...

Continuo a procurar-te, Mãe! E de ti, apenas acho o rasto no brilho do céu e segues estrela por onde o meu olhar não abarca.


Joshua M.

NO DIA DE TODAS AS MÃES (III)


A alegria da caverna

Ao contrário daqueles que advogam em seu favor, a Mãe criadora nunca foi nem algum dia irá a debates de televisão, porque ao invés daqueles que falam em seu nome, a Mãe de todas as mães não tem interesses neste mundo que precise de defender.
O homem, esse, tem de facto interesses, e defende-os pela simples razão de serem falsos. Só falsas razões precisam de defesa. Só o falso tem pretensões a ser verdadeiro e é por isso que se compreende que para o homem haja necessidade de debater tudo; pela sua condição, ao homem, falta-lhe confiança. Justificar-se é a sua base de confiança.
A Mãe não se justifica nem argumenta - Ela É - e nesse contentamento perfeito, o Amor acaba por ser a forma de ela se estender a si própria em criação.
Para a Mãe não existe nada que não seja ela própria e as suas criações perfeitas. É por essa razão que Ela nunca vai ser vista a surgir do céu, a lamentar-se porque um dos seus filhos se lembrou de pensar como seria ter um universo só para si.


DuArte

NO DIA DE TODAS AS MÃES (II)


Belíssimo exemplar

A minha mãe fez há pouco oitenta anos. É uma mulher admirável. Admirável, não perfeita! Aos oitenta, corresponde-se com todas as suas cinco filhas por email. É a favor do casamento gay e de uma maior "descontracção" religiosa. Às vezes, dou por mim a olhá-la e a perguntar-me de que raio de matéria foi feito aquele ser tão, aparentemente, frágil. Orfã de pai e mãe aos cinco anos. Criada num colégio interno de freiras. Foi mãe de cinco filhas, cujas gravidezes, todas elas, e partos, todos eles, a deixaram às portas da morte. Sofreu dois acidentes brutais de automóvel. Há dois anos, partiu o fémur. No entanto... basta vê-la! A passear de salto alto, sempre paulatinamente, com o ar de quem carrega uma invisível coroa. Dona de uma teimosia férrea, continua senhora do seu destino como se tivesse apenas quarenta anos. Volta e meia, viaja para a Escócia, ou para Paris, sozinha, sem no entanto dominar qualquer língua estrangeira. De vez em quando, faz planos de vida surpreendentes... do género: “Se calhar, ainda vamos viver para outro país!” Fico boquiaberta! Invejo-a. Invejo a enorme capacidade que tem para se adaptar aos tempos. A enorme força que se esconde naquele corpo magro e anémico! É um belíssimo exemplar do sexo fraco.


Lucinda Gray

NO DIA DE TODAS AS MÃES... (I)


DIA DA MÃE

mãe.

por dentro da mãe o filho habita o mundo, por fora 

um sorriso alto, caminhos de sangue.

e eu penso que o nada pode ser outra coisa.
esse azul coagulado no trono de uma reticência etérea,
que se debruça por onde o leite da linguagem
enche um copo. pelas aves envio
o silêncio em pedra. onde os lugares ardem
no seu movimento impossível. construo
a morte que espreita pela própria agonia
e flores, as doces flores que se abrem
até ao centro da estufa do seu umbigo.

seu sonho delicado em círculo, mãe,

consagrando a fala lírica que se funde 

em sílabas novas. sem direcções impressas.
e eu penso que o nada pode ser outra coisa.

e eu dei-te nadas no espírito de outra coisa.


Sylvia Beirute