quarta-feira, 9 de novembro de 2011

OS CINCO SENTIDOS - O PALADAR (V)


Aquele músculo indomável

Tó Xico era insondavelmente de uma estranheza quase virginal. Ninguém, ou quase ninguém, sabia quem ele era ou foi. Dizia-se que fora um bicho-do-mato, dizia-se que tinha sido um lobo-do-mar. O que era certo é que, ao olhar para o Tó Xico, se sentia uma espécie de ardor na língua que adivinhava um sabor agridoce se o fitássemos nos olhos.
Por isso, Tó Xico vivia numa antiga mina abandonada, de acesso difícil pela estrada já varrida da face da Terra graças a uma erosão acelerada e de acesso inconscientemente negado pela futilidade que aquele espaço oferecia ao resto da população que gostava mais de se dedicar ao diz-que-não-disse.
Tó Xico arrastava-se, todos os dias e desde há anos, que não sabe contar, numa dolência silenciosa provocada por uma rinalgia aguda, que lhe afectava o olfacto. Tinha um nariz com forma sigmoidal que, se visto por alguma prerrogativa caída dos céus, provocava gargalhadas repetidamente ecoadas por montes e vales ainda desconhecidos. Por isso, Tó Xico, condescendente há muito com a sua fatalidade, deixava-se esquecer no seu buraco onde se dedicava a práticas pouco convencionais. Era um tirossemiófilo desde tenra idade, levado pela moda de recolectar tudo o que fosse desnecessário para, quem sabe, um dia, enriquecer à custa deste hábito tão inócuo como infecundo. Era também um glicófilo incurável que só se continha porque não saía de casa. No entanto, quando era gente do mundo, como os outros do diz-que-não-disse, recolheu tantos e muitos que precisaria de uma vida toda para os catalogar. Mas o que ele gostava mesmo, e apesar de sua rinalgia ser uma déspota inclemente, era ficar segundos a exercitar as papilas gustativas para depois expô-las e roçá-las em ritmo ternário, graças ao monstruoso músculo de que dispunha na boca, nos pacotes de açúcar virados do avesso. Eram momentos de deleite de uma exclusividade divinal, sob o ponto de vista de este homem pouco habituado à loucura dos sentidos. Naquele dia teve uma ideia algo acídula: descer à vila, enfrentar os alucinados do quotidiano, embrenhar-se no mercado municipal e comprar uma série de iguarias que tranquilizariam as suas insaciáveis papilas gustativas. Regressou com funcho, salva, açúcar mascavado, alcaravia, cerefólio, cravo-da-índia, entre outros acepipes para o paladar.
Tó Xico ignorava conscientemente em que se metia, mas a ideia era mesmo essa: a surpresa e o estranhamento na língua. Sim, aquele músculo indomável que se mantinha na sua boca e que, mais do que tudo, temia uma glossoplegia.


Berenice Greco

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