quinta-feira, 29 de setembro de 2011


Requiem por uma vida

Os sons da manhã que despontava foram-na chamando para fora do sono. Olhou o homem deitado a seu lado com o nojo trazido pelos dias, pelos anos, pela solidão vivida a dois. Quando teria começado a odiá-lo? Não houve um momento exacto. Foi acontecendo. No início era apenas um leve rancor, quase inconsciente, que foi crescendo à medida que gestações sucessivas e mal sucedidas lhe iam deformando o corpo. Quando se olhava ao espelho, era uma estranha com olhos mortiços, gorda, disforme e engelhada pelo tempo, que lhe devolvia o olhar. E fora ele, o seu homem, quem lhe minara o corpo a vida e a juventude.

Casara muito nova, com a cabeça cheia de ilusões amorosas, iguais às das suas heroínas dos livros de cordel. Durante muito tempo esperou em vão que os olhos do marido se detivessem nela e realmente a vissem. Ele apenas via um corpo onde saciava rapidamente as suas vontades, sem nunca a olhar. Percebeu, então, que os seus sonhos não tinham morada na sua realidade.
O sorriso abandonou-lhe os lábios, os olhos e o coração e partiu sem bilhete de volta. A felicidade, essa, nunca chegou a visitá-la.
Olhou de novo o marido que jazia junto a si. Ao fim de vários meses de doença prolongada e provocada, a vida, finalmente, abandonara-o. Suspirou. Pela primeira vez em muitos anos, sentia-se livre. O seu drama é que não tinha ideia do que fazer com essa liberdade."
 
 
Missanga

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