sexta-feira, 30 de setembro de 2011


A dor dos guizos

Só lá pelas dez da manhã reparou que se lhe instalara uma dor não sabia bem onde. Era uma dor difusa, dissimulada. Como lhe podia doer algo se não sentia uma dor num sítio em especial – estranhou o senhor Santos. No entanto, ele sentia, pressentia, estava certo que lhe doía qualquer coisa. Era uma sensação desagradável, sentir uma dor permanente, sobretudo depois de se ter dado conta de que tinha aquela dor. Antes disso já a sentia, estava seguro de já a ter notado em duas ou três ocasiões. Mas agora ela voltava com outra intensidade, com outra permanência. Quase se conformava com a dor, mas fazia-lhe confusão não saber onde localizar essa dor. Se a tinha, queria saber onde ela estava. Logo que saísse do trabalho iria consultar um médico, ou no dia seguinte se desse o futebol na TV. A dor saíu do trabalho, a dor viu o futebol, a dor dormiu toda a noite e no dia seguinte pela manhã foi ao hospital. Exames e mais exames. Já não fazia assim tantos desde a universidade. Receitas para a farmácia, medicamentos para a dor que não tinha lugar. Estava muito melhor, mas a dor estava lá, ele sentia-a. Voltou ao médico na semana seguinte e o resultado do seu corpo examinado ficava-se pela confirmação da existência de uma dor. O relatório reiterava: “não nos foi possível detectar a sua localização exacta mas foi detectada a passar por vários locais do corpo". No exame da mente apenas surgia a sombra de um vulto, mas que poderia muito bem ser aquela dor. Duplicou-se-lhe a medicação, prescreveu-se-lhe descanso e comidas sãs. A dor atenuava-se a cada mezinha, a cada vitamina, mas não saía de lá, estava teimosamente entranhada como um tumor.
Viveu anos e anos amarrado à dor que não sabia de onde vinha, sobreviveu a todos os achaques e sequelas. Resistiu heroicamente a todas as provações, carregando a sua dor, a sua cruz quebrada de sofrimento em todos os momentos. Um dia atingiu o topo da idade laboral, reformou-se e ficou por casa a pensar na sua dor. Morreu pouco tempo depois, dizem que, de tanto pensar.


Joshua M.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011


Requiem por uma vida

Os sons da manhã que despontava foram-na chamando para fora do sono. Olhou o homem deitado a seu lado com o nojo trazido pelos dias, pelos anos, pela solidão vivida a dois. Quando teria começado a odiá-lo? Não houve um momento exacto. Foi acontecendo. No início era apenas um leve rancor, quase inconsciente, que foi crescendo à medida que gestações sucessivas e mal sucedidas lhe iam deformando o corpo. Quando se olhava ao espelho, era uma estranha com olhos mortiços, gorda, disforme e engelhada pelo tempo, que lhe devolvia o olhar. E fora ele, o seu homem, quem lhe minara o corpo a vida e a juventude.

Casara muito nova, com a cabeça cheia de ilusões amorosas, iguais às das suas heroínas dos livros de cordel. Durante muito tempo esperou em vão que os olhos do marido se detivessem nela e realmente a vissem. Ele apenas via um corpo onde saciava rapidamente as suas vontades, sem nunca a olhar. Percebeu, então, que os seus sonhos não tinham morada na sua realidade.
O sorriso abandonou-lhe os lábios, os olhos e o coração e partiu sem bilhete de volta. A felicidade, essa, nunca chegou a visitá-la.
Olhou de novo o marido que jazia junto a si. Ao fim de vários meses de doença prolongada e provocada, a vida, finalmente, abandonara-o. Suspirou. Pela primeira vez em muitos anos, sentia-se livre. O seu drama é que não tinha ideia do que fazer com essa liberdade."
 
 
Missanga

quarta-feira, 28 de setembro de 2011


A alegoria da caverna em 3D

Quando ele fixou a resposta na palavra elefante, não olhou à distância. Todos riram pela miserável opção mas, no rosto daquele concorrente do concurso Quem quer ser milionário, mantinha-se a convicção de que um elefante é maior até do que a lua.
Levantei-me do sofá e fui ao frigorífico buscar uma “mini”, incrédulo a falar para mim “Que raios... e eu a pensar que, sem outras ferramentas, aquela talvez fosse a resposta sincera, a resposta terrena”. Verdade ou não, eu também nunca vi a lua maior que um elefante. Afinal, a resposta que todos esperavam ver assinalada é um exercício da mais pura especulação. Para além dos astronautas ninguém viu a lua maior que um elefante.
Quando voltei à poltrona, com a garrafa minúscula na mão, já me perdera na caverna alegórica a ver aquele homem acorrentado à cadeira a jurar que as sombras são a verdade, com uma plateia em pano de fundo, também ela acorrentada a rir, ciente das suas próprias sombras. E eu a pensar que se fosse um destes concorrentes que caem em desgraça às mãos do YouTube, queixava-me à presidência por tentativa de assassinato por meio audiovisual.

Num caso destes, havia de os obrigar a levar-me à lua para fazerem prova de todo o paleio acerca da relação entre a distância e o tamanho.


DuArte

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Palavras Versadas


PERGUNTA INTACTA NA SOMBRA DE MINHA PORTA

pergunta intacta na sombra de minha porta,
não ignoro os medos de tuas portas maiores.
quebro-te o rosto sem te ter ouvido a voz,
a figura de um homem, entre desejos e esperanças,
avança pela matéria pensante do medo.

é como conhecer o teu tamanho sem te ver palavras,
brincar aos modos de ser diferente, aos
ouvidos e olhos tapados
dissipando-se como dias lentíssimos
na aproximação das constelações distantes.

pergunta intacta na sombra de minha porta,
manhã fria, manhã inteira que transmite
inteireza na criança adulta ao lume, mistérios
do universo
na superfície caiada de uma existência avulsa
em independência. intransmissibilidade.

e o sol ainda cega toda a beleza.
e a solidão ainda se alastra ao oceano.
e seja o que for ainda precisa de mim para se interrogar.
pergunta intacta na sombra de minha alma.


Sylvia Beirute

domingo, 25 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Provocatio (I)


A Música Erudita e o Mito

A música erudita desenvolve, não só o raciocínio lógico, mas também o "paralelismo" dedutivo e a aptidão para construir analogias. 

O mito é a relação que a alma faz com o mundo das formas, manifestando a linguagem arquetípica para a prática da sua identidade social.

Todas as artes produzem esses fenômenos anímicos, porém a música é a mais subjetiva, sugestiva e delicadamente implícita nos níveis vibratórios do inconsciente profundo, como águas calmas que percorrem os leitos dos rios.


Nirma Regina Constantino (Brasil)

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Provocatio (II)


Lista de compras

Um sorriso quente;
Duas mãos suavemente calosas;
Pés compridos e ossudos;
Boca carnuda e molhada... com sabor a vento;
Caracóis rebeldes, e na falta destes... pele;
Olhar rasgado e malicioso,
(Marcado pelo existencialismo);
Incolor;
E safadeza... (muita).

Bem, vou as compras! alguém me dá direcções para encontrar o que preciso?

Desde já, obrigada pela atenção!


Anja Rakas (Moçambique)

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Provocatio (III)


Em dias de equinócio

Serei Abril,serás Outubro...

Serás veneno, serás mel
abrigo das lâminas
regaço de estrelas....
Atravessa esta ponte entre o outono e a primavera como se a alma fosse beijo da vida que não sabe o adeus.
 
 
Laura Silva (Portugal)

sábado, 24 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Crónica Benzodiazepina


Carta à minha infância

Quero escrever-te uma carta Raquel. Embora ainda não a possas ler, o que importa é que ela seja tua, como são as tuas bonecas, como é toda tua esta pequena família. Quero dizer-te, com estes pobres 26 anos, que os teus próximos 22 não serão aquilo que tu sonhas quando o sol se põe e os teus olhos se fecham.
Os teus próximos 22 anos, vão dar respostas às perguntas que te fazes, quando os teus olhos estão abertos, quando vês lágrimas nos olhos dos mais velhos e sorrisos nos seus lábios. Ainda não és capaz de distinguir as lágrimas de felicidade e os sorrisos de tristeza, mesmo que chores quando não te levam ao cinema, e sorrias quando te tiram a sopa da frente.
Porque não sabes que, para teu bem, deves fazer precisamente o contrário.
Mas o que te quero dizer, com toda a inocência de alguém da tua idade, é que, nos teus próximos 22 anos, vais cometer muitas vezes o mesmo erro: com frequência afastarás de ti a felicidade, pensando ser feliz; e entregar-te-ás lágrimas depois. O que interessa é que entendas que tudo isso é consequência do teu crescimento, a que não adianta fugir, nem buscar caminhos mais fáceis. Importa que chores, até que um dia as lágrimas te saibam a mel. É bem melhor que o riso que acaba em soluços.

Não tenhas medo de chorar; nem vergonha, se isso te trouxer depois a felicidade. Trata apenas de lutar. O mundo está sempre do teu lado.

Eu, também já fui como tu.


Anja Rakas (Moçambique)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (III)


ÀS NA MANGA

Demarcador enegrecendo os cílios, batom avermelhando os lábios, chave girando a tranca e as ruas são apresentadas a novos pares de sapatos
a postura provocante e atrevida desvia a atenção requerida pelo trânsito, o sorriso simpático na janela do “automotivo” completa parte do serviço, a porta sendo aberta é uma metáfora do próximo movimento
um dos muitos que fará sob o olhar atento dos espelhos no teto
a competência no exercício da profissão lhe daria o ouro olímpico se lençóis fossem juízes
nessa modalidade desportiva, no entanto, dinheiro vivo basta; e é por ele que encontra disposição para cada nova empreitada noturna, só por ele que junta forças para aceitar cada novo desafio masculino que se lhe apresenta
se o corpo estremece de prazer por algum momento, de certo não é graças aos esforços viris do amante durante o ato mas sim pela antecipação de ver futuras cifras preenchendo-lhe a conta bancária
como de costume, nomes descartáveis vêm, deixam fluídos corpóreos biodegradáveis, e vão, levando o odor peculiar do encontro íntimo como único traço residual
isso, por si só, já valeria uma noite em claro: o lucro advindo de uma transação sem compromisso
a consciência limpa, a sensação do dever cumprido...
os fins justificariam os meios caso não houvesse a hora odiosa, detestável, da prestação de contas
ocasião infeliz em que se vê face a reminiscências de uma vida pregressa... memórias do cárcere, em um pesadelo recorrente
seu corpo não lhe pertence, pertence a todos; todos quantos puderem pagar por merecê-lo
tem muito em comum com os animais selvagens, as feras indomadas, no livre curso de sua espontaneidade
e agora esse percalço, essa pedra no caminho...
algo precisa ser feito, que evoque uma lei
não a da civilização, esta não lhe cabe; tampouco as dos homens, que não lhe convém
a lei da selva... esta sim; a de quem tem jogo de cintura

jogo de cintura... seu maior trunfo


Rinaldo Leriano (Brasil)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (II)


Praia

No carro começa a impacientar-se. As filas. O tipo esperto que anda aos saltos de faixa em faixa. O homem que quer avançar pela berma e entrar mais à frente empurrando um espaço invisível de intimidação. Ir à praia ao domingo começa por ser um tormento matinal feito de esperas encaixotadas na auto-estrada. E depois, os miúdos sempre agitados no banco de trás, nem os cintos lhes seguram as mãos, os beliscões e as ansiedades de se atormentarem mutuamente num desgaste de vitórias visualizadas nas lágrimas de cada um. Nem o "parem quietos!", gritado num desconsolo já derrotado, os ameniza. A mulher apercebe-se do seu enervamento. Sabe que ele vem contrariado. Os olhos escurecem atrás dos óculos, escurecem os dedos pendurados no volante, escurece a voz que se cala no rolar do alcatrão. Encontrar um lugar para estacionar é um desatino. Levam tempos infinitos esburacando o espaço, alongando o olhar, procurando pedaço de terra onde enfiar o automóvel sem que ele possa sofrer grandes agruras. "Ali” – grita ela – e ele já a fazer marcha-atrás, a engatar a primeira e a verificar irritado que alguém, mais lesto, já se antecipara. Depois, carregar a tralha. O chapéu de sol, a geladeira, o colchão, as toalhas... Os gritos aos miúdos. Carregar também o enervamento de duas horas no trânsito, meia hora a procurar lugar para colocar o carro e outra hora, no mínimo, para digerir o facto de o filho mais velho ao abrir a porta ter batido com ela no poste de pedra. Caminha com o peso. E quando avista a praia, não a vê de imediato. Não há areal, pensa. Só cores e riscas de chapéus de sol. Só corpos e fatos de banho. Só gente. A mulher sente o escuro alongar-se nele. Tenta entusiasmar. Puxa-o para uma zona. Ele vai despido de vontade. Pisa a areia quente que lhe aparece suja. Longe do mar. Tão longe. Dali, nem as ondas se ouvem, nem as ondas se cheiram, nem as ondas azulam a vida. Só gente. Uma repulsa sobe-lhe aos olhos. Pensa na pele morta de tantas peles caídas por ali. Nos bronzeadores espalhados, cinzas de cigarros e esperas. Só gente. Ele quer praia. Uma sensação de claustrofobia altera-lhe a respiração. Sufoca-o. Pede desculpa à mulher, dá-lhe um beijo em fuga. Promete que os vem buscar, mas não pode ficar. Precisa de espaço.
 
 
Laura Silva (Portugal)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (I)


O amor não muda de endereço

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo./ Porque os corpos se entendem, mas as almas não. (Manuel Bandeira)

A planta da sala desfaleceu. Restou o vaso florido, na terra ressequida, algumas folhas mortas. Eu não quero o vaso, queria a planta, o cuidado diário, as conversas em meio à solidão, enquanto você assistia à televisão, ou falava ao telefone, todas as formas de fuga para que nunca estivéssemos juntos, não ouso dizer o termo próximo, é demais para a sua superficialidade maldita. Quando estava feliz por uma nova conquista, mais trabalho, aumento do salário, uma comemoração na família, ela ficava também – tínhamos uma cumplicidade única – a aparência e o vigor eram vertidos de cores brilhantes, ela era florida alegria. Lembro-me do dia em que você viajou. Não senti falta de sua ausência. O espaço da casa era o mesmo, os objetos em seus devidos lugares, o silêncio ainda mais absoluto. Comprei vinho e assisti aos filmes que gostava, escutei as músicas de minha preferência, saboreei a solidão não imposta, com uma privacidade libertária. Nunca disse isso a você, mas sempre achei seu gosto por filmes equivocado, até mesmo tosco, imaturo, e aos poucos percebi que a música não estava distante disso; ambos ressoavam a um tipo de glamour decadente, quando não, de interação social frívola. Observei sua aproximação com vilões, como você gostava do discurso produzido por eles, quando se davam bem. Em dramas românticos, havia um brilho em seus olhos nos momentos mais sofridos e catárticos. Os dias se passavam e sentia que não havia mais distância, a medida se concretizara diante de sua presença, quilômetros de estrada do seu ser já me haviam feito perder qualquer sinal no horizonte. Mas a nossa plantinha, esta era cuidada com afeto, dela estava perto, ciente de seus caprichos, caprichada em satisfazê-los. Suas cores ficavam cada vez mais vividas - begônias a ornamentar nossa casa diante da indiferença dos seus olhos. Enamorei-me de nossa begônia, tão bela e listrada, sua forma a evocar pequenos corações ilustrados em natureza viva. Quanto mais distante e rude você se tornava, mais apreciava a delicadeza de nossa begônia, e detestava o vazio obscuro que se instalara em nossa casa. Pois, foi minha vez de viajar, o seu retorno não fez diferença, a planta estava intacta, na sua ida, estabelecemos um vínculo forte. Mas a minha viagem mudou tudo, morreu de sede a planta amada. Em ti não vejo nem a semente. Restou nada. Fique com o vaso, matéria inanimada.


Manuela Barreto (Brasil)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Palavras Versadas (I)


SPA DA ALMA

O som ambiente do casulo apaga a luz dos meus olhos
as paredes se revestem de paisagens
o mundo dos sentidos se torna menor
até caber no lugar sagrado do meu inconsciente desperto

as asas descansam
mais tarde voltarão a bater
conduzirão minha vontade adormecida aonde houver asas irmãs
então esvoaçarão coloridas pela noite como estrelas retiradas do firmamento

enquanto descansam, a mente flutua por regiões de pensamentos dispersos
desertos de atividades cerebrais
percorre o passado, o presente e deixa que a melodia delineie o futuro
com seus encantos de música agradável


Rinaldo Leriano (Brasil)

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Palavras Versadas (II)


A língua que eu falo

A língua que eu falo
não tem nações, rostos, ou cores,
a língua que eu falo
não tem idades, padrões ou religiões,
a língua muda que eu falo
é a linguagem universal dos corações,
o amor...


Sónia Sultuane (Moçambique)

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS - Palavras Versadas (III)


Entrei…

entrei num mundo
que não era o meu
obscuro mas quente
proíbido mas desejado
era o nosso mundo
criámo-lo para nós
vivemos intensamente
marcou para sempre

eu saí, tu ficaste
deixei a porta aberta
não sei, em mim
não há coragem de a fechar
deixo-a apenas entreaberta
à espreita de quem poderá entrar


Túlipa Negra (Portugal)

domingo, 18 de setembro de 2011

Provocatio


O ditador que há em mim

Exijo o direito de morrer e viver, do prazer e da dor, a liberdade de ser eu a optar. Prefiro, em mim, um ditador a uma democracia, opto: antes submeter-me à vontade de um a respeitar os direitos de vários. Preservo o direito de tudo negar, pois, sou livre de o fazer!

(...) Sou um ser egoisticamente egoísta.
 
 
Joana Santos

sábado, 17 de setembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Beleza emocional

O que nos faz ser belas? Aí está uma pergunta que se perde na nossa, minha, mania de competitividade. Espelho meu, espelho meu, quem será mais bela do que eu? Convenhamos, ninguém é a "última bolacha do pacote". O que não falta são bolachas e gente, no caso homens, que as queiram comer. E não é verdade que nós, mulheres, também encontramos mil sabores e formatos no mercado? A beleza é uma coisa estranha. Nunca, como hoje, o conceito foi tão difícil de definir. A simetria pode chatear. Um nariz torto pode excitar. Por outro lado, a beleza não é apanágio de uma meia dúzia de eleitos. Hoje está à mão de toda a gente. "Só é feio quem é pobre", ouvi no outro dia dizer. Há marquesas, cirugiões e laser para todas os gostos, para contas bancárias e plafonds medianos. Nem é preciso ser milionário. A democracia também chegou à beleza. Já não é exclusiva.
Então, o que distingue as belas das mais belas?
Ser mais bela está para lá do formato e do conteúdo. A inteligência não é factor decisivo... Outras não são inteligentes e são belas. E qual é o problema? A falta de inteligência também pode ser interessante. Porque pueril e inocente. Além disso, se estiverem caladas ninguém nota muito. E eu acho que fazem muito bem.
Ser a mais bela é ter um ingrediente especial. Ninguém sabe onde comprá-lo. É aquele segredo que os pais e a ordem geral do universo aplicaram na nossa concepção. Depois é connosco, na forma como jogamos a genética (nada a fazer), com os dados que a vida nos põe na mesa (tudo por fazer), e equilibramos o que somos com o que desejamos ser e, acima de tudo, com o que somos sem fazer esforço. É isso a beleza emocional em lugar da irritante "beleza interior". A beleza é uma questão de livre arbítrio. Depende da forma como decidimos viver o nosso corpo, e se lhe queremos dar alma. O corpo paga as nossas emoções mal digeridas e ganha em harmonia por cada etapa de crescimento feliz, assumindo as formas das nossas frustrações e das nossas alegrias.
Afinal, a beleza dá trabalho, porque não podemos fazer dela um trabalho. É isso que é a beleza natural (não tem nada a ver com andar de cara lavada e os cabelos brancos desgrenhados ao vento).
Se nos irritarmos com as nossas "asinhas do amor" (raios as partam) elas no dia seguinte duplicam-se a cair sobre o cinto das calças. Se embirrarmos com o cabelo ele revolta-se contra nós... Não lutemos contra o corpo. Temos de aceitá-lo e levá-lo com jeitinho, dando-lhe graxa, amando-o como é, para fazermos dele o que queremos que ele seja: tão bonito como a mais bela imagem que temos de nós.
Em criança, andava de avental na cabeça para fazer de conta que tinha longos cabelos a cair pelas costas e partia a alma dos sapatos da minha mãe, mais o seu espólio de colares. Isso fazia-me mais bonita? Não. Claro que não. Ainda hoje não faz. Por mais artigos da "Pedra Dura" que adquira e vestidos cai-cai, não é isso que faz a diferença. A moda e os penduricalhos só nos tornam mais competitivas.
O que nos faz mais belas, as mais belas, aliás, é o não termos vontade de o ser, é nem sequer pensarmos muito nisso. É não estruturarmos um conceito de beleza com palavras e pensamentos que vão das madeixas, às cores de batom ou ao formato de ancas. O ser ganha sempre sobre o parecer. Não tenhamos ilusões. Venham as Vogues e as idas ao cabeleireiro, sim senhora, mas se conspirarmos para ser belas, a beleza foge-nos violentamente como a areia do deserto em dia de tempestade. A nossa natureza precisa de sintonia, não de agressão.


Ana Santiago

sexta-feira, 16 de setembro de 2011


Stand by me!

Nunca sabes, mas precisas. Não vês, mas podes sentir. Não crês e ele não existe. Crer é acima de tudo dar existência às coisas que ainda não são coisas. Começamos por crer, por tomar caminhos, e ao seguirmos a estrada do fim acabamos no início. No início é a palavra por inventar, o verbo em vias de se ecoalizar. No início, não sabemos nada e o mundo gira em torno das nossas cabeças. É tanta a nossa vontade de andar erectos, que nos espojamos na terra para sacudir a nossa bestialidade. Rodamos várias vezes sobre nós próprios até pararmos no sopé da altura toda que já percorremos.
Podíamos ser montanhas e parir, podíamos ser parturientes e nunca sair da planície – o céu é sempre o mesmo, visto de perto ou de longe. O sol é um nascituro quotidiano. Nós, nascemos às vezes, para morrermos todos os dias. Nascemos com a cabeça entre as pernas, no mais abjecto sentir. Renascemos ao denominar: a palavra é o corpo da escrita, o sangue. Vamos e voltamos, sempre em palavras, sempre em viagem. É preciso viajar para renascer, para dar corpo aos sonhos que ainda não sonhámos. Ser a viagem, a catarse escrita numa folha; ser a palavra dita e a palavra maldita. Já não importa o destino, é sempre a mesma sorte.
O Homem destila rotas e cataliza destinos: a rota é um catalizador do destino. Se seguirmos sempre a mesma rota temos de saber quem vamos ser, quando e porque estamos equivocados. Temos de saber quem nos espera e em que lugar. Se sabemos partir e escolher lugares onde parir, também somos o lugar onde nos vamos achar. E um dia achamos uma pedra tão simples, tão pura, que a água a desfaz em branco e se purifica. A água corre contra a torrente e a favor dela. O Homem, é e não é; é e nada. Tens sempre de ir quando andas em busca do que não consegues entender, tens sempre de ir para lá das ideias que te impingem no berço. Tens de partir e ficar, tens de estar contigo, tens de estar quando estão por ti.

Precisas sempre de alguém que fique por ti, contigo: nas praças, nas ruas, nas avenidas, nos montes, nos becos, nos pátios, por todos os cantos da cidade, em todas as cores da montanha...


Joshua M.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011


Título

(natureza morta com dióspiro)

Não como pão sem sal...
(Mas sei que há quem coma. Até por precaução e receio de acidentes cardiovasculares)

O Outono é curioso, mas ainda estou à espera da chegada dos dióspiros.
Atenção aos dióspiros quase maduros,
têm um cheiro excessivamente delicado. Quase nada. 

Prefiro cheiros tóxicos,
no início. 

É uma cor linda, a dos dióspiros, mas por estranho que pareça considero o verde a cor mais inusitada que existe. Dependendo da tonalidade, tanto pode ser enfadonho, como sedutor e muito luxuriante, até. Mas nunca vulgar.
O meu preferido é o verde corpulento das folhas de japoneira, quando brilham à luz das manhãs geladas de Inverno. 

Não é nada fácil vestir verde.
Não é nada fácil comer um dióspiro. 


Iolanda Bárria

quarta-feira, 14 de setembro de 2011



Há palavras que só os beijos calam

Acordei devagarinho com a luz suave da manhã a acariciar-me a pele e o cheiro a maresia a inundar-me os sentidos. Libertei-me lentamente dos braços dele e olhei em volta. Em frente tinha o imenso mar azul, plácido e apetecível. As gaivotas piavam no alvoroço de terem a praia por sua conta. Fechei os olhos e, por momentos, voltei ao céu estrelado da noite anterior. Estrelas, milhões delas, testemunhas mudas do prazer que partilhámos, testemunhas mudas de tantas estórias. 

Ele acordou. Sorriu e beijou-me com olhos de desejo. Ainda tentei argumentar que a qualquer momento chegariam os primeiros madrugadores à praia mas... há resistências que só o desejo vence e há palavras que só os beijos calam.


Missanga

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Palavras Versadas


fotossíntese

haverá espaço nas mãos como uma árvore
entre agarrar a borboleta à sombra da tua voz
e o cair da folha no tempo calado

somos um suor onde germina a pequena raiz
com a terra a rodopiar à boca dos dedos
cada dia plantado na sua luz, cada dia esquecimento

o perfume apaixona-se pela flor e renasce nela


Bill enGates

domingo, 11 de setembro de 2011

Provocatio


A árvore do desejo

O desejo cresceu ao ritmo lento de madrugadas tão silenciosamente inundadas de palavras. Palavras que foram pousando, docemente, nos nossos olhos, nos nossos lábios, nos nossos corpos, abrindo caminho ao sonho. O sonho, sonhado a dois, tornou-se urgente. A urgência foi sendo delongada. A delonga amplia ou abranda o desejo?


Missanga

sábado, 10 de setembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


O PAÍS QUE TEMOS

Irrito-me sempre um pouco com as pessoas que julgam Portugal um país evoluído e educado.

Já não basta viajar na auto-estrada e ver o gajo do Porsche à minha frente atirar papéis pela janela, ou percorrer o passeio até ao parquímetro mais próximo e pisar várias cagadelas de cão, passeado orgulhosamente pela sua dona, senhora fina (puta fina, diria eu!).

Nem basta sequer aperceber-me que o país está de novo a arder e só há dois helicópteros disponíveis para apagar o fogo. Muito menos me basta pensar na imensidão de estádios de futebol que foram construídos propositadamente para o "Euro 2004".

Isto para não falar na falta de educação e civilização generalizada do nosso povinho que, em qualquer sítio, praia, campo, cidade, centro comercial, supermercado, rua, estrada, não se inibe de dar os seus ares de vulgaridade.

Não sei, meus amigos. Não me importava nada de emigrar. Fosse eu uns anos mais nova e pensaria seriamente em fazer a minha vida num país diferente.

O único problema seria o sol. Onde vou eu encontrar um país civilizado e com tanto sol?


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 9 de setembro de 2011


A cidade

Simpatizo, em particular, com esta tela do João (Cristóvão). Com as cores, a sujidade, até a falta de gente. É um lugar estranho! Não se pode afirmar que esteja abandonado! Longe disso. É cor a mais! Gosto de pensar que está assim, aparentemente desocupada, só enquanto a observo. Apago a luz e voltam as pessoas. Trabalhadores de cidade, tac, tac, tac tac, compenetrados, na sua vida mecânica. Deve-se encher de automóveis e do seu cheiro. 
Adormeço muitas vezes a pensar nisto. É o último objecto que vejo.
Ó João, que azul é aquele, entornado no chão? Parece uma inundação. Um rio que entra desgovernado,  pela cidade!
 
 
Iolanda Bárria

quinta-feira, 8 de setembro de 2011


Nas suas mãos...

Uma cerveja no Inferno. É uma boa obra poética. Mas é muito mais que isso. Recordo-me que quando a recebi fiquei meia tarde a olhar para o título e a divagar. Hoje lembrei-me dela. Da obra. Não que aprecie cerveja. Não que admire o calor do Inferno. Mas uma cerveja fresquinha assim no meio do inferno parece-me bem. Nem que seja como mera analogia. A cerveja convida, refresca, arrasta e desperta os sentidos, atraindo-nos a ir buscá-la às profundezas do Inferno. E ficamos ali, perdidos, no epicentro das chamas e das labaredas emocionais.

Lembrei-me disto a propósito da obra “Nas suas mãos”, de Marthe Blau, que me resgatou a atenção desde a primeira linha. Personagens bem construídas numa incursão pelo inconstante mundo da submissão psicológica, pautado por uma violência emocional inquietante. Com alguém a entregar-se nas mãos de alguém, numa obsessão incontrolável pela cumplicidade na luxúria, tão doentia quanto saudável. Um livro que sabe a cerveja. No Inferno.


Bruno Vilão

quarta-feira, 7 de setembro de 2011


Na brisa dos dias

Calei há longas semanas a minha voz. Quero falar-te, mas nada de novo tenho a acrescentar à inércia dos meus dias. Às vezes, sonho que te encontro no local mais improvável à tua pessoa, que nos sentamos num banco do jardim debaixo de um grande plátano e que ele se vai despindo aos poucos cada vez que a brisa fresca passa; e de mãos dadas contemplamos o pôr-do-sol enquanto partilhamos fragmentos de coisas delicadamente importantes. E o mundo soa tão belo...


Joana Santos

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Palavras Versadas


carapau que ficas ali mar

já tive dias em que só
um desejo de água me saciava
ali pedra e calma
sentado à mesa para comer uma vida de merda
era o único comensal
exigia um copo de vidro embriagado e comia
um carapau com sol ao sábado não fica mar
bem temperado se faz favor e jovial
o empregado servia o que servia
ali compenetrado
...
depois ia e vinha apenas nada
e muito obrigado


Joshua M.

domingo, 4 de setembro de 2011

Provocatio


de ende

a máquina de levar ligada à corrente
desbotou o amor na camisa de sede
não há mais fórmulas para deter gente
desbotámos as dores da nossa parede

não há anéis nos medos da mão
não há funerais quando se fecha o paixão


Bill enGates

sábado, 3 de setembro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Sobre a Europa

A Europa é sobretudo um continente percorrido a pé. E isto faz toda a diferença em relação ao resto do mundo. Numa conferência que deu no Nexus Institute (e que depois transformou no livro "A Ideia de Europa"), George Steiner defendia que a cartografia europeia é determinada pelas capacidades, pelos horizontes percepcionados dos pés humanos. E assim é. Claro que também há extensões de terreno difíceis, mas nenhuma é intransponível, como acontece noutros continentes. Ninguém atravessa a Amazónia a pé. Mas os Alpes, sim.
As distancias têm uma escala humana, são percorridas há séculos e isto foi moldando a  paisagem. Para Steiner, este facto determina a existência de uma relação essencial entre a humanidade europeia e a sua paisagem que, como em nenhuma outra parte do globo, tomou a forma de um tempo histórico-humano, mais do que geológico. Para isso muito contribuiram as longas marchas dos soldados de Alexandre, desde a Grécia continental às fronteiras da Índia e ao deserto líbio. Assim como os quilómetros percorridos pelas legiões napoleónicas, de Portugal a Moscovo ou, depois, pelas unidades de infantaria que 'fizeram' as duas grandes guerras...
Creio mesmo que, apesar dos comboios de alta velocidade, da aviação low cost e das longas auto-estradas, esta é uma característica que a Europa nunca perdeu!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 2 de setembro de 2011


Como ser uma bruxa de sucesso

Tranquei o meu inútil diploma num armário e transformei o escritório da minha casa num consultório. Arranjei uma velha mesa redonda que cobri com uma comprida toalha cor de sangue. Estudei as cores e escolhi as mais relaxantes para a restante decoração. Coloquei umas velas aqui e ali e também um pouco de incenso. Faltava-me escolher um método de adivinhação. Optei pelas runas que são um método muito antigo e relativamente pouco conhecido no ocidente. Além disso acho imensa piada às pedrinhas das runas. Estudei, com afinco, todas as maneiras de as interpretar. Arranjei também ervas medicinais, na sua maioria infusões, para os mais diversos efeitos. Li imenso sobre o assunto e aprendi a fazer misturas com grande mestria. As infusões ajudam e a fé faz o resto. Quando pressentisse problemas de saúde realmente graves, tentaria convencer os clientes a procurarem um médico. Falei com uma amiga que também estava desempregada e expliquei-lhe a ideia. Achou tudo um pouco maluco mas aceitou de imediato ser minha recepcionista. Fizemos panfletos e espalhámos pelas caixas de correio das redondezas e aguardámos. E assim, lentamente, começaram a aparecer os primeiros clientes. Na primeira vez, como em todas as primeiras vezes de tudo, estava nervosíssima. Correu bem. Com o passar do tempo fui perdendo o medo e ganhando confiança no que fazia. Não sou uma bruxa convencional, não adivinho, mas sou intuitiva e percebo de imediato o que angustia as pessoas. O segredo é conseguir, subtilmente, que revelem o maior número de detalhes sobre as suas vidas, medos e esperanças. Na maioria das ocasiões elas somente precisam de alguém que as oiça e lhes mostre caminhos e opções. Hoje em dia tenho uma clientela assídua que nunca iria a um psicólogo mas que vem até mim. Pontualmente, o remorso ainda me invade. Como bruxa sou uma farsa. Mas, não serão todas?
 
 
Missanga

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


PATCHWORK

Ou tardes de Setembro à beira-mar a ouvir Summertime (versão Live) de Miles Davis, conversas (ou podem ser desconversas) com amigas do peito, mulheres que amo e amarei sempre, um café ao sol na esplanada do meu bairro, uma aula inspirada em que me sinto feliz por partilhar o que sei (mesmo que não venha nos livros), as estradas, planícies e montes do meu Alentejo, o sorriso da minha mãe, a cumplicidade com alguém, atravessar a ponte Vasco da Gama ao nascer do sol, o Natal frio da minha aldeia, um cacau quente à minha lareira, uma massagem com óleo de baunilha, o concerto dos Waterboys ali mesmo, na primeira fila, os primeiros acordes no The return of Pan, o ronronar do meu gato amarelo, um chá quente na minha varanda, manhã cedo, enrolada numa manta, uma noite perdida a fzer amor, atravessar a pé uma fronteira, a serra da Arrábida num descapotável preto, um almoço junto ao mar em pleno Inverno, sexo em pleno dia em sítios improváveis, mergulhar nua, apanhar sol no rosto mesmo que isso apresse as rugas, uma garrafa de vinho bebida a dois, dançar, dançar...

Não acabam, os momentos da minha vida que me fazem sorrir quando, nestes dias de Outono, me questiono sobre as cores do próximo retalho que vou acrescentar à minha manta.


Carmo Miranda Machado