sábado, 27 de agosto de 2011

Crónica Benzodiazepina


Vidas erradas por aí 

Há pouco fui ao supermercado e passei, como habitualmente, por um sem-abrigo que há muitos meses se instalou junto à porta de acesso ao parque exterior. Enquanto caminhava ouvi o tipo duma carrinha de distribuição afirmar, mais do que perguntar: “Tu, com essa vida, nem miúdas sacas”. O sem-abrigo que terá pouco mais de 30 anos - suspeito que lavadinho e com roupa catita punha muitos tipos a um canto - replicou-lhe calmamente: “Por acaso ainda na semana passada estive com uma. Tu devias estar a ver bola enquanto eu estava na brincadeira com ela”. O outro, de pança farta, querendo ter a última palavra: “Ah sim? E debaixo de que ponte?”. Já não ouvi a resposta. Quando saí, já o pançudo tinha isso à sua vida (arrisco-me a dizer vidinha) e o outro, o sem-abrigo, contava a sua estória a uma pequena plateia de mulheres e crianças. Fui andando devagar e percebi que o divórcio dos pais o tinha atirado para as estatísticas das crianças que ninguém quer. E assim foi crescendo, entregue à sua sorte e fazendo por sobreviver. Agora está ali. Nunca o vi pedir nada a ninguém, nunca o vi ser mal-educado e tem ainda nos olhos um brilho que a vida não lhe conseguiu apagar.
Fiquei a pensar que é preciso tão pouco para uma vida dar errado. Estamos sempre muito mais perto do precipício do que aquilo que imaginamos. Uma opção mal tomada, um passo em falso, um desaire amoroso, qualquer coisa. O facto é que todos temos em nós a possibilidade do abismo.


Missanga

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