domingo, 31 de julho de 2011

Provocatio


Escrever para viver

Dei tempo para crescer, para viver, para pensar. Não cresci. Viver? Talvez tenha vivido por escassos segundos. Pensar? Não me dei a tal trabalho. A minha cabeça é o abismo de amanhã, a desordem é completa, o caos instalou-se - tormento d'alma. Necessito da escrita para fazer soar em meros vocábulos o que na mente me vai. Busco organização, afirmo!


Joana Santos

sábado, 30 de julho de 2011

Crónica Benzodiazepina


Acidentes mediáticos

A propósito de acidentes, muito se tem escrito na blogoesfera sobre o Angélico. Há quem o condene de imediato porque devia ir em excesso de velocidade, porque devia ir com os copos, porque não levava cinto, porque jovens como ele são todos uns inconscientes por colocarem a sua vida e a dos outros em perigo. Há quem o defenda e sofra como se, pelo facto de ser conhecido, fizesse parte da família ou dos amigos. Os portugueses são exímios em expressar juízos de valor quer estejam ou não na posse de toda a informação sobre qualquer assunto que seja.
Eu apenas lamento uma morte tão prematura, como lamento todas. Não sei o que provocou o acidente. E ainda que tenha sido por algum dos motivos referidos acima, quantos podem dizer que, em algum momento das suas vidas, não facilitaram? Eu não posso. Da mesma maneira que me recusei muitas vezes a ir num carro com um condutor embriagado, ou que convenci alguém a deixar-me conduzir por não ter bebido, também já andei de carro com amigos que conduziam embriagados, andei sem cinto, fui fazer piões de jeep, andei em carros ultra lotados, andei a 280 de mota e, uma ou outra vez, conduzi ligeiramente embriagada. Era mais nova, é certo, mas mesmo assim com idade suficiente para ter consciência do que estava a fazer. Tive sorte, muita sorte porque há, efectivamente, idades em que nos achamos imortais. Também me impressiona todo este circo mediático montado à volta deste acontecimento. Como se ele fosse o único a sofrer uma morte destas. Era, de facto, único para a sua família e amigos. Ele perdeu a vida e os que o amam ganharam um inferno particular que só o tempo irá amenizar.


Missanga

sexta-feira, 29 de julho de 2011

FAKE LOOK - Blogonovela em três actos (III)


Fake Look

III

Gabriel dissera a Maria que ia a um dos habituais jantares do escritório; Madalena deixara os filhos em casa da mãe a pretexto de uma ida ao cinema com uma amiga, o marido estava fora e tinha a noite por sua conta. Foram jantar à beira rio, a lua nova subia com vagar e eles falaram longamente sobre os velhos tempos. Ela, sorria e falava com uma voz doce e tranquila, parecia radiante com o reencontro; ele, olhava-a examinadamente e escutava-a sorrindo, feliz como não se sentia há muito. O primeiro impacto fora fulminante para Gabriel, estava extasiado com o porte e a beleza sóbria daquela mulher que contava mais de quarenta anos. Conversaram, do passado, das saudades, da vida, do presente, da familia, de tudo e de nada. Olhos contra olhos, palavras contra palavras, num jogo de sedução livre e consentido.
Depois de jantar resolveram estender a conversa e passear um pouco à beira rio. A maresia e o frio da noite chegara-os um ao outro, ele dera-lhe o seu casaco, pusera-lhe o braço por cima e seguiam os dois assim, até que pararam a ver as manobras de um barco que deslizava pelo Tejo e se olharam mutuamente e o olhar pediu o calor de um beijo na noite fria. Sem nada dizer dirigiram-se para o carro dela e sempre em silêncio ela conduziu-o a sua casa. Entraram mudos e prementes e durante horas o chão da sala, atapetado com uma pele de urso, acolheu uma cena de amantes como nunca havia acontecido naquela casa, ou na vida de qualquer um deles. Haviam descoberto o doce sabor de se dar sem barreiras. O dia nascera quando eles adormeceram, Gabriel dormia profundamente à hora de entrar ao trabalho. À sua mulher tinha enviado uma mensagem dizendo-lhe que não voltava a casa nessa noite, que a noite se havia prolongado com uns copos em casa do colega e ficaria mesmo por lá, incapaz de conduzir.
Despertaram ambos por volta do meio dia e voltaram a dar-se como se o mundo tivesse nascido novo, tomaram banho juntos, lavaram-se um ao outro, deram comida na boca um do outro, beijos e carícias por todos os momentos. Por volta das cinco da tarde despediram-se com um casto beijo e um olhar de saudade pressentida – ela foi buscar os filhos e ele voltou a casa.
Ela nunca mais enviara mensagens nem voltara a entrar na internet, retirara mesmo o perfil daquela rede social. Nunca mais se falaram, mas desde esse dia tudo mudara para ele. Passariam outros 15 anos até que Gabriel reencontrou Madalena, estavam ambos com cinquenta e tal anos e voltava agora a vê-la, desta vez acompanhada pelo marido. " - Mas como é que eles foram aparecer, logo ali?" Ele estava com Maria e, entre hesitação e vergonha, dirigiu-se a Madalena e ao marido para os cumprimentar.
Gabriel estava atónito, não percebia como era possível que eles estivessem num sítio daqueles e ela, Madalena, vestida daquela maneira...


Joshua M.

quinta-feira, 28 de julho de 2011


PARTIR

Partir. Fazer a mala e partir. Um mês fora. Ver o mundo. rodear-me do exótico, do novo e de um pouco de mim. Reconhecer-me em sítios distantes. Identificar-me com o outro na imensidão do planeta. Visitar a selva. Descer o rio de caiaque. Observar os pássaros. Temer as cobras e os crocodilos. Descobrir novos cheiros e sabores. Visitar tribos remotas. Respeitar. Sonhar. Regressar.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 27 de julho de 2011


As obras

Uma das práticas aberrantes do nosso tempo é enchermos as casas com livros. Quantos mais, melhor.
À medida que enchemos as casas com livros, esvaziamos as bibliotecas. Esvaziam-se de livros e pior, também de sentido. Bem sei que as bibliotecas tal qual as conhecemos são jurássicas e (a não ser que tal livro não possa ser requisitado, ou porque está muito frio na rua), ninguém se quer sentar em cadeiras duras a ler debaixo de uma luz medíocre.
Mas o conceito das bibliotecas é espantosamente democrático para os dias que correm e isso é mesmo muito valioso.

(à parte):

A bibliotecária da biblioteca que frequento trata tudo o que lá existe por 'obra'. Obra para cá, obra para lá:
 " - Essa obra não pode ser requisitada! De que prateleira retirou esta obra?".  Só obras primas, uma ternura! mas eu às vezes também gostava que se tratassem os livros com menos reverência e mais desassombro. Seria muito bom sinal!
Quando estou de mau humor (muitíssimo raro...), apetece-me dizer-lhe: " - se você lesse um terço do que está aqui à sua volta, despedia-se pela janela, tamanha seria a náusea e a desilusão..."


Iolanda Bárria

terça-feira, 26 de julho de 2011

Palavras Versadas


O ÚLTIMO POEMA SOBRE AS PALAVRAS

as palavras sabem todas ao mesmo. a esta solidão aberta ao meio
por uma tristeza estética. onde estou? onde influí
na capacidade de reparar o erro? rasguei a página
para ocultar o erro. as palavras servem para provar a outras palavras
que aquelas e estas sabem ao mesmo.
e se na mesma tarde, se na mesma lambida, se debaixo dos mesmos cotovelos.
as palavras influem na minha capacidade de perder as capacidades
que engulo e sinto. o corpo cerca o impossível. a poesia é uma coisa do corpo.
nada mais. tão regional e irregular quanto um estômago, uns seios, um pénis.
e são as suas deformações, contudo, que a elevam ao nível da cabeça.
como um objecto lúcido. como uma voz que vem de cima.
e há um todo algures. um bloco que nada tem de ver com palavras.
se estão estas, podiam estar outras palavras ou olhos vivos
como o nexo mais primitivo. não importa. assim como em vez
de estarem dedos podia estar o queixo. porque tudo toca.
tudo o que tem expectativa e pele. e o poema tem pele.
a matéria da pele é o seu ímpeto, o seu maquinismo emocional.
os bons poemas dispensam as palavras
como alguém que diz adeus.


Sylvia Beirute

domingo, 24 de julho de 2011

Provocatio


A função do tempo

Há relações que construímos e parece que só as conseguimos manter em esforço.
Há outras relações que de tão naturais, parecem surgir espontaneamente e a forma de as mantermos, por incrível que pareça, é não fazermos o mínimo esforço.
Umas e outras são lições de perdão. Relembrar o amor é o resultado da sua aprendizagem.



duArte

sábado, 23 de julho de 2011

Em memória de Lucien Freud (Berlim, 8/12/1922 - Londres, 20/7/2011)


Carne Viva

O meu primeiro frente a frente com a obra de Lucien Freud, aconteceu em Barcelona, numa grande retrospectiva da sua pintura e não correu nada bem.
Tantos nus e tanta carne exposta agoniaram-me, de alguma maneira. Aquela impressão crua e rude por todo o lado… Vi o que tinha a ver e saí, aliviada. E “pálida”, como bem notou o P., quando nos encontrámos, já na rua.
Desapontado com a (aparente) falta de sintonia entre mim e a obra de Lucien, mas compreensivo e sempre generoso com os seus conhecimentos, P. achou que era boa altura para me levar ao bar mais mal frequentado de toda a Catalunha. " - Vais ver - segredou-me -, é onde se preparam as mais fantásticas margaritas de todo o universo”. E era! Além de deliciosas eram tão simpáticas que se voluntariaram logo para me levar a palidez e o mal-estar. A esta distancia não sei dizer bem se foi disso, se da companhia, ou simplesmente da consequência trágica do que fica inacabado, o certo é que no dia seguinte dei comigo novamente em frente àqueles quadros. E no outro. E, depois, no outro!
Lucien Freud diz que «a aura que se liberta de uma pessoa é tanto parte dela quanto a sua carne» e é esta dimensão orgânica que lhe interessa captar para as telas que lhe saem das mãos através dos grossos pincéis de cerda de porco. Importa-lhe sobretudo o espaço físico que ocupamos e o efeito que isto produz à nossa volta. Por isso, observa e analisa aturadamente os objectos (corpos) que pinta, quase à exaustão. Daí tanta carne. E isso é tão verdade quando pinta o avantajado actor porno, Leigh Bowery, a rainha de Inglaterra, ou a sua própria mãe. Diz: “Gosto de ver as pessoas tão naturalmente e fisicamente à vontade como os animais” . Freud não faz retratos, tem horror à imitação, antes «pinta a pessoa real» intensificada, com rugas, varizes, cicatrizes, gordura…
Passa-se uma vez em frente ao quadro e vemos uma pessoa que nos é repugnante. À segunda, já é repulsiva. E a partir da terceira, já é quase atraente…
Sendo neto de Sigmund Freud, não deixa de ser curioso este interesse quase obsessivo pela dimensão fisiológica em detrimento da psicológica. Gosto de pensar que é uma embirração dele contra a tralha psicológica com que o entupiram durante a sua infância e juventude. Uma libertação!
Seja o que for, para mim, os quadros de Lucien Freud estão, além de tudo, impregnados daquela quase fatalidade que a arte carrega e que tanto fascina: não terminam quando acabam…
 
 
Iolanda Bárria

sexta-feira, 22 de julho de 2011

FAKE LOOK - Blogonovela em três actos (II)


Fake Look

II

Uma semana depois, quando a breve alegria da mensagem de Madalena quase se havia desfeito na vagarosa monotonia dos dias de trabalho e no silêncio acordado das noites de solidão acompanhada, as mesmas sensações se repetiram como um eco amplificado. A recepção de nova mensagem despertou de novo as batidas do coração e de novo se lhe desfez o pensamento em imagens dispersas e longínquas. Afinal de contas não passava uma mensagem tão vulgar como as outras, a mesma que havia já recebido algumas dezenas senão centenas de vezes, enviadas por amigos e por outras pessoas, cuja tendência para convites sem interesse se acentua a coberto da rede. Era um convite para aderir a uma rede social. Mas esta... esta era diferente, era da sua colega Madalena. Ruborizou, desapertou o botão de cima da camisa, aliviou o nó da gravata, suores frios percorreram-lhe o corpo. Quando se acalmou, não hesitou e propôs-se de imediato aceitar o seu convite, acicatado por uma curiosidade impaciente, ávido de ver alguma foto sua, de saber algo sobre a sua vida actual. Estaria casada? Teria filhos? Onde viveria? Onde trabalharia?
Cumpridas as lentas e fastidosas formalidades de inscrição, navegou num mar de excitação e desejo indisfarçado. Foi direito à busca e ao perfil dela. Decorreu uma eternidade por breves segundos, até que chegou finalmente à procurada Lena. Nestas ocasiões as páginas de internet provocam, com o seu vagar, sofrimentos que parecem durar séculos.
Reviveu subitamente uma recordação acabada dos dias felizes do tempo outro. O retrato da jovem Lena surgia-lhe agora com a ténue nitidez de uma película impressionada há muitos anos: a moçoila breve e tranquila de faces rosadas, vinte anos de idade por cumprir, trajada por hábito de cores garridas quase festivas, a cinta fina e a saia rodada de forma a salientar as amplas curvas de um corpo inquieto e roliço. Ao chegar ao átrio da universidade espalhava sensualidade e um aroma a alfazema de forma desleixada. Era uma promessa consistente de uma beleza plácida ao atingir a maturidade.
Uma breve descrição pessoal revelava que vivia em Oeiras, era funcionária pública, bibliotecária, e estava casada. Gostava de cinema e de literatura, de música e de viagens, revelava uma sumária apresentação no seu perfil. Abriu o álbum de fotos e lá estava ela, com o seu porte elegante – mais magra, um rosto suavemente sulcado – mas sem dúvida ela, tocada pelas indeléveis marcas do tempo. A jovem bonita e de ar mimoso dos vintes anos dera lugar a uma mulher distinta, com um olhar mais triste mas ainda assim bela, seguramente ainda mais bela. Nunca Gabriel havia notado esta estranha beleza. Os traços eram os mesmos, a idade só os tinha acentuado.
Entretanto uma nova janela se abrira diante de si, como que por magia: era ela que através do chat lhe acenava um "olá" e um "há quanto tempo!". Depois de um emocional início de conversa, as teclas falaram longamente por ambos, sobre ambos, sobre o passado e o presente. Deram lugar ao futuro, combinaram encontrar-se na semana seguinte, concordaram num jantar a dois, trocaram números de telefone e despediram-se com beijos repetidos. Foi uma longa semana até ao reencontro, ela não lhe saíra do pensamento um só dia, um só segundo da sua vida, durante aqueles dias que se consumiram demoradamente até ao prometido.


Joshua M.

quinta-feira, 21 de julho de 2011


CONTO DE FADAS PARA MULHERES DO SÉC. XXI

Era uma vez, numa terra muito distante... uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima. Ora, andava ela a pavonear-se pelo reino, quando se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo estava de acordo com as conformidades ecológicas.

Então a rã pulou para o seu colo e disse: " - Linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito. Uma bruxa má lançou-me um encanto e eu transformei-me nesta rã asquerosa. Um beijo teu, no entanto, há-de transformar-me de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir um lar feliz no teu lindo castelo. A tua mãe poderia vir morar connosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre."

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã à sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma: " - Nem morta!"


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 20 de julho de 2011

DIAS DOS AMIGOS - Crónica Benzodiazepina


Amigos e amigas

Vão-me perdoar, mas detesto o dia dos amigos, ou amigas, e todas as festividades carnavalescas que se seguem. É realmente curioso pois nasci numa terça-feira de Carnaval. Mesmo assim, nem associando o meu aniversário à grande “festa da carne” a aprecio. Não é pela data em si, mas pela forma como é comemorada. Odeio strip-tease organizado, quer feminino, quer masculino. Não por falso moralismo, mas há coisas que só fazem sentido se forem mais espontâneas. Irrita-me a obrigatoriedade de toda a gente perder a cabeça, beber, fazer figura de urso. Irrita-me. Mas, acreditem, adoro festa! Adoro amigos e amigas. Quem me conhece sabe que comemoro a amizade ao longo do ano até com pompa e circunstância. A histeria colectiva é que não me convence. Parece estar formatizada – o jantar, a bebedeira, o strip, e provavelmente, lágrimas no dia seguinte. Não há pachorra! Gosto demasiado dos meus amigos e amigas para os comemorar assim. A amizade para mim é uma coisa intimista, personalizada, requintada e atenta. Festejo-a frequentemente com jantares, saídas, conversas profundas ou brejeiras, pequenas loucuras, mas nunca com vulgaridade.


Lucinda Gray

terça-feira, 19 de julho de 2011

Palavras Versadas


Gema de Linho

Há sempre qualquer coisa que sobressai
Uma cortina partida e espalhada no deserto
Uma bela amada desenhando isqueiros
num copo de whisky com veneno
Há sempre qualquer coisa que sobressai
“adiante questão”
Há sempre tu apontando setas na atomosfera
Qualquer coisa que sobressai
tu e as rãs em si
tu e pirilampos donde se deduz jipe
tu agente elo
“adiante questão”


João Belo

domingo, 17 de julho de 2011

Provocatio


Eu, pecadora inconfessada

Lembrei-me agora que já não me confesso desde os 15 anos. Tempo mais do que suficiente para os meus pecados se terem convertido em dados biográficos sem qualquer vínculo ao bem e ao mal. Viver é prescrever.


Ana Santiago

sábado, 16 de julho de 2011

Crónica Benzodiazepina


INTIMIDADE(S)

Todos nós tememos a intimidade ainda que não tenhamos consciência disso. Somos estranhos uns aos outros. Somos estranhos a nós próprios, talvez porque não sabemos quem somos. Não fazemos um trabalho sobre a nossa individualidade. Passamos o tempo ocupados em coisinhas inúteis e deixamos o principal trabalho, o mais valioso, o mais importante - conhecermo-nos a nós mesmos - para trás.
Passamos anos e anos reprimidos, em relações (pessoais, familiares, sentimentais, profissionais) adormecidas, se não mortas, acatando as regras e as imposições que nos foram impingindo ao longo dos tempos.
Esquecemos a nossa fragilidade. Ignoramos que a vida pode quebrar-se a cada instante. Esquecemo-nos de nos aceitar tal qual somos. As pessoas comprometem-se pouco ou da maneira errada. Acredito na liberdade individual. Nos relacionamentos em que cada ser mantém a sua individualidade e a sua liberdade mais íntima e profunda. Desconfio das relações em que os dois se tornam um. Há "deves" em excesso por este mundo. Há muitas faces. Olho em meu redor e observo. As pessoas não são o que dizem ser. E, sobretudo, não se aceita quando há pessoas que ousam ser diferentes. Imediatamente, recebem rótulos. Penso, contudo, que são essas (poucas) pessoas que estabelecem a diferença no mundo... as que têm em mãos o seu desenvolvimento pessoal. Há pessoas que passam a vida a dar lições de moral ou a tentar mudar os outros - as mesmas que nunca chegam a conhecer-se a si próprias. Vivem em linha recta. Fazem o que se lhes pede, o que "devem" fazer... e um dia, chegarão ao fim, sem terem percebido o porquê da sua passagem.
São os caminhantes, os viajantes, os homens da pradaria, os que se questionam, os que (se) procuram... que recebem o meu apoio e o meu aplauso. Mas o conhecimento de nós próprios só me parece possível em profunda solidão porque, regra geral, tudo quanto sabemos de nós é a opinião dos outros. Ninguém pode penetrar no nosso interior mais profundo. Nem os amantes entram no âmago da nossa existência. Aí, é onde estamos inevitavelmente sós. E a prova disso, são as rupturas amorosas após 2, 5, 10 ou 20 anos, quando se constata termos passado décadas com um estranho ao nosso lado no sofá.
A vida flui, como um rio, vai sempre mudando os seus estados de alma. Não importa a consistência... porque só a mentira é consistente, A verdade, essa, está sempre a mudar. Deus, ou lá o que/quem seja. devia lançar novamente os dados e começar de novo. É nos recomeços que reside a verdadeira energia criativa da humanidade.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 15 de julho de 2011

FAKE LOOK - Blogonovela em três actos (I)


Fake Look

I

O tédio instalara-se na sua vida como uma doença, cada dia que passava naquela casa cumprindo o ramerrão diário o tornava mais melancólico. O dia dos dezanove anos de casamento havia passado sem grandes festejos, apenas um breve jantar em memória do amor arrefecido. Falaram nos vinte cinco anos, nas bodas de prata, planearam festejar e de como a festa iria ser bonita, com padre e tudo. Gabriel e Maria viviam a mesma rotina há quase duas décadas: ela sentia-se feliz vivendo no torpor de um dia depois do outro e armava sorrisos ocasionais; ele, sem tanto amor nem sorrir, nos últimos cinco anos definhara e passara a andar acabrunhado. Ela fora o seu único amor, o seu único caso e mulher desde que se casara, nunca existiram rivais para ela ou triângulos coloridos - nem sequer platónicos - nesta relação tão exclusivista. Tudo corria sem sobressaltos direito a um final a dois numa casa cheia de memórias sem futuro, até que um dia, no escritório, ao cumprir o ritual de todos os dias, o inusitado aconteceu. Ligou o computador, foi tomar um café morno na máquina do fundo do corredor e regressou depois de uma conversa de circunstância sobre o tsunami e o terramoto no Japão. Quando voltou ao seu gabinete e encarou o computador notou que recebera uma mensagem cujo assunto revelava: “Olá colega”
Talvez uma das habituais mensagens publicitárias, talvez uma ordem de serviço, talvez qualquer coisa tão aborrecida como a sua vida. O remetente era uma tal Madalena. Mas que Madalena? Não existia naquele escritório nenhuma Madalena. Normalmente a missiva teria passado despercebida e provavelmente acabaria no lixo, no esquecimento da sua estória sem estória. Mas a resposta às suas dúvidas estava a um clique, um clique apenas para satisfazer a sua curiosidade. E então leu:

Olá colega

Como estás tu? Que é feito de ti? Será que ainda te lembras de mim!? Nunca me esqueci de ti nem daquela noite tão divertida quanto louca no dia da entrega dos diplomas... ainda te recordas? que saudades dos tempos em que sonhávamos com um futuro que não era este que agora vivo.

Madalena M.

Não foi preciso muito para se lembrar de Madalena, a boa da Lena, a colega com quem estudara ao largo de cinco anos na mesma Universidade. A colega “marrona”, aquela que era muito aplicada e lhe arranjava os apontamentos das aulas a que raramente se dispunha a ir. A sua memória fervilhava cheia de felizes instantâneos. Passou à seguinte mensagem com a cabeça em febre, lembrando-se de Madalena, dos tempos de estudante, dos colegas e dos professores, das festas académicas e da vida boémia desse bom passado, daquela noite...


Joshua M.

quinta-feira, 14 de julho de 2011


Os anjos não têm asas

Os anjos, os verdadeiros anjos, não têm asas: é a fé que os sustem no ar.

José Eduardo Agualusa


Quando era miúda achava que ter fé e acreditar em deus eram sinónimos. Um dia ofereceram-me um livro infantil com ilustrações bíblicas. Fiquei de imediato fascinada pela imagem do éden pós-apocalíptico. Guardo até hoje na memória os rostos sorridentes de adultos e crianças, brincando com animais selvagens tão dóceis como cachorrinhos, num campo muito verde e florido. Já então aquela imagem me parecia inconcebível. Era tudo demasiado perfeito, excessivamente bonitinho e aparentemente muito aborrecido. À medida que crescia, de vez em quando, aquele desenho assaltava-me os pensamentos. Acabei por concluir que jamais me obrigariam a ir para um sítio tão entediante. Faltava-lhe emoção e, sobretudo, faltava-lhe sentido. Blasfémia. Toda a gente queria ir para o céu quando morresse e eu a achar que uma misturazinha entre céu e inferno era, certamente, mais aprazível. Percebi mais tarde que essa amálgama é o nosso dia-a-dia. Nunca me pareceu verosímil a estória da criação, segundo a igreja católica. E a ser, compreendo perfeitamente a Eva. Basta proibirem-nos algo para termos logo vontade de desobedecer, sobretudo se não entendermos o porquê dessa interdição.
E a fé? Não tenho asas e por vezes sei que voo. Não vivo no paraíso e tantas vezes já o alcancei – paraísos diferentes, paraísos particulares, a minha ideia de paraíso. Do mesmo modo, já fiz algumas passagens pelo inferno e de lá saí mais forte. E por isso tenho fé sim, muita fé em mim e naqueles que amo. E agradeço à Eva por nos ter salvo daquele éden.


Missanga

quarta-feira, 13 de julho de 2011


Como um romance

Uma das particularidades que mais fascina no trabalho de  Mario Bellatin é a maneira corajosa e até arrojada, como os seus livros misturam géneros, desobedecendo a formatações e transgredindo toda e qualquer regra de prateleira, classificação de livros e literatura. São livros que se desviam. Sendo que a procura de outros caminhos, passa muitas vezes por explorar os  limites da própria literatura. Isto dá trabalho, claro. Tinha a vida facilitada se, ao invés, se sentasse em frente ao portátil a escrever um romance. Mas já há tantos romances...
Numa altura em que o romance, enquanto género, canibaliza descaradamente outros géneros literários, fazem falta mais Bellatins. Muitos mais. 

Desconfio que, mais do que um sinal de vida, ver as livrarias inundadas de gordos romances é um sintoma inequívoco de um modelo em 'gloriosa' decadência.
Não é exagero dizer que este é o género que mais tem feito pela leitura - pela massificação dos livros, da literatura, da leitura  em geral.  O romance expandiu a 'leitura' e esta tem alimentado a voracidade do romance. Mas isto acabou por desvirtuar o seu modelo clássico e original.
Não deixa de ser irónico que aquele seu papel, tão relevante, tenha acabado por se transformar no seu maior carrasco: o romance engordou demasiado à custa da exigência da 'leitura', perdeu frescura e agilidade.  A sua postura alarve e 'imperial' tem provocado o esvaziamento de outros géneros e isso martiriza o seu modelo, ainda mais. A expressão (que tão levianamente usamos) " lê-se como um romance" resume bem o caminho de facilidade e facilitismo que glorificou e acabou por desgastar o romance.

Tenho ouvido alguns escritores dizerem que a revolução dos livros está para breve. (E eu já estou impaciente). Bellatin acrescenta que essa revolução está a ser encorajada e inflamada por via dos formatos digitais e do consequente fim do poderio do 'papel'. Como se, com o desaparecimento do objecto-livro fossem também as regras,  os limites, as classificações do seu universo.
Já era sem tempo!


Iolanda Bárria

terça-feira, 12 de julho de 2011

Palavras Versadas


bênção da pasta

o senhor ministro tem a bênção da pasta.
repito, o ministro tem a bênção da pasta
não lhe importa quanto gasta
não quer sequer que lhe digam quanto gasta
está-se a cagar para o que se cá gasta.
a regalia a mordomia principal não lhe basta
a principesca impunidade imoral não lhe basta
o autismo a esquizofrenia social não lhe basta
pois se a opulência ministerial não deve ser casta
gasta o que gasta
e pronto
e basta

o instituto da treta que asila o tio-avô influente e sisudo não basta
a filha subsidiadamente tonta e prolífera não basta
o filho pródigo galardoado com um salário chorudo não basta
a irmã de caridadezinha carnuda o cunhado cornudo não basta
o primo feito director administrador yes-man sim-senhor não basta
a assessoria que sustenta o amigo chico-expert não basta
a amiga artista iconoclasta da inefável praça tiesca insuflável não basta
o zelador de segredos compadre burgesso barrigudo não basta
o desfile de despesas ajudas de custo ao entrudo não basta
o prémio rechonchudo do habilidoso do guloso do jeitoso não basta
o criado mudo de língua cuidadosamente arquivada em formol não basta
o tecto que retribui o afecto da amante com periquito e cão não basta
a obrigação de retenção na fonte feita cumprir pelo mastodonte não basta
a teta de uma incomensurável vaca a greta aberta à faca não basta
a reforma daqui a reforma dali a outra reforma de acoli não basta
a casinha a casa o casarão do passarão o palácio do felácio a quinta
a sexta a sétima a seguinte não basta
o mercedes e as sedes
o bê eme e o delirium treme
o lexus e os sexus de insuspeitos conexos
o motorista de sua excelência orçamental que se despista
e derrapa nos multimilhões alcatroados da autopista
do carro o escarro que brutalmente nos atira à cara não basta
a bastonada cirúrgica e justificada pela soberana pancada
do taco número cinco para o par o birdie o eagle não basta
o country club elitista exclusivo para gente oca e rasca não basta
a conta na suíça que nenhum barbeiro consegue aparar não basta
a negociata o submarino a fragata o cruzeiro a regata não basta
o off-shore o off-limit o of course não basta
o fuck you very much não basta
o polvo é quem mais ordena não basta
o contribuinte transformado em pedinte não basta

o ministro tem a pasta do Que Se Fodam Todos
ei-lo excelência reverendíssimo senhor ministro dos engodos
usando e abusando da sua governação de inspiração pederasta
financiado pelo programa feder a torto e a direito
e por uns quantos amigos do partido do peito
que ao fim e ao cabo
para elogiar e limpar a ministerial trampa do rabo
dão sempre jeito

nada do tudo que tem e do tanto que rouba alguma vez lhe basta
e toda a decisão dialéctica de poupança se arrasta
e qualquer hipotética solução de mudança se arrasta
enquanto o país deriva e se afasta
enquanto o povo se criva e se priva e se enfrasca
enquanto ainda lhe dão crédito na tasca
(já que nos bancos só emprestam uma ferrugenta piasca)
enquanto a vida se atasca
enquanto o futuro se enrasca
porque o ministro detém, detém firme e hirta realmente a pasta
detém porque a sua experiência é relevante, impactante e vasta
detém apesar do esforço abnegado e sobrehumano que tanto o agasta
e afinal mudar é coisa que sempre acarreta uma consequência nefasta
e para nefasta
a realidade actual já basta

o penhor sinistro tem a bênção da pasta
a bênção é a roca que traz desde o berço maçónico em que nasceu
ou então foi depois alguém que lha opus deu
ou a grande puta que o pariu
ou outra qualquer que ele fodeu
mas qualquer das hipóteses perdura, não se desgasta.
depois, para compensar o que gasta
para recuperar o que nunca jamais em tempo algum lhe basta
o ministro é o primeiro
e segundo e terceiro
e quarto até se de seis estrelas houver
(pois que se recusa a deitar numa cama qualquer)
a executar ao povo a sua perdulária canastra
a aplicar cegamente a lei seca com que a justiça vergasta
a leiloar tudo o que se assemelhe a humanidade em hasta

hasta quando?
hasta siempre comandante,
hasta


Bill enGates

domingo, 10 de julho de 2011

Provocatio


Amor e preconceito

As pessoas procuram-se e encontram-se em desencontros ininterruptos, sem tempo para criarem histórias juntos. Nada mais parece interessar além do sexo, esquecendo-se que não é isso que resta quando nos encontrarmos sós, no fim de tudo... Aí, serão os afectos a única forma de ligação à terra. Mas o que se esconde por detrás destes encontros? Quantas horas de solidão são necessárias para colocar um anúncio na Internet?

Nunca se ama como nos filmes, nus e para sempre, pois não?


Carmo Miranda Machado

sábado, 9 de julho de 2011

Crónica Benzodiazepina


Onde reside a força do espírito

Onde reside a força do espírito? Na capacidade de controlarmos os nossos sentimentos, não nos subjugarmos a eles? Ou na capacidade de os identificarmos, assumirmos e vivê-los? Garanto que a pergunta é legítima e não acredito que a resposta seja simples. Repare-se no exemplo de Elisabeth I, uma mulher que apesar de fogosa, se casa com o Estado, tornando-se o mais forte dos reis ao transformar-se em “Rainha Virgem”. Vergou o Papa e a Igreja Católica, França e Espanha e as suas próprias paixões, conduziu um reino a uma era de oiro sem precedentes. A moeda de troco? O seu próprio corpo que se transformou no túmulo das suas mais belas e genuínas emoções. Selou-se atrás de uma máscara onde guardou todas as suas tristezas, sonhos e vontades humanas. Ao invés, o seu pai, Henrique VIII, usou o seu poder em nome das suas vontades mais negras ao mandar assassinar as suas esposas, entre elas a mãe de Elisabeth, para poder voltar a casar, defendendo, ao mesmo tempo, a hegemonia da então hipocritamente puritana religião católica.
Claro que a minha simpatia, bem como a empatia histórica, recai sobre Elisabeth. É incontornável a força que a animava. Mas a um nível mais “plebeu”e actual, a questão mantém-se. Onde reside a fronteira entre aquilo que exigimos de nós próprios, o que o mundo nos exige e o que realmente desejamos? Vejo vidas sacrificadas em nome de uma família, de uma carreira, de uma dinâmica consumista que nos mantém apenas entretidos. Vejo pessoas agarradas a princípios morais que nunca questionaram, apenas herdaram, lutando para esconder a sua própria verdade, a sua verdadeira vontade, ou pior, sem a conhecerem sequer… Pessoas que se prevê tenham como recompensa num futuro, sempre demasiado breve, o silêncio de um lar desabitado, uma reforma incerta, ou muito dinheiro que nunca comprará o tempo mal dispensado, alguma, senão muita, solidão, doença e morte. Para elas, onde ficou aquele mundo em que os pássaros cantam, as rãs coacham, a lenha arde e aquece, as estrelas brilham, a chuva molha e tudo está no lugar certo?
Por outro lado, vejo pessoas que sucumbem às suas emoções recolhendo-se no conforto da vitimação. Julgam-se, assim, seres mais poéticos e espiritualmente mais puros, sempre qualquer coisa mais, com o menos que julgam que a vida lhes deu…. É o terrível poder da vítima, verdadeiros vampiros de afecto e atenção.
Não descurar os que querem estar a bem com deus e o diabo, vestem o fato, ou o tailleur, vão ao Domingo à missa, apontam o dedo ao vizinho e à vizinha, e depois, comportam-se secretamente como adolescentes salivantes por qualquer coisa, seja o que for, que os recorde que estão vivos, muito vivos, mas de preferência, por muito pouco tempo.
Onde está o prumo? O termo certo?
Creio que dentro de nós. Talvez no único casamento possível, naquele que acaba com a dicotomia entre o espírito e os sentidos. Pondo fim a séculos de angústia intelectual e física. Mas, para o encontrar, o primeiro passo talvez seja começar por definir o que é força de espírito. Um instrumento que julgo indispensável para uma cruzada que começa no reino mais complexo de todos, o da interioridade.
Muitos de nós, por momentos, fomos Elisabeth e Henrique VIII, fomos também o idoso na casa vazia, ou aquele que dela parte sem lá regressar. Não é o que fomos que mais importa. O que importa é que não seja indefinidamente o mundo, o colectivo, a comandar os nossos actos, mas sim nós, no exercício pleno da nossa vontade, que saibamos viver num mundo que escolhemos ou recriamos, seja ele qual for, desde que não seja sob signo da douta ignorância ou da cobardia.
 
 
Lucinda Gray

sexta-feira, 8 de julho de 2011


Sobretudo dedos

Desde que me entreguei, sem travões, aos prazeres da vida fácil que há nos teclados, desaprendi a minha caligrafia. Nunca pensei que desaprender pudesse ser tão indolor. A minha caligrafia desvaneceu-se por falta de uso e foi um alívio, porque enquanto existiu era medonha e autoritária. Uma monstruosidade que criei, alimentei e julguei insubstituível.

A dedicação fiel aos teclados enche-me de alegrias, mas tem altos e baixos, muito derivado do temperamento dos meus dedos.

Certos teclados parecem querer escrever sozinhos, o que não me agrada de todo: ainda nem sequer teclei e a palavra já lá está, sem vigor algum. São teclas demasiado delicadas, por onde os meus dedos, nada delicados, deslizam e escorregam sem atitude nem postura. E, por arrasto, as palavras também, mas no pior sentido.
Faz falta uma dose de pressão e ânsia.

Há ainda aqueles teclados ergonómicos e bem desenhados, esteticamente muito capazes, mas onde sobram dedos por todo o lado. Uma lástima...

Já me encantei com um teclado de teclas profundas, onde teclava como se estivesse a caminhar com pressa de chegar e com neve pelos joelhos. Foram quilómetros nisto. Uma fase de escrita batalhada e suada, que os meus dedos não desgostaram, dado que não se retraem em terrenos adversos. Mas foram vencidos pelo cansaço.
Noutra altura, uma estranha combinação entre o formato de um certo teclado e a articulação dos meus dedos, produziram uma irritante cadência de gralhas em tudo o que escrevia. Irritante, mas também fascinante! Os meus dedos viciaram-se em gralhas e não foi nada, mas nada fácil sair daquilo. 

Escrever é sobretudo dedos. Entrosamento entre dedos e teclados (ou o que for). Estarei a habituar mal os meus dedos?


Iolanda Bárria

quinta-feira, 7 de julho de 2011


Até onde serias capaz de ir para ser infeliz?

O que é isso do amor próprio? Onde nasce, em que glândula é segregado, em qual dos hemisférios do cérebro é pensado?
Será que o amor próprio é pensar que gostamos de nós? E porque haveríamos de gostar de nós, se nos convencemos ser tão frágeis, tão vulneráveis, tão expostos ao caos?
Por outro lado, se o amor próprio nasce da aceitação das nossas fraquezas ou das fraquezas dos outros, então, também ele é um amor fraco. É um amor em louvor ao corpo, à sua fragilidade, à doença e à ideia de que a separação realmente existe.
Ou será que o tal amor próprio é pensar que outros corpos gostam de nós? Principalmente quando os outros são aqueles de quem nós pensamos gostar.
E talvez venha daí a vontade de encontrar o amor nos outros: porque nos sentimos tão fracos e vazios nesta identificação alienígena com um esqueleto pensante, que somos impelidos a procurar justificação para a nossa existência na aprovação dos outros, igualmente fracos no seu existir só.
É tão tortuosa a mente que tenta provar a si própria a ideia de que é um corpo, que para convencer-se da sua razão, aproxima-se de alguém que literalmente inventa a partir da sua desilusão, para que no final possa culpar-se indirectamente através do outro, dizendo da pessoa sonhada que a culpada é ela, porque morrendo a traiu no final.
Assim nos livramos da culpa inconsciente que sentimos ao tentar o insustentável - projectando-a no outro que inventamos e culpamos - reafirmando que a separação existe e, se ela não funciona, é porque “eles” não ajudaram. Tamanha é a dissociação da mente que se quer à parte e até onde é capaz de ir.


DuArte

quarta-feira, 6 de julho de 2011


Querem que escreva?

Querem que escreva? Que querem que diga se quando vou para escrever é como se meu cérebro congelasse? Escrever é uma tortura para mim, é como mutilar minha própria alma, é como esventrar meu próprio ser, é como arrancar meu coração com minhas próprias mãos. Que irei escrever? Sobre a realidade? Não, a realidade já não interessa a ninguém senão a mim. Ela é cruel, desumana, preversa com os sonhadores, assim a acham. É sempre mais agradável ouvir devaneios românticos que nos levam, inocentemente, pelos caminhos da imaginação, que nos envolvem delicadamente num manto de ilusões. Oh, como é cómodo viver enrrolado nesse manto tão elegante, tão suave, tão calmo! As pessoas acham-me fria porque opto pela realidade e não pelo sonho, acham-me insensível porque desprezo quimeras, acham-me vil porque rejeito sentir amor. Achará o mesmo um sonhador decepcionado? Um apaixonado desiludido que vagueia pelas ruas da cidade debaixo da chuva gélida de Janeiro? Admito: eu amo, oh como amo! E sonho, sonho insensatamente! Porém, quando a realidade vem e descobre meu ser, outrora coberto pelo manto dócil, tudo está cinzento, tudo é tão triste e tudo me dói. Não aguento, não aguento sonhar, amar! Os sonhos matam-me aos poucos, amar distrai, destrói-me. É melhor viver na realidade do que mergulhado em ilusões! Quando é que vão entender que a realidade não é cruel, mas sim os sonhos? Escolhem-nos porque são cómodos!? Porque não se querem magoar!? Então escolham a realidade, experimentem a lucidez e aniquilem os sonhos! A realidade é mais cómoda e, magoar ninguém se magoa, se não sonhar. Viver sem sonhar!? Entediante!? Sempre existe o desejar.


Joana Santos

terça-feira, 5 de julho de 2011

Palavras Versadas


DIAS DEBAIXO DA FORÇA DAS RAÍZES

dias debaixo da força das raízes.
sesteando
a lonjura de um infinito menor.
a gramática cresce para silêncio
e é a sensatez que encontra
o título da antítese.
um outro ser ganha o desejo
de um outro.
a sensibilidade é uma questão
de sim ou não.
os dias morrem em varandas
de não casas.
e eu sou um pouco de todos os nadas.
com o caroço de todo o capricho,
a ferramenta de todo o prazer.


Sylvia Beirute

domingo, 3 de julho de 2011

Provocatio


É tudo inventado

Querida Agustina,

Desculpa se te pareço enfadonha e picuinhas. Mas, apesar de todos estes anos a escreveres à mão..., tantos livros publicados, tantos títulos, tantas pesonagens, tantos acontecimentos, tanta escrita, tantos prémios que recebeste (apesar dos pesares) por causa disso...
Nada disto, e olha que é mesmo muito, me fez mudar de ideias. Desconfio, querida Agustina, que inventas a maior parte do que escreves!


Iolanda Bárria

sábado, 2 de julho de 2011

Crónica Benzodiazepina


A Revolução Segundo Jesus Cristo

Uma mulher, de nome Sakineh, foi condenada à morte por apedrejamento no Irão, o seu crime foi ficar grávida de outro homem depois de enviuvar. Isto passa-se no Irão como se poderia passar em Portugal – a diferença está nas pedras, na metáfora que nos transforma em cidadãos de um país civilizado. Supostamente a religião não gosta de mulheres, de mulheres que escolhem o seu destino, que fazem a sua vida ser a sua vida. Maria Madalena também deveria ser apedrejada da mesma forma, não fora um revolucionário que se interpôs entre os verdugos e a vítima e os fez lembrar-se de que a vítima poderiam ser eles. A parábola é uma lição de vida para todos os que crêem na vida, mas séculos depois os mesmos que se dizem imitadores do revolucionário já não querem revoluções. As mulheres são nefastas para a religião. As mulheres têm o único poder criador que existe e isso é perigoso, podem igualar o acreditado criador universal. A criação é um desporto de tiro ao óvulo e, ao acertar na mouche, o atirador tem direito ao prémio da descendência, da perpetuação da espécie, mas não pode controlar o óvulo. O atirador é o mesmo que apedreja quando não está contente com as regras da criação. Um dia, ferido na sua masculinidade, o atirador vai querer apedrejar deus porque fez qualquer coisa de imperfeito, segundo os cânones da crença, e vai descobrir que deus é a mulher e que se está a apedrejar a si próprio dentro do ventre dessa mulher. Estará o leitor a pensar que ninguém ousaria apedrejar deus ou qualquer mulher num país civilizado, mas lembre-se de como a civilização vai modelando as pedras, de como as transforma em calhaus de hipocrisia que empurram a apedrejada para as margens sociais. Porque o atirador é que sabe, ele é que estabelece quando tiro ao óvulo é legítimo e abençoado pelas divindades, senão a mulher prenhe deve sofrer a ira dos deuses, que eles são gente séria e não pactuam com leviandades, não toleram nos céus mulheres livres a fazer-lhes concorrência. Assim foi com a questão do aborto até à sua despenalização, assim é ainda hoje quando algumas seitas sinistras a braços com a obra de deus – que não é mais do que a obra do castigo divino – lapidam as mulheres que decidem o seu destino. Não há deus que suporte tanta maldade, Zeus com as suas tropelias é um menino ao pé dos deuses que hoje mandam. Ao menos os gregos, com a sua sapiência, criaram deuses muito mais humanos.


Joshua M.

sexta-feira, 1 de julho de 2011


Que me perdoem os Deuses...

Sim, que me perdoem os Deuses... porque a vontade de me dirigir ao meu local de trabalho está a atingir proporções calamitosas. Acordo tarde (EU, RAPARIGA MADRUGADORA COM A MANIA DE VER O NASCER DO SOL), a motivação para produzir é escassa, as faltas no ginásio acumulam-se, não percebo por que razão tenho de aturar alguns seres que se atravessam no meu caminho, as pessoas queridas adoecem, algumas morrem, algumas mulheres e homens da minha idade continuam a sonhar com o príncipe encantado e a única coisa que parece fazer sentido é a ideia de uma praia vazia à minha espera. Estarei mesmo destinada a ser uma insatisfeita crónica?


Carmo Miranda Machado