quinta-feira, 30 de junho de 2011


Pequenos nadas

O tempo é de mudança e as mudanças começam dentro de mim. Quando percebo elas já estão em marcha, porque a vontade de mudar um ou mais aspectos da minha vida já tinha sido interiorizada, mesmo que inconscientemente ou quase. Não se trata de mudar de personalidade – para isso servem os meus diversos alter egos. São pequenas coisas (são sempre pequenas coisas as mais importantes), pequenas conquistas, pequenos nadas e, contudo, tão essenciais. Eu gosto de mudanças. Devo ter uma alma nómada presa às merdices que parecem importantes neste mundo moderno.


Missanga

quarta-feira, 29 de junho de 2011


Onion Tears

Há uma razão sólida que sustenta o facto de eu apreciar cozinhar sem ninguém de volta. Adoro cortar cebola. Para quem só muito raramente chora, cortar cebola é uma experiência singular e solitária, capaz de transformar o mero acto do corte cebolesco num drama shaskespeareano. É uma espécie de último e desesperado reduto para exorcizar a vontade de transformar em lágrimas aquilo que transborda da alma. Ver a alma a transbordar dos olhos é assim para o pacificador. O mesmo não se pode dizer quando transborda das palavras. Essas, por vezes, ao invés de me sossegarem, pegam em mim e levam-me para mundos subconscientes que até tenho medo de visitar. Mas hoje não se fala de palavras. Fala-se de cebolas e do seu efeito secundário. Um efeito que me obriga a acompanhar o acto da lágrima provocada pela cebola a cair, para não dar azo a dissonâncias cognitivas, e quando dou por mim estou de mão na testa, com expressões faciais várias que variam entre o desespero e o pânico, entregue a suspiros violentos e à incerta sorte do destino. Ontem foi um dia assim, com uma leve, ligeira e quase insignificante diferença: Não cortei cebola.


Bruno Vilão

terça-feira, 28 de junho de 2011

Palavras Versadas


Apelo

Vem morte dar-me uma toalha
para limpar o rosto e a memória
Não tenho nada a ver com isto
que me serviram na bandeja
o meu prato não vem na lista
a minha cor preferida não foi inventada
por distracção
E a água que nos trazem
carece da gigantesca toalha
de tudo isto ser nada


João Belo

domingo, 26 de junho de 2011

Provocatio


Em Dó Maior

A vida lateja em doses sucessivas de furor e inquietação. A noite ora gela, ora queima. Há compassos. Sem passos. Onde uma orquestra repleta de pianoncelos, violonfones, acordeoninos e saxofões faz ecoar uma mesma nota: Dó Maior. Deve ser do sono. Amanhã acordo Lá. Com a alma fora de Si.


Bruno Vilão

sábado, 25 de junho de 2011

Crónica Benzodiazepina


É preciso mais, muito mais!

É falacioso definir-se o estado de evolução de um país tendo como critério o uso de tecnologias, per se. São necessárias décadas para que os efeitos da utilização de tecnologias se façam sentir nos modos e práticas do quotidiano, influenciando de facto o aumento da qualidade de vida. E não resolvem tudo!

Um país pode ter dez milhões de habitantes, cada qual com dois telemóveis, um em cada bolso, mas se se mostra incapaz de salvaguardar o bem estar das crianças e de pôr a funcionar as instituições democráticas, não passa de um país desprotegido e atrasado. O que é pior: disfarçado de evoluído, mas frágil e quebradiço na raiz.

Um país que despreza os seus idosos e discrimina no acesso à educação, ao emprego e na hora da remuneração laboral, não passa de um país bloqueado. Por maior que seja o número de utilizadores de internet e o esforço por implementar projectos inovadores, como eleições governamentais online e afins. Pior: é gente que vive deslumbrada com a ideia de um futuro promissor mas ... minado.

Há muitos países nestas condições. Muitos mais do que se pode julgar!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 24 de junho de 2011


Caro Ninguém

Confesso que não possuir habilidade para compor cartas. Possuo sempre uma ideia perfeita concebida pelo meu subconsciente corroído pelo cansaço, mas por mais que me esforce, por mais que tente, nada me parece bater certo, nada se assemelha àquilo que tinha em mente e os vocábulos que impinjo à folha branca que me atormenta, afiguram-se-me cada vez mais vazios, mais esgotados. Numa carta a alguém distante é suposto dizer como nos sentimos, o que fizemos e tencionamos fazer. E como é isso tenho de fazer (escrever) é isso que farei. O meu estado de espírito? Confesso que não sei, sempre achei que tal coisa existia somente em versos de poetas incompreendidos. Como me sinto? Hum… Como uma boneca partida a quem foi vedada, pela leis da Natureza, a possibilidade de retroceder para o passado, para a infância, para aquela terna afeição, e permanecer lá para sempre jovem e sempre sorridente. Mas tudo isso foi passado e o que passou nunca mais tem volta. Pensar nisto faz-me fome, fome de uma coisa que não posso obter e uma nostalgia enorme invade o meu inócuo ser. Que fiz? Declaro que não sei o que revelar, a minha memória é lacónica e o que resta dela são pequenos fragmentos de coisas puramente insignificantes. O que pretendo fazer? Apetece-me extorquir uma alma, uma alma de um idiota feliz talvez, porque um idiota feliz possui uma alma cheia, uma alma intensamente viva; e apetece-me furtar um coração, um coração três vezes maior que o meu para que, quiçá, possa sentir afecto pelo todo imperfeito que me rodeia. Não, caro Ninguém, não me aborrece cogitar isto, pelo contrário, parece-me uma boa forma de atingir algo que há muito tempo me parece inalcançável - a felicidade que arrancaram de mim enquanto me procurava no tempo estagnado.

Obrigado pelo tempo perdido,
Alguém.


Joana Santos

quinta-feira, 23 de junho de 2011


Quero aprender!

Hoje escutei um irmão em silêncio. Escutei com o meu silêncio. Não quis saber das palavras, sempre minhas, mesmo quando parecem ser ditas pelos outros. Deixei-me ficar muito quieto naquele longo abraço a sentir o que ele tinha para dizer. É bom abraçar. Escuta-se muito mais do que se ouve, e isso é o necessário para que o outro se explique.

No final, depois de um longo silêncio, perguntou-me uma opinião acerca do que me tinha dito, – sorri – foi a vez de ele escutar o meu silêncio.

Demos um beijo no fim.


duArte

quarta-feira, 22 de junho de 2011


39.6

Elevada. Foi esta a temperatura que o termómetro marcava ontem. Passei o pior dos dias e a pior das noites alternando entre terríveis arrepios de frio e sufocantes ataques de calor. Ao ponto de acreditar que era o fim. Que podia acabar tudo ali que eu já não me importava pois não conseguia sequer arrastar-me para o hospital... A cabeça não aguentava o peso da minha alma... os olhos recusavam abrir-se e o meu corpo pesava toneladas, muitas toneladas...

Assim vagueei no meio dos mares. Tive sonhos, pesadelos, alucinações... Atravessavam-se os piores dos monstros pelo meu caminho... caí várias vezes às águas.... mas consegui finalmente acordar na praia. Onde tu me esperavas.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 21 de junho de 2011

Palavras Versadas


época dos incêndios

secretamente, cada mulher anseia
pela sensação do fogo
: acende um filho enquanto espera,
depois outro, talvez
outro ainda, como fósforos
numa caixa maternal de pólvora

deito a cabeça junto ao teu hálito de rescaldo
adivinho que viajes nas estrelas e noutras combustões grandiosas
que nunca partiram pernas ou racharam a cabeça
nunca choraram nem sangraram nem pingaram ranho
nem sentiram fome ou sede
e seguramente nunca tiveram medo do escuro

a noite arde devagarinho
a vida segue o seu curso de rastilho vagaroso
o vento do coração
incendeia vagarosamente a origem do vento
projecta sombras na parede de gasolina
que se amam até à extinção


Renato Cardoso

domingo, 19 de junho de 2011

Provocatio


Escrever baixinho

Vou dizer que o que eu gostava era de saber escrever baixinho. Muito baixinho, mesmo rasteiro! Sem levantar um grão de poeira, que seja. Aquela coisa cadenciada e em clausura, sem lugar a um fugaz 'alívio imaginativo', como diz o Nuno Ramos, do 'Ó'. Só palavras atrás de palavras. Encadeadas umas nas outras. Bonitas, mas muito pouco ou nada vaidosas.


Iolanda Bárria

sábado, 18 de junho de 2011

Crónica Benzodiazepina


WHAT HAPPENS TO LOVE AFTER MARRIAGE?

Há dias, reflectia com uma amiga recém-casada sobre esta terrível pergunta. Trocávamos ideias e ela mostrou-me algumas leituras que andava a fazer sobre a problemática em questão. Eu avancei mesmo com uma outra pergunta, mais terrível ainda: And... what happens to sex after marriage? Na verdade, fiquei a pensar sobre o assunto. Quando duas pessoas têm absolutamente toda a "liberdade" e disponibilidade para se conhecerem, amare, aprofundarem o conhecimento uma da outra e "usufruirem-se", eis que surgem estas temidas questões. O pior e talvez mais irritante é que, da muita bibliografia de auto-ajuda existente sobre "como salvar o seu casamento", é maioritariamente dirigida a um público feminino (a autora diz mesmo: "I have addressed this book to women, the relationship watchdogs in our society... if you are a male reader, please accept my apologies..."), o único que, pelos vistos, tem destas angústias e sofre estupidamente, a meu ver. Senão, vejamos: o livro de Jamie Turndorf, espantosamente intitulado "Till Death Do Us Part (Unless I kill you first - a step-by-step guide for resolving marital conflict)" revela-se como um importante documento de ajuda a essas muitas mulheres que decidem tomar a peito a árdua tarefa de salvar o casamento (como se tal fosse possível)... Na verdade, apresenta um curso completíssimo de técnicas, estratégias e conselhos a utilizar diariamente sempre que confrontada com um dos muitos problemas que insistem em persistir num casamento. Exemplos: Como entender a química da luta? O campo de batalha do casamento: conflitos; Como negociar? Como negociar um contrato? e muitas, muitas outras dicas... Confesso que cheguei ao fim do livro cansada. E não acredito que depois de ler aquilo tudo, exista alguma mulher com vontade de tentar salvar o que quer que seja. E o pior é aquela revolta miudinha que ao longo das páginas se vai agudizando... afinal, e eles? Não têm de fazer absolutamente nada?


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 17 de junho de 2011


dEUS e a fLOR

Um dia, há um mês precisamente, numa das minhas grandes voltas pelo meu pequeno mundo, encontrei no meio de um monte inóspito uma pequena flor silvestre. Notava-se que o rigor do estio a tinha abrasado: estava sedenta, meia murcha, mas do seu caule despontavam ainda alguns botões – promessas de novas flores. E para ali estava ela, flor afogada, no meio do mato que a circundava, retorcida pelas pedras e pelas ervas que a impediam de se erguer direito ao céu.
Fiquei tão fascinado com o destino da ténue flor que me pus a imaginar como seria dura a sua vida naquele lugar, de como se deveria sentir só, a pobre flor, assim no meio do nada e, num pensar repentino, decidi (e estava decidido) que a levaria comigo e a plantaria no meu quintal bem à vista da minha janela. Vaticinei mesmo que ela gostaria de morar naquele canteiro onde se doura ao sol pelo final da tarde e onde sempre sobeja uma gota de água para qualquer erva daninha, a poucos centímetros da torneira romba que goteja dia e noite.
Mas, quando me preparo para destacar a planta de caule e raiz, cedo percebo que a terra que a envolvia secara a tal ponto que qualquer tentativa para a desenraizar, trazendo também uma parte do torrão materno (tal como aprendi com os sabedores das leis da natureza), seria infrutífera se não regasse o solo de forma a humedecê-lo o bastante para tornar maleável a terrugem e assim permitir a cirúrgica operação de transplante.

Neste impasse, enchi-me de sentidos pensados, caiu sobre mim a brisa do crepúsculo, o bater do sino, o clamor urgente do sempre adiado trabalho, e regressei taciturno ao meu labor, cheio de uma consolação estranha mas redentora – pois se, por um lado, me apoquentava saber que tinha deixado a inerme e solitária flor mergulhada no limbo da natureza; por outro, estava resolvido a que, assim que pudesse, voltaria ao monte munido do material necessário e efectuaria cuidadosamente a delicada mudança da tão subestimada flor.
Por fim, começo a hesitar na ideia de a trazer para viver num jardim e acabo por me aperceber que estaria, porventura, a querer contrariar a natureza das coisas e a própria ordem do mundo, pelo que ficou terrivelmente comprometido o meu projecto de traslado. Logo eu que não creio, nem nunca quis ser deus… Como poderia eu ditar, sequer, o destino de uma flor ou de uma miníma erva que fosse? Nesta minha divinal impotência senti então uma enorme comunhão com essa flor: era eu retratado sem ser eu, sedento e tortuoso; era outro sendo outro que se parecia comigo, um Narciso e outro Séfiso; homem e lago como interlocutores, um tão real como o outro. Nenhum de nós se poderá mover do reflexo do que é, nada nos poderá separar; nenhum de nós se poderá reencontrar senão dentro de si próprio.

Despertei há pouco, a manhã vai alta, volto à realidade e assim que puder volto ao campo dos meus sonhos, para ver de perto a minha flor preferida.


Joshua M.

quinta-feira, 16 de junho de 2011


Um presente feliz

Procuramos a felicidade como se esta fosse um porto de destino e não um modo de viajar. Partimos de um pressuposto errado. Andamos, como loucos, à procura de uma utopia: um estado de felicidade que uma vez atingido se manterá imutável. E nesta busca alucinada perdemos a viagem, perdemos o encanto das coisas simples e belas que fazem o nosso dia-a-dia. Não vivemos o momento, aquele momento simples e sem nada de especial. Só mais tarde percebemos que naquele instante fomos felizes.

A felicidade não tem segredos, não é uma demanda do "santo graal". Vivem-se momentos felizes feitos, tantas vezes, de pequemos nadas, de detalhes mínimos, de palavras doces, de sentimentos que nos enchem a alma, de gestos de carinho. Importante é percebermos que estamos felizes naquela hora, naquele instante. Importante é sermos felizes no presente e não no passado.
 
 
Missanga

quarta-feira, 15 de junho de 2011


Dualidades

Desertei da minha loucura há um minuto exacto. E no entanto a minha convicção esbate-se no carácter inoportuno do seu tempo, anunciando a antítese da minha lucidez. Abandonei a minha lucidez há uma palavra. E no entanto, sempre neste entanto, as palavras contrariam e mordem os alicerces de qualquer tese de loucura. A noite apresenta-se suja. Suja demais para os meus sentidos, para o meu tacto. Apenas suja demais. A sujidade da noite invade-me e sinto-me percorrer labirintos arqueados na minha mente. Contornos, flexões, sinuosidades de rectas distantes. É noite. É noite e deserto-me de mim mesmo. Evaporo-me, esgoto-me em soluços. Soluço. É o soluçar da minha dualidade.

Há dor. Ah pois. Dor como cataratas. Pedras negras como chuva. Gotas de metal como linfomas. Utopias calcinadas pelo nevoeiro dentro de mim. Corro. Muito. Corro em altura. Corro sem noção de perspectiva, arquitectando trémulas e incertas suspeições. Cruelmente amordaçado pelo desejo. Entorno-me. Aos poucos. Aos caídos. Desfragmentado. Porque o temor dos dias pode ser verdadeiramente penetrante, arrasador. Inspiro sofreguidão por cada fragmento de mim. Povoam-me chaminés disformes. Candeeiros de rua fundidos em cada traço de personalidade. Está escuro. E eu… eu… limito-me a sorrir, a ruir.


Bruno Vilão

terça-feira, 14 de junho de 2011

Palavras Versadas


ALLEN GINSBERG INDUSTRIES

é um temperamento ser longínqua.
nunca tive um projecto. 
completudes no osso. tive contradições
que me começaram a entender
e fui descoberta por uma geração 
sem geração, quando eu só queria 
escrever poesia. é óbvio que tive 
as minhas preocupações,
mas todas se resumiam a letras.
as letras são partes de palavras 
e ninguém parece saber. 
é o mesmo que o órgão
em relação ao corpo. não é diferente.
por exemplo a palavra amor: 
o poder da letra «o» é diferente 
da letra «r». muito diferente.
a palavra poderia viver sem essa 
última letra, mas não sem o «o».
alguns poetas parecem escrever 
e fazer amor sem «o».


Sylvia Beirute

domingo, 12 de junho de 2011

Provocatio


Cromoterapia

Gostava mesmo era do fundo negro, mas sem mais nem menos começou a asfixiar-me,
até que alguém disse: - que escuridão! e eu acendi a luz
(mas tenho muitas saudades...)
Sem meias medidas, mudei para o branco e foi uma boa sensação, no princípio
mas o branco desatou a engolir-me, assim que me via. Demente!

Vamos ver como te portas, azul,
tenho as maiores esperanças!


Iolanda Bárria

sábado, 11 de junho de 2011

Crónica Benzodiazepina


a diferença entre um homem BlackBerry e um homem iPhone

Deitado na cama, ao final da primeira manhã, carrega nas teclas do BlackBerry com mal disfarçada indiferença para consultar os últimos e-mails recebidos. E debita informação que não me interessa particularmente... até que: "Jamais serei um homem de iPhone". E eu que interessada nele estou fico a pensar naquilo, mas não lhe digo. Viro-me para o outro lado e prometo-me escrever sobre o assunto, como todos os dias me prometo alguma coisa que nem sempre cumpro.
Impossível não cumprir, para onde quer que me vire há sempre um telemóvel com um homem atrás. E variam. E eu volto a pensar naquilo. E meto no Facebook um homem a sair do chuveiro de telemóvel na mão com a legenda: "Existe uma clara diferença entre um homem que tem um iPhone e um homem que tem um BlackBerry. Um dia explico".
A 'guerra' entre iPhone e BlackBerry é (por mim) tão ficcionada e real como a que existiu entre os Rolling Stones e os Beatles, os Blur e os Oasis, a Simone e a Iglésias. É uma luta de conceitos, de estados de ser, de egos arquetipados. Por isso nem chegam a interessar outras marcas, outros modelos, como nunca interessou nas guerras musicais fabricadas pelos média se o público ouvia sequer esses protagonistas ou gostava mais de outros. Por isso, aos homens que não usam nem BlackBerry nem iPhone eu consigo aplicar a mesma diferença. O iPhone e o BlackBerry são máquinas que conseguiram criar, mesmo não as adquirindo, um branding identitário.
Os que utilizam ambas são maximizers, não necessariamente mais completos, mas seguramente (ainda) mais complexos.
Um homem que use iPhone, normalmente, não usa um BlackBerry, e vice-versa. Não fiz nenhum estudo psico-sociológico ou inquérito. Apenas me limito a observar, a ouvir e, imagine-se, a calar (a fase da congeminação).
Não tem a ver a diferença com o pragmatismo versus estética. Black's e iP's podem ambos apreciar a estética e a funcionalidade, e a máquina ao serviço das suas tarefas quotidianas, como extensão mecânica e tecnológica do ser.
Também não tem a ver, a diferença, com a grossura dos dedos, mas sim com a agilidade. Um homem que tecla não tem paciência para tactear. Um homem que tacteia não tem, quase sempre, a força para agir e carregar com a precisão necessária na tecla certa, nos actos que cumprem as suas ambições.
Isso faz do homem BlackBerry um ser mais ambicioso? Sim. A ambição de quem quer conquistar o mundo. Alguns até querem salvá-lo. O homem iPhone quer vivê-lo, e é menos focado. Qual o melhor? Os dois, cada um com o melhor dos seus mundos, sendo que um e outro podem ter o mesmo sucesso.
Os Berry's andam mais às apalpadelas no mundo. Tendem a ser mais indefinidos emocionalmente. Os Phone's investem mais no lado emocional, compensando o que lhes falta, por vezes, no lado profissional.
Os iP's dão mais atenção às mulheres. Arranjam mil e uma aplicações para cativá-las, para as apanhar a jeito. Se uma não funciona, procuram outra (aplicação). Os Black's dão mais trabalho às mulheres. São elas que têm de aplicar-se. Se uma não funciona, procuram outra (mulher).
Qual deles tem mais capacidade de amar? Ambos. Não vale a pena, por isso, escolhê-los ou exclui-los em função do telemóvel. É uma questão de tacto e de carregar na tecla certa. As mulheres conseguem ser tudo, na guerra e no amor. São I-Berry-Phone. Têm todas as teclas e um ecrã inteiro de aplicações difíceis de gerir. A sério.


Ana Santiago

sexta-feira, 10 de junho de 2011


Flop

" - Diz-me, Duarte? Quando é que perdeste a inocência?"
Assustado pela minha postura serena, a mão quieta ou o mais puro bluff, Z., o homem de olhos claros, aparentemente sem pêlos, atira a pergunta a ver se eu assumo a fraqueza.
" - A minha inocência? Ou a minha inocência em relação ao amor? Porque eu já perdi as duas.
- A tua, claro."
A inocência perde-se com a ideia da morte. No confronto com a última das ironias, a vida resume-se ao correr contínuo contra o tempo. Tentar esquecer o destino fatídico que nos matará no fim.
" - A minha inocência foi-se há muito tempo. Perdi-a no momento em que disparei uma arma, era ainda um miúdo. Fui caçar com a espingarda de chumbos do meu pai. O pássaro caiu no meio do caminho a estrebuchar. Teimava em não morrer. Fiquei desesperado, a tentar de todas as formas terminar com o sofrimento da ave.
" - Torcias-lhe o pescoço!"
Disse o marinheiro na tentativa de retirar dividendos do monte de fichas à sua frente.
" - E torci! Rodei e rodei e rodei, mas não havia maneira daquilo quebrar. O bico a abrir e fechar, as patitas a tremer. Bati com ele contra uma pedra e nem assim. Foi quando num assomo de coragem assassina, decidi arrancar-lhe a cabeça do corpo. Desatei a correr para casa da minha avó, para o meu quarto, a chorar. Sujei a almofada de sangue e nunca mais voltei a pegar numa arma. A inocência do amor foi, ainda assim, mais indolor. Perdi-a quando traí a Xana pela primeira vez. Também chorei, é verdade, mas nem por isso deixei de o voltar a fazer."
Quando me calei, já os pares de cartas tinham sido atirados de costas voltadas para o azul indigo da mesa.


DuArte 

quinta-feira, 9 de junho de 2011


Heartbeat

Que espera louca e agoniante - um copo vazio de vodka é levado, acende-se um cigarro, inspira-se o fumo lentamente e lentamente se expira. A música alta penetra nos ouvidos e faz os corpos balançarem-se ao seu louco sabor. As luzes coloridas difundem-se pelo espaço. O fumo dos tantos cigarros acesos entranha-se na roupa. Ouvem-se risos alucinantes, gritos de alegria ou espanto. Um copo de "cola" com gelo chega. Apaga-se o cigarro, acende-se outro. Que espera. Nunca mais chegas? Será que sempre vens? Saboreio o cigarro que esfumaço e dominada pelo nervosismo bebo um gole da "cola". Chegas e cumprimento-te, sem acreditar que apareceste. Perguntas-me se seguiremos com o planeado, respondo afirmativamente e peço-te em troca um beijo. Secretamente, pretendo descobrir qual o sabor dos teus lábios, conhecer a intensidade e o poder do teu beijo, saber qual o nome do sentimento que vive em mim, quero certezas. Aproximas-te (des)ajeitadamente e os meus lábios envergonhados tocam nos teus desinteressados e desapaixonados. Numa fracção de segundos, o mundo desaparece, a música já não existe, todos desaparecem, só existimos nós, num mundo só nosso onde tu entras por mera obrigação. Afastas os teus lábios dos meus quando esperava/queria mais. Que belo beijo fugaz! Depois abraças-me e ao teu ouvido sussurro um "desculpa". Desculpa por não corresponder ao que é esperado/desejado por ti. " - Dominas-me o pensamento, não consigo dormir, não consigo esquecer. Não quero esquecer...!?" Caíu uma lágrima a caminho de nenhures.

Stop stealling my heart away
You're stealling my heart away

I don't know where we going
I don't know who we are
(...)

I can feel your heartbeat
Running through me


Joana Santos

quarta-feira, 8 de junho de 2011


PISO 7

Tive hoje, por razões de grande força, de ir ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mandaram-me ao Piso 7. Uma vez lá, fui reenviada ao Piso 1. Guichet. Tirar uma senha. Esperar. Senha n.º 275. Ordem de chamada: nº 204. 71 pessoas à minha frente. Reduzi-me à minha insignificância e pequenez perante aquele turbilhão de gente. Pensei nos dias e nas horas em que andamos envolvidos nos pequenos nadas das nossas vidinhas, esquecendo o que nos espera lá no fim, no fim de tudo, quando esse fim de tudo chega muitas vezes ainda no princípio. De volta ao Piso 7, falei com algumas pessoas. Jovem 24 anos: AVC. Jovem 30 anos: paralisia Facial. Jovem 43 anos: Esclerose Múltipla, Cegueira... A solidão da doença. A inutilidade do sonho. O sofrimento inexorável...

Reforcei hoje, mais uma vez, a ideia de que a vida é aqui. E, de todas as imagens que captei, fica retida a de uma senhora alta, morena, bem-vestida, aparentemente normal, não fosse o caso de insistir em percorrer o corredor por entre as gentes com palavras de ordem gritadas e pulso em riste, como que a reinvindicar o seu direito à loucura. Apeteceu-me segui-la. Também eu pretendo reinvindicar o meu lugarzinho vitalício naquela praia deserta onde o sol se põe com os tons do arco-íris e tu chegas no teu cavalo, Golias, para pernoitar e seguires viagem na manhã seguinte.


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 7 de junho de 2011

Palavras Versadas



energia alternativa

desculpa, meu amor, não te ouvi.
estava encostado à corrente dos teus olhos
a afagar a suavidade de querer mais nada
desviando do teu olhar o curso do tempo
ocultando a distância que subsiste na electrólise da paixão
a desenhar um abraço nu como uma barragem
adivinhando peixes no colo de água doce
— a energia alternativa que há neles a voar
abrindo silenciosamente as comportas à centelha
ao remoinho dos pólos sonhando-se lábios
que se atraem.
desculpa, amor, é-me impossível escutar agora
que transbordo nas extensões de uma fonte de calor
de imperscrutável nascente


Bill enGates

domingo, 5 de junho de 2011

Provocatio



Pesadelo

No pesadelo estava o monte da inscrição branca
e alguns gestos contemplativos fixos
no jardim do meu peito
Milhões de peixes incómodos mergulhavam
no lago do jardim
Lancei uma moeda ao ar
para decidir se acordava ou não


João Belo

sábado, 4 de junho de 2011

Crónica Benzodiazepina


Eu, a Vi e os Intelectuais

Eu e a Vi falamos muito sobre temas do dia a dia. Apreciamos, sobretudo, os mais corriqueiros, banais, (aparentemente) desinteressantes, até. Fartas de dar uma de cultas andamos nós, grande parte do tempo (e depois a engolir analgésicos para as dores de cabeça que isso provoca). O mais básico possível é que está bem e quando a conversa começa a subir muito de nível, arrepiamos caminho e regressamos, consentidamente, ao caixote do lixo. Nisso, estamos sempre de acordo!

Há dias, andávamos a tentar chegar a uma conclusão sobre quem tinha tido o namorado mais feio e desengraçado, de sempre. Depois de muita roupa suja esfregada, a Vi lá concluiu: foste tu, miúda, ou já te esqueceste daquele intelectual sempre de preto, que parecia um filósofo, falava de política e punha o pessoal da turma a olhar para ele, como boi para um palácio?
Um tipo enfiado, de aspecto pavoroso, enfim, também andaste com cada um...
Nem respondi. Estava entretida a sugar a polpa viscosa do diospiro enquanto, ao som da palavra 'intelectual', a figura do P. se ia compondo na minha memória. Era o P., claro. Era ele!
Pois fica sabendo, Vi, que o P. era um feio-bonito. Singular. Além disso, levou-me à cinemateca tardes a fio, e fizemos belas sessões de leitura na sua imensa e eclética biblioteca. Apresentou-me Daggerman, Bradbury, Elliot, Blake e até "A Montanha Mágica " devorámos, em conjunto.
Em troca, ensinei- o a beijar. Sabes lá tu o que isso é!

Lembrar-me do P. levou-me por outras paragens. Fez-me pensar na extinção dos intelectuais. Aquele intelectual presente em todas as turmas (liceu, faculdade...). Aos 15 anos já tinha lido tudo e mais alguma coisa. Com um conhecimento dilatado sobre diferentes matérias, mas com um discurso agregador, rico e completo ( até para a idade). Sempre solitário, complicado, de poucas palavras... roupa escura, bom aluno. Uma figura bem identificada, que se tem vindo a extinguir, parece-me.
Muito provavelmente está a dar lugar a um outro género qualquer.
 
 
Iolanda Bárria

sexta-feira, 3 de junho de 2011


Um beijo que poderia ter sido aquele

Creio que nunca nos beijámos!? ou, será que nos beijámos!? Ou, terá sido aquele um momento mudo em que o mundo parou para assistir ao filme que passava nos nossos corações abertos e fechados em nós, sempre alheios e outro mundo. A nossa vida, sem guião, estava lá toda, lá onde se projectava a nossa vida, a vida de dois amantes impossíveis amando-se numa tela de cinema onde habitavam como sombras de afectos. Ao fechar os olhos, no âmago desse beijo (sim, a mim ainda me parece que foi um beijo, um simples beijo, mas um beijo), vi o mundo transbordar de tudo o que dávamos sem dar, de tudo o que sabíamos sem saber, do nada que somos ao tudo o que queríamos ser. E sonhámos, sonhámos tanto, ficámos até tão tarde pelo sonho que um dia podíamos viver, que continuo a jurar que os nossos lábios sedentos se tocaram, que as nossas mãos prementes se enlaçaram, que os teus dedos adocicados percorreram os meus cabelos, desfiando breves afectos.

A nossa viagem foi tão curta, quando corremos à velocidade do que queríamos que nunca acabasse, que nos pareceu viver a vertigem de uma queda bruta sobre a realidade da chegada.

Ah quem me dera nunca chegar e estar sempre entre ti e a partida para uma outra viagem; quem me dera que a viagem fosse em ti a partida e a chegada, uma viagem apenas viagem. Uma ida e volta guiada por um fio de Ariadne que seguíssemos continuamente até ao fim do labirinto que somos, em que a saída fosse apenas o reencontro depois do nosso encontro. E no final do nosso beijo, apenas um rumor, um leve sopro ao teu ouvido para te dizer tudo aquilo de que duvidamos e temos certeza de que nunca foi como gostaríamos que fosse. Sabes, creio que um dia nos beijámos. Creio que ainda sinto nos meus lábios, lá ao longe, a brisa de um beijo dado naquela varanda para a noite, para essa noite em que nos beijámos. E assim, sem palavras, nos despedimos com um beijo que poderia ter sido...


Joshua M.

quinta-feira, 2 de junho de 2011


SONHOS

Sempre fui uma sonhadora. Irremediável. Daquelas que não chega a acordar. Já a minha mãe me repreendia por andar sempre no mundo da lua, a inventar fantasias e a imaginar sítios distantes onde um dia haveria de chegar. Mais tarde, inventava projectos que nunca concretizei. Não que me julgue incapaz, mas os projectos implicam uma dedicação permanente e eu tenho dias, tenho fases... E já tenho sido acusada por uns e outros de hoje querer uma coisa e amanhã outra. De começar muita coisa e nunca terminar. Que hei-de fazer? Se o que hoje me parece aliciante, amanhã já não sei...?!

Mas por mais sonhos que criemos e até concretizemos, receio que se não estivermos atentos, a magia da vida tende a escapar-nos como areia da praia por entre os nossos dedos. Talvez por isso tente manter esta minha capacidade de sonhar, consciente de que não é a concretização do sonho que interessa mas sim a sua simples existência.


Carmo Miranda Machado

quarta-feira, 1 de junho de 2011


Neblina sensorial

O nevoeiro invade-me o corpo com se isso me bastasse. Como se esta opacidade aclarasse os meus sentidos. Repassa-me os sonhos e eleva-me, diluindo-me nas arcadas do doce tormento. A sua fragrância intemporal aninha-se nas minhas têmporas e sussurra-me olhos dentro. Há gritos, lá dentro… lá fora. Esbatem-se suavemente na redoma de névoa em que me fundi. Há um brilho incerto nesta neblina que difunde os meus pensamentos. E eu… eu permaneço imóvel diante do deambular da minha memória. Há tramas que se adensam e que se deixam inventar. Que flutuam pesadamente sobre mim. Sonham-me em lareiras distantes. Na sombra da obscuridade.


Bruno Vilão