sexta-feira, 17 de junho de 2011


dEUS e a fLOR

Um dia, há um mês precisamente, numa das minhas grandes voltas pelo meu pequeno mundo, encontrei no meio de um monte inóspito uma pequena flor silvestre. Notava-se que o rigor do estio a tinha abrasado: estava sedenta, meia murcha, mas do seu caule despontavam ainda alguns botões – promessas de novas flores. E para ali estava ela, flor afogada, no meio do mato que a circundava, retorcida pelas pedras e pelas ervas que a impediam de se erguer direito ao céu.
Fiquei tão fascinado com o destino da ténue flor que me pus a imaginar como seria dura a sua vida naquele lugar, de como se deveria sentir só, a pobre flor, assim no meio do nada e, num pensar repentino, decidi (e estava decidido) que a levaria comigo e a plantaria no meu quintal bem à vista da minha janela. Vaticinei mesmo que ela gostaria de morar naquele canteiro onde se doura ao sol pelo final da tarde e onde sempre sobeja uma gota de água para qualquer erva daninha, a poucos centímetros da torneira romba que goteja dia e noite.
Mas, quando me preparo para destacar a planta de caule e raiz, cedo percebo que a terra que a envolvia secara a tal ponto que qualquer tentativa para a desenraizar, trazendo também uma parte do torrão materno (tal como aprendi com os sabedores das leis da natureza), seria infrutífera se não regasse o solo de forma a humedecê-lo o bastante para tornar maleável a terrugem e assim permitir a cirúrgica operação de transplante.

Neste impasse, enchi-me de sentidos pensados, caiu sobre mim a brisa do crepúsculo, o bater do sino, o clamor urgente do sempre adiado trabalho, e regressei taciturno ao meu labor, cheio de uma consolação estranha mas redentora – pois se, por um lado, me apoquentava saber que tinha deixado a inerme e solitária flor mergulhada no limbo da natureza; por outro, estava resolvido a que, assim que pudesse, voltaria ao monte munido do material necessário e efectuaria cuidadosamente a delicada mudança da tão subestimada flor.
Por fim, começo a hesitar na ideia de a trazer para viver num jardim e acabo por me aperceber que estaria, porventura, a querer contrariar a natureza das coisas e a própria ordem do mundo, pelo que ficou terrivelmente comprometido o meu projecto de traslado. Logo eu que não creio, nem nunca quis ser deus… Como poderia eu ditar, sequer, o destino de uma flor ou de uma miníma erva que fosse? Nesta minha divinal impotência senti então uma enorme comunhão com essa flor: era eu retratado sem ser eu, sedento e tortuoso; era outro sendo outro que se parecia comigo, um Narciso e outro Séfiso; homem e lago como interlocutores, um tão real como o outro. Nenhum de nós se poderá mover do reflexo do que é, nada nos poderá separar; nenhum de nós se poderá reencontrar senão dentro de si próprio.

Despertei há pouco, a manhã vai alta, volto à realidade e assim que puder volto ao campo dos meus sonhos, para ver de perto a minha flor preferida.


Joshua M.

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