sexta-feira, 18 de março de 2011

Crónica Benzodiazepina


"E o povo, pá?"

O povo é hoje uma classe sem futuro histórico, o povo envergonha-se de ser povo, o povo é aquela coisa aburguesada que só pensa em consumo, em consumir até se esgotar, em se empenhar até mais não poder... e arrear.
O burguês tenta não parecer burguês. Instruiu-se e nobilitou-se, pela toga ou pela bata, ou pela pasta e pela gravata. Desenterra os pergaminhos de um parente ilustre do Liberalismo e põe todos os nomes aos meninos, que trata por “você”. Vive num condomínio privado e conduz um carro potente. É profissional liberal, quadro superior de uma empresa pública ou privada, político, ou apenas endinheirado. No cúmulo defende a monarquia e o regresso à Velha Sociedade dos privilégios, reinventa uma linhagem e usa-a como um pedigree, tal qual um cão de raça, ainda que mantenha em privado o seu jeito de rafeiro. A burguesia saíu do povo, mas o povo – que estava entranhado – não saiu dela.
A aristocracia – minoria calcinada pelos últimos anos da Regeneração - esfumou-se pela boca suja da chaminé da maçonaria. Engolida pela vaga sem fundo que foi a I República, regurgitou-se e recebeu pequenos cargos e mordomias, em troca de silêncios cúmplices, no Estado Novo. Escondeu-se no 25 de Abril e voltou a instalar-se anos depois aliada à burguesia, é agora uma classe engajada politicamente que, sem pruridos nem esconderijos, enverga o ditoso nome como uma bandeira.
"E o povo, pá?" O povo perdeu a consciência de classe e reinventou-se burguês, como na cantiga que lhe faz blague – começa por querer um telefone da última geração, com o último grito gravado em directo, ou um plasma com faculdades tridimensionais, ou um frigorífico de três ou quatro portas. A seguir, aspira a ter ainda mais, a ser rico. Em suma, o povo quer ser burguês e a burguesia, que é oriunda do povo, também não quer voltar a ser povo, sacudiu essa bestialidade e agora adorna-se com ares de aristocracia. O povo é uma Fénix com asas em segunda-mão, uma coisa fluída e viscosa, que está sempre a morrer povo e a renascer burguês.


Joshua M.

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