quinta-feira, 31 de março de 2011


Eu levo-te a casa

Se inesperadamente fores assaltada pelo desespero, aproveita-te do momento porque ele pode ser redentor.
Se te sentires perdida, tão perdida, irremediavelmente perdida, faz aquilo que ninguém espera e perde-te ainda mais na vertigem da queda.
Se o medo já se confunde com a impotência, abraça-te à impotência e deixa-te afundar como se a tua relação com o mundo se resumisse a um parafuso. Enterra-o bem fundo, grita, bate com a cabeça, rasga a roupa, esgadanha-te toda, esbofeteia o ódio para lá do enjoo. Permite tudo menos esse banho-maria, o torpor que não fode nem sai de cima, a melancolia. Eles não passam de propaganda para um ego que na possibilidade de ser feliz, remete a sua pouca vontade para o exterior, culpando-o.
Se o medo te tenta com o abismo, olha-o nos olhos, esse bluff de todo o tamanho, e diz-lhe que to mostre.
Ele não tem nada.
Ele nunca tem nada, a não ser o que tu pensas.


DuArte

quarta-feira, 30 de março de 2011


Labirinto existencial

Passava muito tempo em esplanadas e mesas de café. Perdia-se a olhar para o vazio e escrevia. Sofregamente, por vezes. Vagarosamente, por outras. Um dia alguém o avistou. De caneta em riste. A esgrimir-se numa batalha épica literária, soltando vogais e consoantes com tal densidade, que não conseguiram interpelá-lo. Seguiram caminho, perdendo-se na multidão de sobretudos. Com a curiosidade metida nos bolsos dos casacos. A pergunta viria no dia seguinte, em jeito de provocação, na tentativa de encontrar uma resposta para aquecer a curiosidade: “Estavas a escrever uma carta de amor para alguém?”
Mas ele estava cansado de jogos fátuos. Essas coisas ele só escrevia precisamente para ninguém, para quem ainda estava para vir, destinadas a quem apenas existia no seu flutuante imaginário e que possivelmente jamais se fixaria no plano das coisas terrenas. E essas coisas estavam todas arquivadas em segurança, aguardando a chama do dia. Do dia em que esse ninguém conseguisse encontrar-se, e não perder-se, no seu labirinto existencial.


Bruno Vilão

terça-feira, 29 de março de 2011

Palavras Versadas


como se o poema fosse órfão

o pai disse nunca mais te quero ver.
antes, talvez seja importante referir que o pai tinha uma faca,
uma dor metálica à vista.
o pai disse filho, nunca mais te quero ver.
o pai brandiu os olhos fechados com a faca aberta.
o pai cerrou os olhos com palavras brancas como armas quando
disse filho, não quero ver-te mais.
depois o pai vergou-se sobre a cegueira acabada de inventar.
o pai ajoelhou-se sobre as pontes antigas do coração ausente,
inaugurou os ossos da solidão.
o pai cortou os rios dos olhos. chorou. repetiu nunca mais te
quero ver, filho.
o pai chorou convulsivamente por conseguir ver longe de mais
a proximidade do sacrifício.
o pai cortou o filho ao meio com o gume da voz, em várias metades
iguais, equitativamente distantes.
equitativamente tristes. e sós. nunca mais. dois
pesadelos dilacerantes.
o pai sobrou inteiro a contar do filho em diante cortado. ou
partido. que não iria ver mais.
o filho partido julgou cicatrizar em possibilidades infinitas.
reaprendeu o coração em terras distantes.
mas nunca mais teve olhos. nunca mais
foi pai


Bill enGates

segunda-feira, 28 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (VII)


DESENCONTROS

Disseste, vou à praça!
e regressaste sorrindo, trazendo
na pele o cheiro de especiarias
que não reconheci

Disse-te, venho da praça!
e não tinha de ir tão longe,
para encontrar galos capões e
garnisés de crista


Palas Athena

domingo, 27 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (VI)


Varanda de Primavera

No peitoril do teu ser
Sinto o sabor de uma ameixa colhida
Em dias de Verão esquecidos
Abro a janela
E sinto-te no meu jardim
Numa festiva quimera de sentidos


Berenice Greco

sábado, 26 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (V)


Delikatessen

Cerdos degradados
a la consciencia humana
Platos de pavor, mientras
entremeses de sobresalto
se sirven en exquisitos
menús de-gustativos
por cinco maniáticos
Pantagruélicos

Al medio de la cena
estas ya lleno, muerto
de placer y mierda,
cerca de ser único
en tu cuerpo
todavía inexistente

Eres ahora una alma gustativa
una enorme y sensoria lengua
un ogro en una gesta digestiva


Joshua M.

sexta-feira, 25 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (IV)


horóscopo na 2ª pessoa singular para o velho filho-da-puta plural (22 de fevereiro / 21 de fevereiro)

[amor]

um dia destes não pode falhar:
acabarás velho de tanto porno grafar
argumentando para amores a cores e flores de plástico
regando os cactos a injecções de novela domingueira
reinventando o final feliz orgástico
a jacto, detrás de outra sorte, a mesma morte
é um facto, ocultável como essa mão lampeira ou a subversão caseira
irás beijar na corda bamba até que a corda te corte

[dinheiro]

serás às tantas astronauta de pijama
umas quantas estrelas cairão no vai-vem da tua rasteira
darás por ti a aconchegar o que te é imposto na cama
afagando pontos erógenos à dinheirama
e terás corpo voraz, alma putéfia sorrateira
tremendas oleosas vontades que lutam na lama
tudo a facturar, todos a pagarem-te em fama
e ao final do dia uma pistola dourada na carteira

[trabalho]

roubar aos cegos não é fácil, mas traz-te glória
vaguearás estoicamente pela luz até se lhes apagar a memória

[saúde]

manter-se-á a propensão hereditária para pedra nos sins
agravar-se-á a reiterada vocação urticária alérgica nos nãos
não te salvará a suspensão oral por conta da contaminação da voz
(nenhuma erva coragem tisana te subtrai à merda voragem tirana)
não nem serás tu a subscrever o sim
sim nem serás tu a atalhar pelo não
aplicarás cirurgicamente a pastilha da indecisão
aprenderás a gargarejar o tempo que se aglomera na garganta em nós
a vomitar audivelmente público o entretanto após
de tão peçonhento hálito saberás
xarope nenhum te purgará a inaptidão para respirar fundo nos jardins
não há pomada de espectro permeável às costuras do coração
e se fores influentemente bom rapaz
poderás tornar-te na presa viral das presas dos mastins
ou poderás morder toda a espécie que em ti pousar a mão
se fizeres o mesmo que qualquer deus faz
: tanto te fará ser osso ou cão

[amizade]

ver-te-emos a acenar ao mundo inteiro desde o palanque da praça
alguns de nós fumando coçaremos o escroto
outros quantos já finados dedicar-te-emos o voto
mas todos te acharemos a mesmíssima graça
a do filho-da-puta ignoto
e se calharmos em imprevisto cruzamento
recordaremos o passado elegante
dar-te-emos lembranças de presunto à falta de melhor assunto
que para falar doutros enchidos seria preciso dar ouvidos
e tu serás sempre bem falante
porque te saberás posicionar sempre a favor do vento


Bill enGates

quinta-feira, 24 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (III)


Desconstrução poética

o contrário de amor não é romã
o contrário de romã não é amor
o contrário de amor não é maçã
o contrário de maçã não é temor
o contrário de temor não é divã
o contrário de divã não é furor
o contrário de furor não é de lã
o contrário de lã não é tremor
o contrário de tremor não é coisa vã
o contrário de coisa vã não é rumor
o contrário de rumor não é paisagem sã
o contrário de paisagem sã não traz ardor

o contrário de ardor não é já amanhã.


Bruno Vilão

terça-feira, 22 de março de 2011

UM DIA DE SETE COM POESIA (II)


A Inacreditável Flexibilidade Do Tempo

No outrora deveras longínquo
um poeta escreveu algumas palavras
purificadoras com a curiosa peculiaridade
de quem as lesse viver para sempre
Deus procurou infinitamente este registo
encontrando-o no momento crítico
Talvez não me acreditem mas
quando se cansar do nada abosluto
o universo e a eternidade e o silêncio
brotarão como folhas de papel
Ao ouvir falar delas depois da vida
e do percurso percorrido desde a árvore
até à fábrica para que existam
recordaremos com saudade a Terra
Contudo voltando a deus vos digo
que ainda está longe o dia
em que se tornará criador
e neste exacto presente
nem sequer suspeita que o há-de ser


João Belo

UM DIA DE SETE COM POESIA (I)


COMPONENTES NA MASSA DE TEXTO

um breve componente;
a conclusão significativa na espessura da leitura
que choca com o texto
inicial em relação ao momento de realização
do corpo do homem nas palavras
que se mostram presas em sinos;
e então nós lemos em japonês,
com o espírito de uma síntese
reduzida ao pó das estações, ao lago de uma
imaginação que representa a memória
inexistente, sozinha no sono, vazia
no interior da natureza intensa.
e somos felizes; felizes com novos formatos,
em novas massas de texto,
em novas eliminações cirúrgicas de nós mesmos.


Sylvia Beirute

segunda-feira, 21 de março de 2011

NO DIA EM QUE A PRIMAVERA PLANTA ÁRVORES COM POESIA (I)


primavera

um pau era uma espada
uma pedra um diamante
cada cordão uma estrada
o dia inteiro um instante

uma concha era um soldado
cada mergulho arqueologia
à luz do tempo ondulado
o sal da pele adormecia

uma poça era um rio
e cada rio uma viagem
e cada árvore um castelo
e quando chegavas do frio
estendíamos a nova margem
com flores pintadas de amarelo


Bill enGates

NO DIA EM QUE A PRIMAVERA PLANTA ÁRVORES COM POESIA (II)


primavera

mantinhas as portas abertas e eu tocava as feras
fazíamos coisas incertas na chuva das primaveras
 
 
Bill enGates

domingo, 20 de março de 2011

Provocatio


Se a vida te dá limões, faz uma limonada!

Passei a sexta-feira a adiar coisas e que bem que me soube. Adiei a ida ao ginásio, ao supermercado, os pagamentos no multibanco, o telefonema tão urgente... adiei o início da dieta, algumas arrumações gritantes... e que bom que foi! Passei o dia estendida na cama a ler um livro. Foram muitas, muitas páginas de uma só vez. Estarei a ficar louca? Quero lá saber! Amanhã logo se vê. Há coisas muito mais importantes na vida: fazer amor e adormecer.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 18 de março de 2011

Crónica Benzodiazepina


"E o povo, pá?"

O povo é hoje uma classe sem futuro histórico, o povo envergonha-se de ser povo, o povo é aquela coisa aburguesada que só pensa em consumo, em consumir até se esgotar, em se empenhar até mais não poder... e arrear.
O burguês tenta não parecer burguês. Instruiu-se e nobilitou-se, pela toga ou pela bata, ou pela pasta e pela gravata. Desenterra os pergaminhos de um parente ilustre do Liberalismo e põe todos os nomes aos meninos, que trata por “você”. Vive num condomínio privado e conduz um carro potente. É profissional liberal, quadro superior de uma empresa pública ou privada, político, ou apenas endinheirado. No cúmulo defende a monarquia e o regresso à Velha Sociedade dos privilégios, reinventa uma linhagem e usa-a como um pedigree, tal qual um cão de raça, ainda que mantenha em privado o seu jeito de rafeiro. A burguesia saíu do povo, mas o povo – que estava entranhado – não saiu dela.
A aristocracia – minoria calcinada pelos últimos anos da Regeneração - esfumou-se pela boca suja da chaminé da maçonaria. Engolida pela vaga sem fundo que foi a I República, regurgitou-se e recebeu pequenos cargos e mordomias, em troca de silêncios cúmplices, no Estado Novo. Escondeu-se no 25 de Abril e voltou a instalar-se anos depois aliada à burguesia, é agora uma classe engajada politicamente que, sem pruridos nem esconderijos, enverga o ditoso nome como uma bandeira.
"E o povo, pá?" O povo perdeu a consciência de classe e reinventou-se burguês, como na cantiga que lhe faz blague – começa por querer um telefone da última geração, com o último grito gravado em directo, ou um plasma com faculdades tridimensionais, ou um frigorífico de três ou quatro portas. A seguir, aspira a ter ainda mais, a ser rico. Em suma, o povo quer ser burguês e a burguesia, que é oriunda do povo, também não quer voltar a ser povo, sacudiu essa bestialidade e agora adorna-se com ares de aristocracia. O povo é uma Fénix com asas em segunda-mão, uma coisa fluída e viscosa, que está sempre a morrer povo e a renascer burguês.


Joshua M.

Sou pelas palavras

Já perdi a voz, já perdi avós, já me perdi em nós e já perdi momentos a sós. Já me perdi em pós. Já recalquei algo atroz. Já naveguei do interior dos sonhos até à foz e já gritei meio louco meio feroz. Já me senti a correr parado e já fiquei
estagnado no instante mais veloz. Em todos estes momentos fui pelas palavras. É por lá que caminho. Por uma ponte de consoantes suspensa por inflexões de ritmo, com intertextualidades pendentes. Percorro-a pelas aliterações e através das pontuações, sem reticências... para pontuar o prazer. Porque sou pelas palavras. Uns são pelos cães. Eu sou pelas palavras. Outros são pelas acções. Bem sei que as acções falam. Mas as palavras, essas, actuam. Em qualquer filme ortográfico.


Bruno Vilão

quinta-feira, 17 de março de 2011


Voo nocturno

Adoro as noites passadas a voar contigo, desafiar a sorte em tangentes impossíveis, subir ao cume mais subtil, onde somos alma, para depois cairmos a pique abraçados às asas que rapidamente se transformam em braços, devolvidos demasiado cedo ao interior da carne.

Amo o fluir sem rota, e minto, porque a rota só tem um destino se me deixo ir livre.


DuArte

quarta-feira, 16 de março de 2011

MÁTRIA NATÁLIA - 16 de Março de 1993


"Autogénese", poema e voz de Natália Correia

MÁTRIA NATÁLIA - 16 de Março de 1993


AUTOGÉNESE

Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;

pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.

Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.

Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam;

nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
às vezes por fora
mas nunca por dentro
perfil de uma estátua
que não sou de frente.

Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.

Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos;

eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.

Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim:
impura de todos
gostarem de mim.


Natália Correia
(Fajã de Baixo, São Miguel, 13 de Setembro de 1923 — Lisboa, 16 de Março de 1993)

Vitimazinha

Ao N. assenta-lhe bem o papel de vítima. É um picante como outro qualquer. Há quem prefira procurá-lo frente a frente, nos olhos do touro. Doa o que doer!
O género do N. é mais aquela coisa pantanosa, doentia até, nem para a frente, nem para trás. Diz que não, mas queria era dizer que sim, ou ao contrário. Porque é o que lhe parece bem. Mas não tem a coragem necessária para encaixar isso e seguir em frente. Fica ali a vitimazinha a auto-flagelar-se, a cuspir ácido sulfúrico, a transformar o amor em ódio, a magicar vinganças ridículas e a remoer ideias falsas, que desconhece, mas que também não tem a coragem de enxergar e esclarecer. Porque o que gosta mesmo é ouvir aos outros e a si próprio: - coitado! sofre tanto... fazem-lhe tanto mal... pobre diabo! É um génio e é enganado e mal-tratado!
É o eco desta lamúria infantilóide que excita verdadeiramente o N.!

E os outros? alguma vez pensaste o que sentem? como os magoas? Consegues pensar em mais alguém além ti próprio, vitimazinha?


Iolanda Bárria

terça-feira, 15 de março de 2011

Palavras Versadas

Gémeas

Dia 5 de Junho irmãs cada
uma radiante pelo seu décimo quinto aniversário
de calções azuis ambas quase verão
um metro e sessenta e nove cada uma
os troncos nus as mãos esquerdas
vazias as direitas com duas garrafas
de vinho tinto os pés descalços sobre
a praia um cigarro em cada boca soprando
cinza em círculo dum semi-círculo


João Belo

domingo, 13 de março de 2011

Provocatio


Quem fala verrdade não merrece castigo

A prrincípio enerrvava-me porr tudo e porr nada.
 - Não te enerrves tanto raparriga, grritava-me carrinhoso o meu amigo Reims. Grritava porrque de outrra forrma eu não o conseguirria ouvirr (trrata-se de um cavalheirro).
Com o tempo, porrém, reconsiderrei e renasci parra a vida (mais ou menos como as florres, mas porr prrocessos menos marrotos...).
O que vos posso contarr, senhorras e senhorres, é que encontrrei o caminho da verrdade.
E a verrdade, é que o materrial tem semprre razão.
Semprre!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 11 de março de 2011

Crónica Benzodiazepina


ESSA ACTIVIDADE BARULHENTA QUE É PENSAR

Se, de acordo com o que dizem alguns autores, é a nossa mente que provoca os nossos problemas e não, como prevíamos, os outros à nossa volta ou, melhor dizendo, "o mundo lá fora", possuo assim dentro de mim o meu maior aliado.
Ora, a minha mente, filha de uma grande puta, não se cala nem um instante... E eu, que gosto de dizer que não me interesso muito pelo passado e que raramente penso nele, dou por mim enredada na barulheira que ela faz a tentar livrar-se dos traumas do passado que, teimosamente, insistem em permanecer.
Continuando... Concluí, ainda há pouco, que sou tudo menos um ser iluminado ou quieto. E gostava de ser. E hei-de ser. Ando a trabalhar arduamente para alcançar essa tal ilumiação que Buda define como: "o fim do sofrimento", isto é, aquele estado em que o barulho mental amaina e o pensamento compulsivo, essa terrível escravidão, acaba por ir desaparecendo. Até porque pensar em excesso, insistente e repetidamente sobre as mesmas coisas, não só é inútil e prejudicial como acarreta um incrível desperdício de energia. Já agora, deixo um dado que me tranquiliza um pouco: é que parece que o número de pessoas que já conseguiu ultrapassar a mente é muito, muito reduzido.
Mas quando tal acontecer, aí sim... terei encontrado o equilíbrio que tanto procuro. Começo lentamente a perceber que as coisas que realmente (me) interessam acontecem para além da mente. Pensando bem, os melhores momentos da vida são aqueles em que a mente fica calada. Os momentos que guardaremos para sempre são os de beleza, de amor, de criatividade, de alegria e de profunda paz interior... e aí a mente bem que pode estar bem caladinha porque não é precisa para nada.


Carmo Miranda Machado

Esboço para um ensaio sobre a leitura do conto “O Capuchinho Vermelho”

As Histórias para crianças encontraram um contexto na "Psicologia dos Contos de Fadas", ganharam um sentido e perderam todo o sentido. Deixaram de ser para crianças. Resta-nos reescrever a narrativa sem uma ordem predeterminada para a reescrever descarregada de sentidos, para lhe dar outro sentido. Desconstrui-la como uma charada impossível de submeter ao exame de qualquer hermenêutica, que não aquela de que as crianças são capazes aos quatro anos. A consciência própria da idade da razão, a criança universal, a entender sem conseguir explicar.

Assim lendo, reconta agora tu, leitor, a história a ti mesmo. Basta leres as seguintes palavras para que a tua memória seja acicatada:

Mãe AVÓ Conselhos

Vereda Lanche LOBO Floresta Mistério

Vermelho Distracção CAPUCHINHO VERMELHO Puberdade

Floresta CAÇADORES Predador

Casa da avó LOBO AVÒ CAÇADORES Barriga Aberta

Fera Morta FINAL Final Feliz


Joshua M.


quinta-feira, 10 de março de 2011


O filho pródigo

Eu não sou um corpo. Eu sou a mente que se vestiu de um corpo para poder foder aquele que a criou. A razão de o querer foder é um engano mas, engano ou não, gerou medo e a fúria acabou por se instalar. De facto, essa fúria nunca poderia ser manifestada enquanto mente, ainda mais contra um Deus que me criou como extensão da sua própria mente.
É triste que um engano me tenha levado tão longe. É triste que um erro possa ter tomado proporções tão, tão.. estúpidas. O medo instalou-se, o céu aparentemente foi corrompido, cheia de medo, a mente estilhaçou-se num universo repleto de corpos, onde fosse mais fácil conviver com a loucura.
Odeio-me e, na impossibilidade de me virar contra um "pai" que me convenci ser déspota, agora viro-me contra o mundo, sendo eu o déspota, julgando tudo e todos. A bem dizer, o mundo é a minha criação independente e sempre que vocifero contra os outros é a mim que tento foder. Percebes agora o meu mal estar?
A boa nova é que aquele que me criou, ao criar-me nele e igual a ele, fez-me invulnerável aos instintos suicidas. Por outras palavras: ao ver-me num corpo, deixei de ser quem sou, deixei de o poder foder, o que equivale a foder-me a mim, e mais não faço que ter um sonho húmido.


DuArte

quarta-feira, 9 de março de 2011


Na poeira do tempo...

Não, não tem um aspecto clean. É mesmo para ter um aspecto sujo. Como o papel amarelecido pela usura do tempo. Como o borrão deixado pelo carvão ou pela tinta do tinteiro. Já que me obrigo a uma rendição às novas tecnologias, à palavra escrita informaticamente, ao menos que seja uma rendição envolta na maior sujidade possível. Com palavras a pingar cera de lacre vermelha. Na garantia de que tudo o que aqui entrar, terá sido escrito antes a carvão, numa qualquer folha de papel rasurada. Porque me recuso a limpar a poeira do tempo.


Bruno Vilão

terça-feira, 8 de março de 2011

Palavras Versadas


ascensão

o princípio da tua manhã traz espuma
no canto dos lábios
e como se pedisses a previsão do clima
que gravará o dia na nossa memória azul
afasto as chávenas incandescentes
até nada mais entre nós obstruir o calor
apontando a janela, digo: meu amor
sou aquele pinheiro alto
e há dele um cimo aceso que nunca
irás tocar com as mãos
mas não te é inacessível nem estás presa
apenas eu solto, e assim
podes fazer de conta, ou voar ferozmente
ziguezaguear caminhos e inventar outros
não te quedes cabisbaixa, como uma raiz
não espero por ti, mas quero que me alcances
abandona a raiz. como o café se anuncia
na manhã com aromas alpinistas.
e toma atenção: todos os dias hei-de crescer
mais e mais, como uma criança incorrigível
quero ter a cabeça nas nuvens


Bill enGates

segunda-feira, 7 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Editorial


O nosso primeiro aniversário

O Filósofo fez, no dia 1 de Março, um ano de teorias; o Fanfarrão fez trezentos e cinco dias de blagues. O Filósofo é ainda um bebé chorão e usa fraldas; o Fanfarrão também, mas quando molha as fraldas ri em vez de chorar. 
"O Filósofo e o Fanfarrão" são dois entes distintos, mas são também um só pensamento, uma só forma de estar.
"O Filósofo e o Fanfarrão", em uníssono, exprimem aqui a sua gratidão por todas as visitas, por todas as pestanas queimadas, por todas as secas infligidas, por todos os risos desarmados, por todos os cansaços agravados, por todas as lágrimas desatadas, por toda a atenção que lhes prestaram.
"O Filósofo e o Fanfarrão" agradecem, aos seus seguidores e leitores, os votos de felicidades e as palavras com que os parabenizaram.

"O Filósofo e o Fanfarrão" estão de boa saúde... e recomendam-se!


O editor

domingo, 6 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (VII)


As coisas que eu oiço...

"A qualidade de um homem mede-se pela qualidade da mulher que escolhe".

 É capaz de ser verdade. Isso e o tomate de qualidade ser uma fruta que não calha a todos terem por natureza.


Ana Santiago

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Crónica Benzodiazepina (II)


Um dia em cheio

22 horas e 33 minutos. Encontro marcado comigo própria. Fecho a porta da rua atrás de mim e arrasto-me até ao portátil que, amorfo, aguarda estupidamente quieto na mesa da cozinha. Espera, creio eu, que alguém lhe dê uso. Aqui estou. Atrás de mim um dia repleto de cansaço e desafios. Um dia em cheio. Quando temos um dia assim, em que as horas escasseiam face às tarefas que nos propomos realizar, fica tão pouco por dizer. Mudei de vida, de ice tea, de casa. À minha frente uma lagoa imensa se abre em segredos profundos. Mas, estou demasiadamente cansada para mergulhar, fico ali, parada, a borboletear serena e despreocupada. A lagoa está ali há centenas de anos, não vai desaparecer com os seus segredos mil já amanhã, eu provavelmente também não. Ficamos então assim... com a sensação de que se partilha um namoro infantil, inquietante e excitante. Nunca tinha sentido isto com uma lagoa. Com pessoas, animais, até doces, sim. Aquela sensação de tesouro guardado que nos espera... mas com uma lagoa é realmente a primeira vez. Conto as horas até voltar a vê-la. Visito-a várias vezes ao dia, contribuindo de cada vez, para que num futuro, o mais próximo possível, possa permanentemente ficar ao seu lado. Quem me conhece e partilha esta minha outra vida, mais citadina, fica preocupado. Não compreende esta atracção. A minha estrada encontrou uma curva, eu limito-me a percorrê-la. Quando o caminho nos conduz, é assim, não vale a pena evitá-lo. Afinal, não é o barco que faz a onda, é o barco que se faz à onda. A minha vida faz-se à curva e sente prazer nisso.


Lucinda Gray

sábado, 5 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (VI)


Cliques sensoriais

Tenho um amigo que afirma a pés juntos que a sua vida melhorou desde que instalou sensores de electricidade em casa, para não ter de andar sempre a ligar e a desligar a luz. Tirando o facto desse meu amigo não ser bom da cabeça, ou não seria meu amigo, eu acho que isso podia resolver o problema da falta de "cliques" no amor. O "clique" parece ser o novo "santo graal"...


Ana Santiago

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Crónica Benzodiazepina (I)


Fauna

Há coisas que me são difíceis de entender: o que leva certas pessoas a cortar as unhas durante a viagem de comboio?  Acontece muito nas linhas suburbanas (as que eu uso). Quase todos os dias, praticamente. Ouve-se um barulho seco, da lâmina a pressionar a queratina,  ora mais forte, ora mais fraco. Parece mesmo o revisor a 'picar' os bilhetes.
O que leva alguém a sair de casa com um corta-unhas? a usá-lo no comboio? assim, à frente de toda a gente... Porque não na estação, enquanto aguarda? nos minutos mortos que restam do intervalo do almoço? em casa???
Hei-de arranjar coragem para meter conversa com um cidadão (geralmente homens) que corta as unhas no comboio. Suspeito seriamente que haja um motivo. Talvez um desabafo. Um ritual de alívio! Quem sabe?
Tenho é de ter cuidado para não ser atingida na vista!


Iolanda Bárria

sexta-feira, 4 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (V)


HATE DOGMA

Não suporto clichés. Não suporto as frases "fica bem" / "não fica bem". Não suporto certas regras. Não suporto crenças e crendices. Não suporto suportar. Não suporto preconceitos. Não suporto "ter de" porque "tem de". Não suporto incompetências. Não suporto quem é fanático e doentio por competência ao ponto de não admitir que um homem ou uma mulher erram. Não suporto invejas. Não suporto a pequenez moral. Não suporto quem não sabe perder. Não suporto ter à minha volta tanta estupidez.

Sobretudo, não suporto acordar numa manhã de Inverno só porque "tem de ser".


Carmo Miranda Machado

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" (IV)


Jardim do Éden

Podia escrever um livro numa noite, se quisesse, mas não saberia o que dizer. Podia chegar ao fim de uma frase e repeti-la e repeti-la e repeti-la, até fazer sentido. E ao amanhecer, exausto, adormeceria sobre as folhas riscadas e concluiria como todo o meu esforço havia sido inútil, porque os livros não fazem qualquer sentido. Escrever é uma pura perda de tempo, para quem quer viver. Passamos a vida a viver exibicionistas, frequentamos os cantos obscuros dos jardins sociais, envergando uma gabardine que abrimos para exibir as nossas impudícies e nos masturbarmos para uma velhinha, que no final nos agradece, contente por ter tido uma visão rara. Entre tantas exibições, um dia passa mesmo a mulher dos nossos sonhos, a mulher que chama a polícia para sermos levados de mãos algemadas e presos à vida que nunca quisemos viver escondida. Cumprimos a nossa pena e saímos refeitos do cansaço de nos exibirmos todos os dias no mesmo jardim.

Um dia somos nós que estamos sentados num banco de jardim e é a mesma (agradecida) velhinha que nos vem importunar, descobrindo o seu corpo e exibindo indecências num abrir de gabardine. E assim se completa o círculo; e assim ficamos com a certeza de que queremos um dia chegar a velhos. Os relógios batem tão apressados, tão certos da nossa hora...


Joshua M.

quinta-feira, 3 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (IV)


Father, I want a new skate

Quando era criança tentaram ensinar-me que deus tinha feito o universo, o planeta e os homens. Na altura, preferi as "chicletes gorila" com sabor a banana. O mundo garantia-me, olhos nos olhos, que a conversa de deus era uma tanga.

Hoje, passado tanto tempo, tantas aventuras, finalmente percebi que o mundo é que é uma tanga. Deus existe, é só amor, é eterno e espantem-se: não usa roupa interior. O que é que isso tem a ver com este mundo?

Nada. Deus não faz a mínima ideia da rebaldaria que o seu filho imagina fazer nas suas costas.


DuArte

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" (III)


Morte

Todas as atrocidades a que somos sujeitos desde que nascemos, ruas e ruelas pelas quais enveredamos às apalpadelas cheias de uma agonia silenciosa, a que alguns dão o pomposo nome de “liberdade”, deverão servir para alguma coisa. Eventualmente, para cada um de nós uma coisa diferente, género, fato feito à medida, possivelmente, aquele fato que envergaremos quando partirmos deste mundo. Quem sabe? Tenho andado a tentar “consertar” a minha alma. Pô-la de acordo com a estação do ano. Sei que ela está desejosa por poder ser leve e frívola. Mas a coisa não está muito fácil: sempre que ela sobe um pouco e se aclara, uma nuvem passa e faz questão de se afirmar. A morte anda a rondar. Pessoas boas, de quem gosto estão a partir. Agora é o meu sogro, antes foi o pai de um amigo e antes ainda o irmão de um outro amigo querido. Amanhã?
Julguei que não se morria no Verão… Não de morte natural. Pensei, de acordo com a minha experiência até então, que isso só acontecia no Inverno, em dias impreterivelmente chuvosos.
Percebi, há pouco, que somos seres tendencialmente egocêntricos. A morte, que é dos outros, daqueles que morrem mesmo, acontece-nos sempre a nós, mais do que aos próprios. Ou, então, é a representação dramática da nossa morte que se avizinha, ou de alguém que já perdemos. Nosso, sempre nosso, nosso pai, nossa mãe, nossos filhos, nossos amigos e amigas… sempre nossos. É verdade que o sinto sempre que uma parte de mim morre…
No fundo, é como se, ao longo da vida, todos os enterros fossem sempre um único, na verdade o nosso próprio, a que nos é dado o privilégio de assistir. Não morremos de uma vez só, vamos morrendo assim, de enterro em enterro, a pouco e pouco.


Lucinda Gray

quarta-feira, 2 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (III)


Vazio

Por vezes, perde-se o sentido das coisas e o vazio preenche-nos. Há dias que podiam não existir. Não deixam saudade. Contrariamente, há momentos irrepetíveis. Uma praia. Um dia de verão. Um ombro. Dois corpos colados. Um serão à lareira. Acordar (quando se dorme) e saber que já não está, que se perdeu, logo quando tudo parecia começar a fazer sentido.


Carmo Miranda Machado

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" (II)


O desterrado

O corpo nada faz; existe, porque a mente assim o quis. Adoece, porque a mente, assustada com a sua própria decisão, vestiu a carne que pensou e dessa forma se fez doente no exterior.

Apaixonada pela escultura, a mente que se julgava separada acabou por se confundir com ela. A paixão foi tão avassaladora que os olhos da pedra começaram a ver e a rocha se fez porosa para que o ar pudesse entrar. De tanto a mente acreditar, a figura branca e rochosa começou a mexer-se, qual títere, cortando os fios que a uniam à criadora: os pensamentos abandonaram a sua fonte e decidiram parir-se a si próprios. A mente ficou abandonada, a sonhar com um corpo que sem dono vai aos tropeções. Triste e cansada, a mente que agora pensa ser um corpo, senta-se para meditar, à procura da leveza que outrora foi. Sou um corpo pensante - conclui, extrapolando a partir do erro de percepção, invertendo a lógica, dando ao denso a capacidade de gerar o subtil. O pensamento que se julga matéria concluiu em defesa da obra própria, que foi a matéria quem pensou a leveza de si, devolvendo o pensamento ao corpo que verdadeiramente nunca existiu...

O corpo nada faz; existe, porque a mente assim o quis. Adoece porque a mente, assustada com a sua própria decisão, vestiu a carne que pensou e dessa forma se fez doente no exterior.


DuArte

terça-feira, 1 de março de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (II)


Chegar! - disseste, chegar?

Podia ter sido de qualquer outro lugar, mas foi da Abissínia que partiu.
Disse, bem alto: vou partir!
Podia ter sido a qualquer outro lugar, mas foi a Constantinopla que chegou!
Anunciou: - cheguei!

Perguntaram-lhe: - porque partiste, se chegaste?


Iolanda Bárria

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" (I)


peixe fotografado enquanto voa

Nada mais a fazer. Já não há peixes a florir nas tuas mãos. Já não temos colchão de água na nossa escama. Já não sabemos a fio de terra dos amores-perfeitos. Como seria se tivéssemos plantado uma árvore de onde pendessem anzóis? Haveria tempo para romper o céu com a chuva ascendente de penugem que nasce desde o teu ventre até à reserva natural do teu sorriso? Estava cristalino esse dia — recordo-o assim pela urgência que tínhamos de despirmos cada mentira que nos lastra ao mundo. Esse dia adormeceu com cinzas. E delas cresceu outro; e outro; e outro. Depois as tuas mãos cerraram-se como o medo de um filho. Não estava escuro, recordo. Ainda pude ver ao fundo um reflexo, a difracção de luz do teu mergulho aeriforme. Meu peixe saltador. E eu, ar simplesmente. O pasmo amplexo de uma nuvem perante a consumação do voo. E se te disser que deverias ter ficado na água? Pensarás que te amo... Eu pensaria o mesmo. Não é natural. O que se passou desde que tive nas mãos uma porção da tua água até te tornares este oceano tépido de onde fugiste um peixe que antes me banhava? Terei adormecido nas harpas da tua voz? É trémula, agora, a sensação de procurar com as costas das mãos as asas nas costas que não tenho. Estavas adiante na teoria da evolução. Estás. Isso nunca me fez espécie. Até agora — que somos espécie diferente. Deixa-me contar as letras... sim, ainda tenho quanto baste para uma nova tatuagem. Vou escrever: encontrei o mar deserto e naufraguei na ilha. Pode ser que alguém me encontre. Tenho pouco tempo. Afinal, apesar de tudo, cresceram-me guelras para te respirar.


Bill enGates