segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Provocatio (I)


"Linearidade emocional"?

“Contudo, nada neste mundo é duradouro, e, por tal, também a alegria do segundo minuto já não é tão viva como a do primeiro; ao terceiro minuto fica ainda mais fraca e, por fim, acaba por fundir-se com o estado de ânimo ordinário, como o círculo que a pedrinha faz na água se esbate e finalmente se funde na superfície lisa do charco”.

Isso é tudo muito bonito, Gógol. Mas escasseia-me essa "linearidade emocional". As ondas de furor invisíveis ao tacto são sempre audíveis nos corredores do abstracto.


Bruno Vilão

1º ANIVERSÁRIO D'"O FILÓSOFO E O FANFARRÃO" - Palavras Versadas


TEXTO PARA TEATRO

primeiro acto,
implicações diferentes:
o acusar o teu progenitor de
adultério no momento da tua confecção
e a peça do teu rosbife;
a palabra «imundo» que tem
a palavra «mundo»
e um pleonasmo de talento
num feto morto.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
segundo acto,
vultos iguais:
a sensação de exame e este amor que é
uma estrada secundária;
o não ouvir o que escuto
e invejar a liberdade do teu ar.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
no terceiro acto
a palavra magnifica do mesmo modo
e o poema se perde
como se nunca tivesse existido.


Sylvia Beirute

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Crónica Benzodiazepina


IT'S RAINING MEN! ALELUIA!

Acontece de todas as maneiras possíveis. Na rua. Na casa dos amigos. No semáforo. Na auto-estrada a 180km/hora. Na discoteca às 6h da manhã. E, consta, cada vez mais, em encontros às cegas, furtivos, a ver se interessa, agendados virtualmente.
As pessoas procuram-se e encontram-se em desencontros que se sucedem ininterruptamente, sem tempo para criarem histórias juntos. Nada mais parecer interessar para além do sexo, esquecendo-se que não é isso que fica em nós quando nos encontrarmos sós, no fim de tudo.... Aí, serão os afectos a única forma de ligação à terra!
Mas o que se esconde por detrás destes encontros? Quantas horas de solidão são necessárias para colocar um anúncio na Internet?
Vou contar-vos uma história verdadeira. Imaginem duas mulheres amigas. Uma crente na virtualidades da Internet em matéria de conhecer homens. A outra totalmente descrente nos afectos virtuaiss. Imaginem a primeira mulher. Jovem. Inteligente. Interessante. Financeiramente independente. E linda de morrer. Conhece alguns homens através da Internet. Cativa uns. Outros cativam-na. Mais ou menos altos, mais ou menos magros, mais ou menos carentes, mais ou menos inteligentes, mais ou menos interessantes, mais ou menos estúpidos, mais ou menos casados... Mas quase todos eles, inequivocamente, em busca de uma mesma verdade - o sexo, algumas vezes encapotado em AMIZADE, RELACIONAMENTO SÉRIO e outras pérolas...
Agora imaginem a outra mulher. Também jovem. Também interessante. Também independente. Porém, CÉPTICA quanto à validade dos afectos virtuais. Mas curiosa. Quer perceber o funcionamento das relações electrónicas. Coloca um anúncio. Recebe respostas aos quilos. E eis que, numa triagem rigorosa, selecciona apenas UM homem com quem decide marcar um único encontro. Esse homem, o único seleccionado entre centenas de respostas, é o mesmíssimo homem com quem a outra mulher, sua amiga, andava a dormir. COINCIDÊNCIA?


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011


Todos os nossos dias

Todos os dias acordamos de sentidos despertos e vemos uma nova luz nascer dia. Apetece-nos ficar e repetir. Repetir indefinidamente cada dia, vivendo-o como se fosse o mesmo. Ficar repousado no simples calor de um beijo e adormecer nas palavras rendidas ao sono. Adormecer no adeus de nunca ir embora. Ficar sem partir, ser demora. Ficar por dentro a ver de fora como adormecemos conchegados numa cama feita de sonhos lavados. Sempre dia à espera do dia seguinte, em que vamos e volvemos e nos contemplamos a ficar. Como se partíssemos sem partir, sem dizer adeus, sempre a ficar.
Não somos, nem podemos ser, sem vivermos aquilo que um vive e o outro vive, sem sermos unidade sendo apenas uma parte unificada de um todo (– por cada um de nós, neste sermos nós). Somos sempre um e só um, a dois, o princípio e o fim da corda atada a si mesma pela força de sermos nós dados cegos. São assim os nossos dias: dias de voltarmos, de ficarmos, ávidos de lamber o sal restante das nossas intimidades. Porque nos nossos dias há uma noite depois de cada dia para estarmos a sós connosco. E resultamos tão sós que nos bastamos a nós próprios restando átomos unidos a uma mole imensa, como se fossemos o mundo inteiro e ainda nós.
Somos os únicos sobreviventes de uma tragédia onde a final só restaram os que se querem ao querer ficar, os que estão amarrados à vontade de se quererem. Somos pedaços colados de uma massa disforme de matéria solta por uma explosão imensa, o resto vivo de um choque entre alguma coisa e uma coisa qualquer – um protão ou um electrão (eu sei lá!) –, o resultado quântico de uma catástrofe atómica e explosiva que devassou os nossos corpos e as nossas vidas para nos levar para uma outra dimensão. Um lugar de nenhures, um lugar a dois onde vivemos uma viagem à roda de nós próprios; uma viagem num meio de transporte inter-estelar que nos projecta em partículas para um lugar de eutopia. Um lugar onde subimos céu e descemos mundo, acomodados sobre uma amálgama de corpos destroçados, de pedaços de gente aspergida pela força brusca enorme.
Antes e depois da bomba somos nós, tudo e todos: explosão ou implosão, quer queiramos quer não, ficaremos os dois até onde chegarmos. Não temos nada. Não nos temos sequer a nós próprios, sendo um e o outro, sem nos darmos. E quando nos damos, nunca nos temos, porque nos damos. Vivemos e não vivemos no meio da cisão de um átomo, no seu núcleo, que cremos (e queremos) seja uno. Somos um ser único porque habitamos os dois num só. Vivemos sempre à espera um do outro, um pelo outro, sempre à espera. Não sobrevivemos um sem o outro...


Joshua M.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011


Almas gémeas

Almas gémeas? Mas o que é isso de almas gémeas? Esta expressão corrói-me os nervos. Primeiro porque acredito que qualquer relação interpessoal se alimenta precisamente das suas diferenças. Depois porque me enerva a facilidade com que se recorre a esta ideia para forjar a segurança na conformidade. Cá pelos meus lados, o mais próximo que consegui foi arranjar uma alma prima. E das afastadas. Daquelas que só são primas, porque filhas do irmão do sobrinho do meu primo. É que nem se contentaram em chamar-lhes almas irmãs. Tinham logo de ser gémeas. Aposto que das verdadeiras. Saídas do mesmo embrião. Cambada de incestuosos. Perversos. Agora, se me dão licença, enquanto confesso admirador de mulheres mais velhas, vou sair com uma alma avó.
 
 
Bruno Vilão

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011


A EPOPEIA DA FRAGILIDADE

O mundo em que vivemos não admite pessoas livres. Mas é preciso alargar o espaço da nossa liberdade e tal só é possível diminuindo as nossas dependências - através do despojamento.

Comecei o meu processo de despojamento. É difícil. Vivemos agarrados às coisas, às pessoas, aos bens, às necessidades, ao poder... Que trabalho livrarmo-nos do que, julgamos nós, nos dá identidade. Mesmo os outros, não são mais do que companheiros de jornada que devemos amar, acarinhar mas com os quais não podemos criar dependências...

Confesso que comecei. Não me perguntem ainda se vou conseguir. Sou frágil. Muito frágil. Demasiado frágil. Porém, pressinto que ficarei mais forte...


Carmo Miranda Machado

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Palavras Versadas


FOTOGRAFIA À BEIRA-MAR

à beira-mar. 
e é da interrupção deste desejo 
que nasce este desejo;
é da interrupção desta capacidade
que se realiza esta capacidade;
é da organização do som 
que se mede o poder do embate;
é do soluço desta peixidez
que fazemos por fim nosso
o nosso mar;
sempre uma coisa na dependência
dessa mesma coisa ou algo
à beira-mar.
sempre uma nova pessoa
que nasce dela mesma.


Sylvia Beirute

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

DIA INTERNACIONAL DA LÍNGUA MATERNA


Mau hálito

A gramática é a alegria da vida, disse às tantas Emma Robinson. Disse-o em inglês, a sua língua mãe, e usou a entoação certa.
Sorrimos. Ela, um sorriso delicado, mas franco e seguro.

Emma podia ter dito: o vinho é a alegria da vida. Nada mais acertado.
Ao ouvir isto, teríamos olhado uma para a outra e aposto que teríamos rido com satisfação. Com uma enorme gargalhada, a lembrarmo-nos dos vinhos que já descobrimos juntas.
Mas o que Emma disse foi: a gramática é a alegria da vida.
E acrescentou :

Encontrar erros de gramática num bilhetinho de amor é tão desanimador como mau hálito.


Iolanda Bárria

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Remédios da alma para tempos de crise

Vivemos tempos de crise. Facto, cansativo e badalado porque apesar de ser uma realidade sentida em vários sectores, finalmente atingiu o cume de todos os poderes – a Economia. Há muito que esta crise se vinha a instalar e a dar sinais gritantes da sua necessidade. Como por exemplo na Politica Executiva – educação, saúde, segurança social etc.
É óbvio que estamos a viver tempos de aflição – por vezes de desespero. Mas, se conseguirmos perceber as razões que nos conduziram a este buraco negro, teremos igualmente a possibilidade de sairmos dele. Afinal, o ser humano é um animal surpreendentemente resistente e a sua força, bem como a sua fraqueza, reside única e exclusivamente na sua mente.
Aqui vão algumas dicas:
Lembre-se – a Crise é, antes de mais, uma simples palavra. Quanto mais vezes a repetir para dentro de si, mais real ela se torna. No entanto, Portugal conhece-a bem. Afinal, não vivemos nós desde sempre em crise? Estamos, portanto, bem preparados e habituados a responder a situações difíceis. Confiemos em nós próprios!
Mude! Nem que seja de passeio, mas mude a sua rotina. Trate de si, do seu corpo e da sua alma. Vai precisar de ambos para reestruturar a sua vida.
Fomente, mais do que nunca, os pequenos prazeres. Não prescinda deles.
Pergunte-se, se amanhã fosse o último dia da minha vida, a que é se agarraria e o que deixaria cair? Redescubra-se. Uma vida de responsabilidades sem prazer é uma irresponsabilidade perante a própria dádiva de se estar vivo.
A crise é também um estado de alma. Uma palavra que, quando proferida pelos “outros” nos provoca um "Reflexo de Pavlov", instalando a infelicidade, a insegurança, a retracção – coisas que agravam a crise à escala global.
Aproveite a crise e reorganize-se, reinvente a sua vida. Dê a si próprio o tempo para se reestruturar. Aceite a queda do que tiver que cair, mas não vá atrás. Começar de novo pode ser uma bênção!
Por último, um conselho prático: Tem o frigorífico vazio? Organize uma festa.
Como? Convide todos os seus amigos para jantar. A cada um deles caberá trazer qualquer coisa simples que se coma ou beba. Ninguém gasta muito, e só com os restos de uma noite bem passada, não terá que se preocupar nos dias seguintes com comida.


Lucinda Gray

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011


paisagem urbano-depressiva sob o silêncio

as manchas ensombram a paisagem declarada e clamam para se apoderarem da atenção do turista, apanhando-o desprevenido, não lhe deixando outro campo de visão para onde correr;
há um sapo hiper-tanso atento às mudanças do papel de parede, rosáceas em curso, a cada passo o salto do sapo pára e observa o que mudou, examina o padrão e a sua unicidade;
os cigarros repousam distraidamente sobre a proximidade das poltronas e vão reinventando os cinzeiros, encenando cortinas de fumo no auge do carvão;
as portas ficam sempre longe ou atrás das fotografias, para que ninguém possa sair por elas e assim se guarde a eternidade do momento, com todos os retratados sempre presentes;
e tudo mais é espaço, é contraste de luz e sombra, uma sala cheia de fotões em anarquia perfeita, de feixes e corpúsculos animados por impulsos acicatados por descargas eléctricas superficiais;
os filamentos embutidos nos sóis caseiros incandescem para nos dar um lar de luz, iluminam tudo por breves instantes numa sala cheia de escuridão eterna;
as contas certas da energia tudo acendem enquanto a câmara gráfica continua a registar as latitudes, a guardar para si o segredo de uma parede manchada por um petróleo obscuro - depois de cada treva, sobrevem nova manhã;
um par de mesas de longas pernas imaginativas suporta os limites do cenário onde o espaço vital é continuamente inflamado pelas lentes;
sobre uma das mesas, o rodopio sonoro do cinzeiro kitsch; sobre a outra, uma cena camp passa inanimada numa televisão ligada em tons de sépia;
e tudo à menor dimensão de um sapo: de loiça ou de plástico; a terra dura vacila, é cada vez menos firme quando chove acidamente, cada vez menos chão para os nossos passos;
o vazio é lugar de onde saiu toda a gente para a rua, porque a rua é o melhor destinatário quando temos alguma coisa a dizer;
estão reunidos todos os espectadores do lado de fora do retrato de si mesmos, só assim se conseguem ver para lá da imagem do que são – obter uma perspectiva de sentido único;
e tudo em silêncio, por fora e por dentro, por todos os lados, até ao – tecto–falso - azul do improvisado céu virtual.
tudo cingido a uma paisagem retro, tudo sob o silêncio...


Joshua M.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

I walk

Caminho. Por trilhos de vidro colorido que magnetizam o olhar. Através de imagens caleidoscópicas que cristalizam alguns sentidos e estancam trémulas e suspeitas emoções. Há diversos cruzamentos, inúmeras intersecções, infinitas direcções mas “nothing makes feel good”. Por isso caminho. Calculo que certos trilhos tenham abismos no seu final, alguns terão certamente deliciosos e tentadores precipícios, outros devem conduzir-me por intermináveis paisagens, sem fim à vista. Outros acenam-me com sinaléticas de esperança, mas a minha ingenuidade esbateu-se ao longo do labiríntico tempo. Por isso caminho. Porque parado sinto a lei da gravidade a esmagar-me contra o solo. Por isso apenas caminho. Sem direcção, sentido ou orientação. Sim. I walk. Just walk.


Bruno Vilão

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011


Adoro olheiras! (as sombras mal dormidas de uma noite de sexo...)

Ela já se veste aos pés da cama. Conhece as minhas manhas. A forma denunciada como acaricio os lençóis ainda quentes do seu dormir.
 - Despacha-te! Já viste as horas?
 - Não sejas assim... E se eu não quiser ir trabalhar!?
 - Ao menos dá-me boleia.
Enfio a cabeça na almofada e finjo não ouvir os seus pedidos responsáveis.
 - Só saio daqui depois dela entrar.
 - Ela quem?
 - Aqueles olhos grandes, azuis, que me roubaram o sono. Fiquei perdido com o seu jeito de menina mulher.
Adoro gatos (e gatas), a forma como se sentam nas janelas do messenger. Adoro a gata das botas. Tocar nas suas costas com palavras. A subtileza dos seus gestos a acompanhar as minhas festinhas.
 - Isso é o que dá juntarem-se almas que adoram dizer e ouvir que se amam estranhos.
 - E tu? Não amas?
 - Claro que amo. É adorável. É irresistível. Mesmo quando já não temos forças para apanhar mais uma desilusão. Mas dava-me mesmo jeito uma boleia para o trabalho.
 - Faz-me um favor, abre um pouco a persiana. Quero sol. Quero descobrir o meu corpo à luz do dia.
Irresistível - a palavra que melhor se aplica a ti.
Empurro a cabeceira o mais que posso, a sorrir, e numa preguiça felina salto para fora da cama. Para os teus braços, para a doçura do teu corpo rosado.

 - Bom dia!


DuArte

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Palavras Versadas


dona teresa

um mapa tem qualquer coisa de brilhante
assevera a sapientíssima dona teresa
no seu desarmante tom desinfectante,
aquele de quem aspirou a ser princesa
e se conformou com aspirar num instante
o lixo da vida envergonhado sob a mesa

quero viajar para outro eu hemisfério,
digo-lhe em discurso circunspecto,
migrar num corpo estranho de adultério
perder o chão, desconhecer o tecto
cambiar de sangue, sangrar outro aspecto
que os fantasmas daqui não me levam a sério

dona teresa, enquanto limpa o pó à pistola
pressente-me o coração fora de moda
para disfarçar ceifa borbotos à camisola
(à queima-roupa é que a bala mais incomoda)
corta-me a barba enquanto me degola
dona põe-se a jeito para me dar uma poda


Bill enGates

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Provocatio - em dia de nAMORados


Uma questão de lágrimas

Os amores são como os bebés recém-nascidos: enquanto não choram, não se sabe se vivem...


Ana Santiago

Conto - em dia de nAMORados


Overdose

Tenho demasiado silêncio dentro de mim. E nenhum silêncio é sossegado. Há uma dor que me cresce entre a pupila e o osso occipital. Há um aperto a sufocar-me, tenazes que me espremem os pulmões, contorcendo-os com as mãos decrépitas de amores moribundos.
Tenho demasiado tempo dentro de mim. E nenhum tempo apaga a dor já instalada e implantada, cravada e soterrada, adormecida como um vulcão, bem dentro do coração.
Tenho demasiado amor dentro de mim. Amor que renasce em cada vida que me cruza, amor que brota em geração espontânea, rasgando-se ao desbarato por tudo o que é bom e por tudo o que é vil.
Tenho tanta raiva e mágoa e solidão e amor e saudade a transbordar dentro de mim… que parece que não consigo parar, quando parece que também não sei mais andar. Sento-me por fim no mesmo banco de jardim. Sento-me num turbilhão de memórias, debaixo do mesmo céu estrelado de outrora, imersa numa mesma floresta tropical imaginária, um mesmo céu arroxeado de madrugada, um mesmo corte de energia inusitado e a cidade de repente só nossa. O tempo parou naquele dia, sabes? E sei que só ali nós fomos realmente, nem antes nem depois, apesar de tudo o que vivemos. Só ali soubemos ler dentro de nós palavras que se tocaram e criaram um nós que esvoaçou na bruma disfarçada da luz eléctrica que retorna.
Tenho demasiadas vozes dentro de mim, e um esquecimento que me pesa sobre os ombros. Tenho o tempo que me resta e o que se foi, e uma vida que não sei como gerir. Tenho dentro de mim um mundo de emoções que o mundo não quer ouvir. Tenho-te a ti tão longe… Tão longe que não sei sequer se ainda me ouves… Tão longe que mesmo estando perto não me sabes mais ouvir.

Feliz dia dos namorados. Hoje tenho tempo que chegue para o dizer sem o sentir.


Virginia Machado

domingo, 13 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Mergulho e regresso

Há uns anos atrás, iniciava eu um novo capítulo da minha vida. Um novo desafio que levou a cruzar-me com alguém muito mais experiente. Um verdadeiro “senhor do métier”. Deste encontro, para além de uma enorme admiração com que lhe fiquei, restou aquilo que considero um valioso conselho – “O óptimo é inimigo do bom”. Era dirigido à área profissional em que nos movíamos, ele com muita experiência, eu, uma novata. Mas a verdade é que estas palavras têm-me sido úteis em todas as áreas da minha vida. Realmente, quando temos um espírito perfeccionista e exigente, obrigamo-nos por vezes a ultrapassar os nossos próprios limites, muitas vezes colocando em risco o suporte mais básico de tudo o que fazemos – a própria pessoa que o faz.
O que nos induz a ultrapassar estes mesmos limites é a visão, é sabermos que a dor física e psicológica que nos infligimos, em prol da qualidade de um evento, de um momento ou de um ideal, tem os dias contados, é passageira, por isso, obrigamo-nos a ir além… só mais um bocadinho… e nesse processo por vezes distraímo-nos colocando tudo em causa. É um pouco o que se passa com quem faz mergulho em apneia. Todos os anos, à custa de treino, os mergulhadores vão mais fundo no oceano, coleccionando metros – há quem consiga atingir os 70 metros de profundidade em apneia – um verdadeiro feito. Mas quem o faz reconhece que o grande risco é, um dia, o mergulho ser tão profundo que não permita o regresso. Assim é também com as nossas vidas. Há vários tipos de mergulhos: mergulho na apatia, no egoísmo, no prazer, no trabalho, na loucura, na mediocridade, no egocentrismo, no amor, no altruísmo… Cada um sabe de si. Independentemente das tendências de cada um, que fique este sábio conselho – O óptimo é inimigo do bom – não mergulhar para além da capacidade de regressar….


Lucinda Gray

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


abraço chave-na-mão

Quando te apetecer morar no meu abraço, estarei à porta a sorrir. Para que todos me saibam casa. Para que os insectos me queiram para morar, insectos fecundantes nos interstícios da pedra que há-de crescer-nos em castelo. Para que o húmus ouse beijar-nos demoradamente os alicerces. Haja então um telhado imperscrutável que proteja o mundo da nossa terrífica felicidade. E um poço sem fundo com pescoço saciado de uma altivez redonda. Serei assim, meu amor — nada mais me hipoteca.


Bill enGates

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011


Máquinas e homens

Como é possível uma máquina devorar um homem? Levar-lhe os dedos, ou um braço? Esmagá-lo, até? E depois dele, vir outro homem e  continuar, como se nada fosse (com pensamentos de mais cuidado e respeito pela máquina). Há máquinas que só param quando bem entendem. Entretanto, estão só à espera de uma breve desatenção, um deslize de nada. É do que precisam.
Quando penso no amor que é obsessivo e sem fim, penso logo nas máquinas e nos homens. Na repetição. Nos movimentos repetidos e obstinados, (que é de onde nascem os resultados. Alegrias). 


Iolanda Bárria

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011


Armas de destruição passiva

O desejo invadia-lhe os sentidos sem vestígios de sensatez. Nunca se tinha habituado a ser sensato. Cloroformizar as suas pulsões e recalcar os sonhos nunca tinha sido uma opção. Assustava-se com os possíveis impactos das limitações conscientes quando a sua natureza era flutuante e maleável. Sentia uma coleira a reprimir-lhe os impulsos, espartilho insensato das emoções e uma tensão cortante acumulava-se por dentro. Não sabia amestrar as palavras que lhe queimavam nos dedos e sufocavam na garganta. Nunca tinha sequer sentido a necessidade de manejar habilmente o chicote interior para serenar o furor. Não sabia ser passivo. Apenas passional. A passividade, essa coisa neutra, para ele sempre fora a forma mais agressiva de destruição massiva. De destruição passiva.


Bruno Vilão

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Palavras Versadas



Uma Fénix de Peles

Na ânsia o limite o azul
do corpo cortado pela luz
criadora a sombra

os fantasmas
que o habitam voluptuosa
e despoduradamente

no rodopio do tronco
embalado pelas formas

na pose dolorosa
da espera impaciente

no saber do sabor do látego
batido certo e lânguido

no corpo azul

despojado da calidez
das peles
com que se debate
ao renascer


Joshua M.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Provocatio


How did we get here?

Estranha forma esta de vivermos o presente como consequência do passado, quando na nossa ilusão do tempo dizemos precisamente o contrário – é o presente que cede espaço à memória.


DuArte

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Encontrei a normalidade no absurdo

Voltei após uns dias de retiro junto às origens. Recomeça tudo amanhã excepto eu. Não voltei de férias. Vou continuar. Até quando não sei. Terei de cumprir algumas inevitabilidades mas espero poder escapar-me à grande maioria das rotinas que esperam atribuir-me. Há muito que procuro encontrar formas de acordar refeita dos muitos dias em que suportei o que não me apetecia e liberta dos elos que me tolhem os movimentos. Quero não ter laços nem raízes nem destinos. Quero sobretudo não ter explicar a quem nada entende que "cada pessoa constitui uma determinada intensidade de existência que adquire formas diferentes em momentos concretos, uma multiplicidade contraditória", como diz a minha escritora favorita do momento.


Carmo Miranda Machado

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011


A linha da discórdia

Um homem estava só por estar, estando, sem mais nada que fazer. Tinha uma vara na mão e riscou no chão uma linha. Mas, sendo a terra demasiado dura em determinado ponto por onde passou o seu traço, a linha desfigurou-se e pareceu ter sido apagada. Pondo-se a mirar a sua linha o homem notou que ela, no seu início, era nítida e marcante; depois, aparecia entrecortada; e no final, ostentava um sulco de um riscar mais cansado, mais ténue.

            ___________            ____________


Passando alguém pelo lugar onde estava o homem e a linha – a linha interrompida – deteve-se a mirar, a contemplar a obra do homem. E após um exame sumário o visitante exclamou:
"- Gosto muito da tua primeira linha, gosto mais do que da segunda. É mais cheia, mais vigorosa. É uma verdadeira linha, sem desvios..." Nesse momento o homem atalhou o visitante e disse-lhe: "Espera, tudo isto é só uma linha, ainda que não se veja claramente. É tudo a mesma linha, mesmo que mais óbvia e escorreita no início, só desaparece por um lapso devido à dureza do terreno em que a tracei. Repara que mais à frente lá está ela de novo, ainda que mais esbatida. Contudo é sempre a mesma linha, uma única linha, com intensidades diferentes."
Porém, a dúvida assombrou a fronte do visitante que, fixando os olhos esbugalhados na linha, lhe contestou: "- Não, ela poderá vir a ser uma linha, mas terás de lhe acrescentar uma terceira linha, que una as duas primeiras. Só assim a tua linha será uma verdadeira linha, uma linha contínua, ainda que feita com tracejados distintos." Assim fez o Homem logo de seguida: pegou na vara que segurava e riscou com vigor redobrado o espaço entre as duas linhas patentes.

            ___________ ______________ ____________


Supreendido com a súbita atitude do homem, o visitante, enquanto examinava muito atento "a obra", armou um ar de dúvida e rematou: "- Agora sim, é uma linha real e contínua, ainda que constituida por três partes. De qualquer forma, gosto mais da tua primeira linha - é ela a marca que marca o destino das outras duas."
O homem por seu lado estava ufano, não cabia em si de alegria e regozijo: acabava de traçar os limites do seu território. Era enfim um proprietário.


Joshua M.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011


Seria Genebra?

Cruzei-me com  Genebra, Domingo, nos degraus da escadaria íngreme que vai dar à entrada principal do Grand Théâtre. Quer dizer, acho que a vi acenar e sorrir, mas não sei ao certo.  É possível assegurar que me pareceu tê-la visto, mas posso não a ter visto. Estava demasiado longe...
Não a cumprimentei.
Conheci Genebra no fim do Inverno de 2007. - "Uma grande amiga", disse-me Marselha, quando nos apresentou. Simpática. Gentil. E foi tudo. Retribui o sorriso franco de Genebra e naquele instante pensei o que sempre penso quando acabo de conhecer alguém: vamos ter de nos cumprimentar para o resto dos nossos dias. Mesmo ao longe, do outro lado da rua, bastará que os nossos olhares se cruzem por um ínfimo segundo.  Recordava isto, enquanto subia a escadaria do Grand Théâtre e me pareceu avistar Genebra, lá ao longe.
Espero sinceramente que Genebra não se tenha aborrecido! Ela é encantadora. E isto passa-me!
Seria Genebra?
 
 
Iolanda Bárria

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011


Filme ortográfico

Aprecio filmes ortográficos. Admito. Sem pudor. Com substantivos femininos e sujeitos masculinos, de preferência plurais. De preferência com maiúsculas. Deleita-me ver as palavras a escorrer, as inflexões de ritmo, as intertextualidades pendentes. É como uma dança erótica de letras, de preposições, de adjectivos que assumem posições e que se entranham na minha pele. Perco-me pelas aliterações, nas pontuações, sem reticências. Envolvo-me na cadência coordenada que pauta a musicalidade fonética. E limito-me a olhar, para pontuar o prazer.


Bruno Vilão

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Palavras Versadas


Regresso

O silêncio avançava
sereno como a lua
um homem o escutava

O silêncio avançava
sereno como tempo
o mundo todo se calava

O silêncio prosseguia
e como num pressentimento
deus em desespero fugia

Mas o silêncio sabia
na sua sabedoria sábia
do Limite que se abria


João Belo