sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A PALAVRA AOS NOSSOS CONVIDADOS (III)


Fugidos do medo

Nesse dia fui mais uma vez visitar os meus avós, eles vivem numa daquelas regiões comunitárias conhecida pela “Comunidade do Pensamento”. Gosto de ir àquele sítio, é um ambiente diferente do que estou acostumado. As pessoas, de singela aparência, vivem um dia-a-dia calmo, entre os afazeres agrícolas e uma regular vivência cultural. Isolados deste mundo que foi imposto na maioria das comunidades, rodeados do essencial para sobreviver com alguma dignidade, não abdicam de pensar livremente. Nessa tarde, e porque o meu avô achou que estava no momento certo para ver a Torre de Babel, assim se chamava a sua secreta biblioteca, lá fomos os dois direitos ao momento há muito esperado. Entrámos num edifício discreto e dirigimo-nos a um dos cantos, onde existia um alçapão cuja escada nos guiava a uma enorme cave repleta de informação: livros, dvd’s, cd’s, todo o espólio que eles haviam salvo dos “autos de fé” levados a cabo pela “Comunidade Capital”. Há mais de cem anos que todo o material tinha aposta uma chancela: “Visado Pela Censura” – a imagem mais visível da DCI (Direcção do Controlo Intelectual). Entendeu o governo que aqueles conteúdos podiam ameaçar a estabilidade social e política. De alguns autores era até proibido mencionar o nome.

Sabia que o meu avô e os seus amigos dedicavam os seus momentos de lazer ao debate cultural e político, mas hoje percebi por que razão se tinham refugiado aqui, eram eles os censurados, tinham tido a ousadia de pensar de maneira diferente e de publicar as suas ideias. Ostracizados por esta nova ordem mundial, sancionados intelectual e socialmente, resistem mantendo a esperança de que um dia volte a liberdade de expressão a todas as comunidades. A história da humanidade já tinha provado que a opressão fora muitas vezes uma alavanca para a produção cultural, subtilmente muitos autores tinham conseguido ludibriar os censores. Por tudo isto, muitos preferiam constituir um “mundo” aparte, gozando de uma liberdade que, apesar de condicionada, lhes permitia o espaço suficiente para sobreviver enquanto homens racionais. Num ambiente de tertúlia um deles declamava. E assim, neste ano de 2122, soava a nostalgia dos velhos contemporâneos do século XX, num poema do Alexandre O’Neill. “...O medo vai ter tudo/ quase tudo/ e cada um por seu caminho/ havemos todos de chegar/ quase todos/ a ratos.”.
 
 
M. Jota

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