quarta-feira, 19 de janeiro de 2011


Noves fora, hoje - a extensão do poder da infância

Enquanto crianças, escalamos montanhas, visitamos a lua, construímos casas em Marte, somos imperadores de um universo povoado por seres belos, recheado de muitos chocolates e outras iguarias. Salvamos o mundo, incluindo todos os seres que amamos. No nosso íntimo, todos guardamos recordações felizes da nossa infância. Isto, por que enquanto crianças, quando nos sentimos felizes, sentimo-lo plenamente. O futuro aparece-nos como algo distante e improvável, algo que não é importante, o que importa é o aqui e o agora e a intensidade como vivemos esse presente é total. Guardamos então nesse “baú” maioritariamente as coisas boas - os cheiros e sabores, as cores que dominavam o nosso dia a dia, a temperatura das águas em que nos banhávamos, os carinhos, as tropelias, os desafios.
Contudo, nesse mesmo baú, mas bem mais fundo, encontram-se as coisas menos boas que escolhemos esquecer e que marcaram profundamente o nosso desempenho durante toda a adolescência e vida futura, até o desenterrarmos, percebermos e perdoarmos. Refiro-me obviamente àqueles que tiveram uma infância “comum”. Não são poucos os menos afortunados que nem sequer tiveram hipótese de enterrar as coisas menos boas num baú, dada a violência dos acontecimentos dominantes da sua infância que se impõem na memória diária, ou no registo das suas (re)acções presentes (sim, provavelmente aquele homem que o assaltou há duas semanas…)
Seja lá como for, percebo que a chave do nosso presente, do nosso futuro, do nosso desempenho, se encontra na nossa infância e, normalmente, no fundo desse romântico baú. É na infância que começamos a lidar com o “outro”, sendo que o “outro” representa invariavelmente a sociedade, quer o “outro” sejam os nossos pais, irmãos ou colegas de escola. O “outro” é sempre “outro” que não nós. É impossível, mesmo numa infância feliz, a inexistência da imperfeição. Somos seres humanos, consequentemente, seres imperfeitos. Essa imperfeição com que tivemos invariavelmente de lidar não deve ser relevada, pois é, será sempre, o factor que determinou o elo mais fraco da fortaleza que hoje assumimos ser e que construímos, tijolo a tijolo, em torno da nossa fragilidade.
Hoje, enquanto adultos, vestimo-nos de fatos e desempenhos, enquanto, se calhar deveríamos continuar a desejar escalar montanhas, povoar Marte, salvar o universo e todas as pessoas que amamos. Deveríamos conseguir recuperar a intensidade com que vivemos o aqui e o agora, porque o amanhã - vejamo-lo com olhos de ver - não existe realmente, continua a ser apenas uma possibilidade. O passado, também já não é… “noves fora”, resta-nos o hoje. A âncora possível deste barco de carne e osso reside na infância. Há que levantá-la, para se poder navegar.


Lucinda Gray

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