quarta-feira, 30 de junho de 2010


O Padeiro Anarquista

Sem mais nem menos, a casa despejou-o na rua, a correr. Estava atrasado, de facto. Correu muito e depressa; tal como quem precisa de correr muito — por ter pressa, naturalmente. O boné queria desertar, que estas modernices das velocidades não lhe agradavam. Não fora, enfim, a vetusta e assaz limitadora idade do homem, que o impedia de correr tanto e com tanta pressa como se impunha face à pressa que tinha, e o infiel boné teria mesmo ficado para trás, refastelado no chão, a ressonar como uma ignóbil cartola fanfarrona.
O homem corria, o boné resmungava. De repente, o homem parou. O boné silenciou-se, expectante, perscrutando indícios de convergência na sua pretensão de preguiça. “Grande merda! Esqueci-me do pão. Trouxe o saco vazio. Há que voltar para trás”. Agora movia-se ainda mais veloz, porque tinha ainda mais pressa. Afinal, será que um padeiro que se esquece do pão é um padeiro que se preze? — indagou-se. E enquanto cozia estes modestos pensamentos, a viagem fez-se, mas não em tão pouco tempo como ele gostaria, dada a pressa que tinha.
Discutiu e praguejou mundanices, mas por fim a casa lá deu a porta a torcer e cedeu, deixando-se uma vez mais inocular pela chave, pobre rapariga, conspurcada e infectada de cada vez que saía à rua. Sem desperdiçar tempo, avançou presto para a casinha do forno com a intenção de, em escassos segundos, pegar no pão, pô-lo no saco e voltar a sair porta fora.
“Grande merda! Mas onde é que eu o pus?!?”. Na verdade, não sabia, e havia razões para não saber: depressa se lembrou — porque tinha muita pressa, cada vez mais, esclareça-se — que não tinha feito pão. E o céu estava há momentos em trabalho de parto, já se viam os primeiros cabelos do Sol. Nascia rapidamente. Mas sem pressa, que o Sol nunca tinha pressa de manhã.
O pobre padeiro, a correr, com muita, muita pressa, juntou os ingredientes no bom-velho alguidar de barro; amassou-os; deixou-os levedar depressa, porque tinha tanta pressa, tanta pressa, e não queria que faltasse um pão sequer nas mesas da aldeia. Que era para isso que ele ali estava, há tanto tempo, na aldeia. “Grande merda! Ainda não acendi o forno. Já devia estar quente e ainda nem cá estão as vides. Bem verdade é que quanto mais depressa mais devagar”. Mas o forno lá se acendeu, ainda estremunhado, e o seu secretário, o fogo, lá começou a escrever à máquina sobre molhos de vides e magros pedaços de madeira. Enquanto dactilografava, apareceram os primeiros candidatos para a entrevista de emprego, ansiosos por virem a preencher a vaga aberta para o lugar de pão. Simples porções de massa amalgamada envoltas em farinha, os moçoilos de tez pálida lá iam ganhando coragem ante o seu interlocutor, majestoso fogo, que os inquiria, minucioso, severo, em cada milímetro. Por fim, abrindo os braços, algo paternal, lá os deixava sair, alimentando esperanças de que tinham boas possibilidades de serem aceites e que aguardassem por um contacto nos próximos tempos.
O homem despejava os pães para o saco, ainda a escaldar de excitação, num ápice. Que estava desesperado com tanta pressa e a manhã já ia quase a meio. Reunira, finalmente, tantos pães quantos precisava, mais coisa menos coisa. Abriu a porta, com pressa, que estava quase a sucumbir a tanta pressa.
Nessa altura, contudo, apercebeu-se de algo estranho: o melancólico sino da aldeia entoava badaladas repetidas, chamando o povo para a missa. “Grande merda! Pois claro! Que grande burro que sou! Hoje é Domingo, porra!”. Ontem fora sábado, amanhã talvez segunda-feira. E eis pão de hoje. Feito a correr, mas não à pressa, apesar da enorme pressa que o padeiro teve. Teve, que agora já não a tinha. Acabou. Já não tinha mais pressa. Voltou para o forno, deixou-se adormecer. Despertou a meio da tarde. Para não deixar passar a folga em branco abriu uma garrafa de vinho especial. E fez uma açorda.

Bill Engates

terça-feira, 29 de junho de 2010

Palavras Versadas


(TUDO É COMUM NESTE LUGAR)

A noite pertence-me por inteiro
Comento interiormente a solidão
a forma de elaborar o poema
os mecanismos refinados da inspiração
e quando chego aqui penso
no poema que me foi encomendado
pelo espírito santo para amanhã
e que ainda está por elaborar
Eis-me pulando no quarto
em busca duma folha branca
e a esferográfica recusando-se
a escrever e já não estou
no quarto mas num bar com um grupo
de amigos divertindo-se e eu angustiado
com o poema que não vem
Neste momento o espirito santo
está prestes a chegar ao purgatório
numa viagem de transistor
E as palavras brincam umas com as outras
dançam bebem riem sempre fugindo de mim
Eis que uma mulher me chama para dançar
me oferece uma cerveja se deita comigo
na cama e me sussurra num beijo
“os poemas são todos iguais”


João Belo

domingo, 27 de junho de 2010

Provocatio


Objectiva Fiel

Descobriu a sua verdadeira orientação quando tirou a primeira foto a preto e branco a uma amiga colorida...


K. Tan

sábado, 26 de junho de 2010


Em seu nome recuso

Aqui já não há razão, tão pouco rima. Em seu nome, recuso continuar a defender-me. Nunca foi preciso. Para quê explicar-me? Explicá-lo? Sou transparente, assim nublada. Finalmente encarnei verbalmente o Inverno, tão necessário à Primavera. Desejo inteligência para encarnar, conscientemente, essa dinâmica. A da morte e vida. A vida em morte e a morte em vida, eterno namoro. Essa repulsa, esse medo.
Voar que nem folha de Outono por essa dinâmica cósmica. Borboleta fora do tempo. Fútil? Louca? Desadequada? Por que não? Mas também… por que sim?
Por que chão vos tendes tão seguros se o próprio mundo onde esse chão que vos segura flutua no espaço e gravita em torno de uma estrela? Repito. Em torno de uma estrela. Moribunda, dizem. Pudera! As estrelas são como as fadas… É preciso acreditar.
Que chão é esse que vos sustém, e vossas regras, de forma tão impiedosa, tão implacável? Estarão assim tão seguros do certo e do errado?! Ou essa segurança é equivalente à firmeza desse mesmo chão? Esse, o flutuante no espaço negro de um universo em expansão?
Já ninguém mata ninguém com cicuta. Fomos vetados a insectos do espaço! Esqueletos vaidosos! Tolos.
Ah! Tomara a inteligência de uma rã, que ao coaxar me embala, me adormece. Aceito a dádiva com gratidão de irmã. Sei que faz ela mais por mim do que muitas mães por seus filhos.
Vivo na Lua, dizem-me aqueles que me amam. Uns desejando que lá me mantenha, pela salvação de suas almas, outros desejando que desça à sua terra, ao seu chão, para que sobreviva.
 
Lucinda Gray

sexta-feira, 25 de junho de 2010


Para Lucinda Gray


Psico-Portrait (ou o que ela teria dito se houvesse escrito este texto)

Naquela casa branca da lagoa respirava sempre o ar que era o meu. Respirava sempre oprimida contra o mundo, sempre contra tudo – contra esta lagoa, contra esta ilha, contra este mar, contra mim mesma. Sempre eu, contra toda a corrente: água e terra e fogo, todos contra todos. Sempre eu, a sós comigo, a ter de vencer muros e marés, estendendo o olhar para além dos prados limitados, quadrados verdes vivos com muros negros, num horizonte de verde manchado, sem fundo nem distância. O longe e a distância restam prenhes de significados quando o nosso horizonte se abate sempre sobre a mesma linha do mar em todas as direcções, num dia os barcos vão, num outro voltam, sempre um ponto que cresce ou mingua, lá ao fundo na paisagem.
Estava só, quase só, apenas eu entre mim e eu, estabelecendo ténues teias de contacto com o mundo: soprando um insecto, tocando uma flor, pisando as ervas, uma palavra ou duas aos que vivem comigo. A solidão mede-se pela capacidade de sairmos de nós, de nos envolvermos com o mundo, sem que ele se envolva connosco em identidades obscuras.
Por isso, In ilo tempore preferia estar só. Não se trata de resolver aqui, se gosto ou não gosto de estar só, já expressei por escrito, aliás, a minha preferência por estar só. Não me quero contradizer, mas já vos disse também que estar só não é obrigatoriamente só. Comigo viviam fantasmas ciclopes, monstros inimagináveis que transportava para todo o lado, numa sacola de estudante que trazia breve a tiracolo.
Comigo vivia eu e um mundo lá fora, onde tinha de ir comprar barato o conforto enganador de um mero cigarro, mover-me sem falar, dizer apenas a audácia de uma única palavra com um único objectivo, ou apenas um gesto estereotipado e cumplíce de dois dedos esticados com as polpas sobre os lábios. Nesse momento uma das minhas asas de solidão roçava delicadamente no topo mundo, que rodava à velocidade da minha impaciência – uns dias turbilhão, outros dias roda de mó lenta a arrastar o grão. Comigo viviam marés mansas e vagas tão poderosas, imagens tão fortes, que eram temidas pelos homens e pelas baleias, que fogem até ao fundo do mar para se acoitarem das tempestades e dos homens.
Quando abria a janela da minha alma, a rua estava fria como as casas por fora, sempre com o céu a desabar estilicídios contínuos sobre as cabeças torturadas. O mundo era uma cela fechada, vista de fora para dentro, um pequeno compartimento acanhado visto da imensidão do meu recolhimento. O mundo ia mudando de cada vez que abria a janela e o ontem nunca era igual ao amanhã. O mundo ia ficando cada vez maior. O tempo estava cada vez mais largo. Sabia que ainda não podia sair de mim e entrar naquele mundo, tinha de esperar para crescer e deixar crescer o tamanho do mundo.
Estava quase a chegar a primavera, digo isto pelas contas do tempo, porque o sol não chegara ainda para temperar os dias. Às vezes, quando sufocava ali fora fechada e isolada do interior do mundo, sentia ganas de voar, de abrir a janela mais alta de todas a quimeras que construí e saltar desamparada sobre o mundo. Este pensamento perseguiu-me durante todos os sonhos, passou a visitar-me na realidade de todos os dias, depois tomou o tempo de todas horas, tornou-se cada vez mais presente no meu mundo, até que tomou completamente conta de mim.

“Um dia, enchi o peito de ar, cobri-me com um xaile e sai para a rua. Quem me poderia impedir?”
L.G.


Joshua M.

quinta-feira, 24 de junho de 2010


sinais

Sincronismo, destino, acasos que não são coincidências... Os livros e os gurus da viragem espiritual do mundo ao alto desdobram-se em explicações e relatos do quotidiano que nos sugerem uma ordem das coisas. As palavras progressivamente vêm significando que tudo pode ter uma explicação, aquela que poderá residir num Universo pré-programado apesar do caos em que co-existimos. No meio de tudo ficam os Eu's. Nós. Imersos num mundo que comunica desde que nos levantamos até que adormecemos (com o bónus de sonhos para quem abre a porta ao subconsciente), munidos desse livre arbítrio que nos lixa o juízo (a mim pelo menos lixa). Ultimamente, sinto que vivo numa espécie de teoria da conspiração, um consórcio de sinais e alertas que bombardeiam as minhas convicções e as minhas decisões (algumas adiadas há muito tempo), no cinema, na página de um livro que abro ao acaso (?), num telefonema, num encontro casual (?), na experiência de um amigo, na rua, nas lojas... Quase enlouqueço entre o riso e a expectativa que me provocam. Mas quando os sinais assentam no meu ombro, fica um resíduo de solidão. Sou incapaz de os sacudir, mas também não sei que lhes faça.
 
Ana Santiago

quarta-feira, 23 de junho de 2010


sem-abrigo

Ter frio. Ter frio de tanta fome que sinto. Julgava que os sentidos não se ligavam assim, a fome levar ao frio, a sede levar à cegueira, a falta levar ao medo. Pensei... será? “Pensei será?” vezes a mais. Pensei de mais. Hoje estou sem estórias para contar. Costumavam sentar-se crianças à minha volta, ávidas de sonhos, não se importando com a chuva, não se importando com o frio, nem mesmo se importando com a fome. Olhava-las bem dentro dos olhos, bem fundo na alma, e lia-lhes as fantasias que assaltam o sono, lia-lhes a vontade de saltar de arco-íris em arco-íris, a textura do algodão doce, a forma frágil de que é feito o onirismo infantil. No tempo dos fantoches, dos carros de marionetas pelas ruas, de palhaços moldando balões, de risos em feiras, de pipocas coloridas. Nos meus tempos de circo. Nos meus tempos de jovem. Nos meus tempos sem frio.
Vasculho qualquer coisa no lixo. Apercebo-me disso porque um pedaço de lata corta-me a ponta do dedo, de outra forma nem me lembraria. É já tão automático ser vagabundo que nem reparo bem no que faço. Encontrei uma manta, meio rota e encardida, insuficiente para afastar o frio polar que se instala em estalagmites de orvalho, mas que terá de servir. Às vezes pergunto-me como seriam os tempos que passava os serões à lareira, em casa da minha avó, nessa época em que os sonhos saltitantes ainda eram meus também. Já não me lembro. E juro que me parece que falo de outra pessoa, um outro gaiato a quem lia os sonhos, a criança que nunca fui.
Encontro um cartão rugoso pelo chão e por momentos quase me sinto feliz. Curiosa a simplicidade da alegria de quem nada tem. Acho que envelheci, acho que foi por isso que aqui vim parar. Acho que as crianças de hoje deixaram de sonhar, saem do ventre materno logo com 15 anos, reguilas e malévolas. Acho que é por isso que secaram as minhas fábulas e contos, que os reis do Oriente por lá ficam e as princesas adormecidas não mais são despertadas. Acho até que é por isso que já sei o que significa sentir os ossos gelar, sentir a pele encarquilhar de frio, sentir o tremor de um medo de fim. Acho que é por isso que não sei mais o que é ter amigos, o que é ter família, o que é uma casa com lareira e risos estridentes de criança. Acho que é por isso que o meu circo partiu para outras bandas. Acho que é por isso que não queriam tantos contadores de estórias. Acho que não queriam velhos, e não tiveram coragem de o dizer. E como censurá-los? Já não há crianças para ouvir os velhos, já não há sonhos que se renovam de geração em geração, ensinamentos que a idade traz e acendem labaredas de curiosidade nas almas naive dos rebentos de uma nova era.
Pego no meu cartão e na minha manta, encontro um canto qualquer de pedras sozinhas onde ninguém saiba o meu nome, deito o corpo cansado de frio e sonho. Sonho como a criança que fui. A última criança num mundo de velhos em corpo jovem.
 
Virginia Machado

terça-feira, 22 de junho de 2010

Palavras Versadas


CLUSTER

e na luz inadequada se move o teu corpo como
algo por dizer,
projectante sem confundir o interior da mão
com um rosto que baixou ao subsolo do silêncio.
e imaginarás algo.
e pegarás no teu ponto. na tua vírgula.
gritarás um verso sem que as palavras individuais
o notem, o oiçam a perfurar o seu
próprio verbo.
e arremessando esse ponto, e essa vírgula, ambos
em direcção ao céu introspectivo e especulativo
das cores que lhe concretizam a profundidade, ganharás
tempo; tempo para que o verso se espalhe a partir
do seu gomo infindável,
contamine o eco difuso da mão de vidro, guarde
o bom-senso de um revólver que espera atento
a morte que falta a um corpo.
e não tarda regressarão caindo com a mesma força
que aquela que usaste para cima: o teu ponto magnífico,
a tua vírgula com material e forma de lupa,
como pregos por cima do teu verso com
formato de raio e cuidado, com laringe de flecha e erro,
com lisonjeio sobre o tempo invertebrado.
quando caírem sobre ti, sobre o teu regresso íntimo,
saberás por onde continuar, e sobretudo: onde parar.

Sylvia Beirute

domingo, 20 de junho de 2010

Provocatio


a porta

Desenho-a sempre que quero sentir-te. Encosto a minha cabeça e oiço-te respirar do outro lado. Não a abro. Não a devo abrir. Quando quiseres entrar pega num giz ou num lápis de carvão e desenha-a com as dobradiças a rangerem junto às minhas.

A.S.

sábado, 19 de junho de 2010

Crónica Benzodiazepina


A Força Do Sorriso

Há momentos em que a vida nos veste com uma roupagem que não é nossa. Veste-nos com circunstâncias onde não nos revemos por um só segundo. Com um vestido em crochet, urdido por uma tia afastada, com quem não simpatizamos e cuja escolha cromática abominamos, mas que, por sermos pequenos, somos obrigados a vestir. Ninguém sabe que sentimos cada volta daquela agulha sobre a nossa pele, que sentimos o efeito nefasto de cada cor escolhida no diafragma dos nossos olhos, mas… é essa a tela que nos cobre o corpo. Olhamos para o espelho e o que persiste é aquilo que nós sabemos ser e não a forma como parecemos. Olhamos para a vida, certos de que somos quem somos, independentemente de como somos obrigados a agir, ou a não agir, que é igualmente uma acção.
Nestas alturas, muito depende da certeza de quem somos. Do quanto estamos certos de estarmos certos e da nossa capacidade de estarmos certos disso mesmo!
Marguerite Yourcenar escreveu “a morte, para me matar, vai ter que ter a minha cumplicidade”. Pois acredito que a vida, para nos quebrar, tem que contar com a nossa cumplicidade. Mesmo quando as coisas não nos correm de feição, enquanto conseguirmos manter um sorriso, estamos a ganhar. Estamos a sorrir com a noção que o tempo sara tudo (ou quase tudo). Sorrimos, porque não permitimos que o negro que cobre o céu ou o corpo, nos apague a certeza do sol que se esconde por detrás desse manto ou da energia que se acumula no nosso interior.
Alguns, talvez distraídos, ou pouco experientes em matéria de dor, poderão pensar que um sorriso, em certas circunstâncias, será uma demonstração de inconsciência. Eu interpreto-o como uma demonstração de força.
Tenho vislumbrado, esse sorriso, em muitos rostos marcados.
Em frente à minha casa há um discreto jardim público aberto vinte e quatro horas. É um jardim muito bonito, pouco visitado. Ao anoitecer, da minha janela, vejo os sem abrigo a chegarem, para lá pernoitarem. Vêm um a um. Chegam silenciosos, caminhando devagar, sem stress. Também eles, discretamente. Muito raramente falam entre si. Mas, por várias vezes, já os vi sorrir.
 
Lucinda Gray

sexta-feira, 18 de junho de 2010

HOMENAGEM A JOSÉ SARAMAGO


O CENTAURO


Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campanula nocturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.


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O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela primeira vez em milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em que regressara à terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria? O cavalo, mais longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando agitava as patas traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não tinha cérebro, ou somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram. Deitando a mão a uma pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o tronco, e, como se estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem esforço, num movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu para a noite.
Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era que não podia ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa e fantasmal, mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites onde outros sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O centauro respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se passasse pelo filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi molhada e agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que seguram o mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso, jogando harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus dois braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma aresta viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como se a viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante havia um rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação maior, aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto, seguido pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente pelos campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas. Entre a faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O cavalo, sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para o rio. Entrou cautelosamente na água, tenteando com os cascos. A profundidade foi aumentando, até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que era outro rio correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os braços erguidos, braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas. Pelo interior da água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar, nadavam em redor dele e mordiscavam-lhe as pernas.
Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o cavalo, e o centauro subiu para a margem. Passou por baixo dumas árvores e no limiar da planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham perseguido do outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos homens aos gritos, e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria preferido caminhar debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse recolher os cães e afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a gente naqueles arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto a notícia tinha passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia atravessar o campo em linha recta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao longo do rio, sob a protecção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno lhe fosse mais favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre duas altas colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os olhos e revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul.
Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à escuta. O rumor repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva rasteira, os passos do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre a múltipla e tépida crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e olhou para o rio. Na margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os ramos. E viu uma mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o luar, branca. Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim, neste rio, com esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas ao andar, o ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos caindo para as costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas a parte que lhe cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que satisfaria o cavalo, talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou, que viu a mulher aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos, correu para ela no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela gritava, a levantou nos braços.
Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de anos. Acto inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si a loucura, se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira mulher que nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia que mais adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela, mulher inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as árvores, e adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas soluçava e tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva, o centauro foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores escondiam. Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher contra o peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo de homem se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram, outras atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a galope pelo campo fora, na direcção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos. Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então, segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas:
— Não me queiras mal.
Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu. Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender:
— Tu és um centauro. Tu existes.
Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As patas do cavalo tremiam. Então a mulher deitou-se e disse:
— Cobre-me.
O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente. Durante um momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o centauro afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava, cerrando os punhos na direcção do céu e da lua. Quando os perseguidores se aproximaram enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada numa manta, os homens que a transportavam ouviram-na chorar.
Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava os caminhos mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou, mesmo, sob o luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os montes. Toda a noite o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol nasceu estava no alto duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar apenas, nenhuma ilha, e o som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater da onda, não o perfume angustioso do sal. O mundo parecia um deserto suspenso da palavra povoadora.
Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então, num arco de círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande alarido, mas sem poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e laços e varas. O cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e voltou-se, frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos, atrás, em frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se ansiosas à procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou, caiu no vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva, de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.


Excerto do Conto "O Centauro", de José Saramago, In Objecto Quase

O Vulto

De repente, um vulto entra. Pára a um canto na sombra. A luz da taberna, debilitada, não me deixa ver-lhe mais do que as costas largas, deduzo-lhe a magreza e o ar sombrio que desponta pelo perfil fugidio. Senta-se, silencioso e misterioso. Ao virar-se para o empregado, algo me prende o olhar naquela figura. Aquele rosto, o seu ar sinistro evocam-me uma noite que não esqueço. O copo de água ainda espera por mim e um garoto amarelecido atrás do balcão, por sua vez, observa-me. Nada me abstrai do vulto. Continua a imiscuir-se a sua imagem na minha memória até que as linhas finas e desenhadas do seu rosto se matizam numa outra imagem que se define aos poucos. Sim, foi ele. Foi este homem que, naquela noite de há treze anos, me surpreendeu com um pequeno papel. Nele estava escrita a combinação de números da Lotaria seguinte.


Berenice Greco

quinta-feira, 17 de junho de 2010


All we need is love


Estar consciente não coexiste com o fazer de atento. Fazer de consciente é fazer de conta. O estado de alerta aparece quando te afastas e só se mantém, se te manténs afastado. Quando começas a esticar os braços para fora do sono de séculos, deixas de ver o universo como definitivo e relacionas-te com ele apenas como testemunha. A vida passa a ser um filme com um único protagonista, onde todos os outros são figurantes e o universo é apenas o cenário de fundo. Falcão ou anjo ou espírito santo, se despes a tua verdadeira identidade, a vida engole-te, cais em todos os riscos inerentes à condição de crente na matéria. Apaixonas-te pela penosa vida lá fora. E porquê? Porque és maravilhoso a realizar. É maravilhosa a tua obra. Mesmo que ensombrada pela morte, pela dor e pelo ódio, a tua virtude é tão incomensurável que as pedras soltas da escultura se assemelham a obras primas.


DuArte

quarta-feira, 16 de junho de 2010



Metrónomo

É no silêncio que elas vêm. As sombras aracnídeas que se escondem na orla da visão. Os pensamentos negros e gelados. O vazio absoluto do não ser.
O ruído afasta o abismo. Quanto mais fútil e oco melhor. Veneno entorpecedor que me mantém preso a este sonho e me impede de acordar gritando, ofegando.
Durmo pois numa cama de teia de aranha, de seda pegajosa que me embala e me prende, que me sustenta e me sufoca até que de mim nada reste.
Mas nem todo o som é fútil e nem todas as notas vãs... o segredo está no que fazemos com elas.

Jonathan Strange

terça-feira, 15 de junho de 2010

Palavras Versadas


Tão cegos como nós

Entre os laços que visto e dispo
vai minha a vida         ela inteira
E em cada acto           cego e ledo
por ela insisto          nesta cegueira
em nos atar              seres desatados
numa vida vivida         entre nós


Joshua Magellan

domingo, 13 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO - Provocatio IV


Cobranças a Meio da Tarde

Ela: Olá.
Ele: Olá princesa. Tudo bem?
Ela: Tudo tranquilo.
Ele: Diz lá minha querida... que posso fazer por ti?
Ela: Hummm... Tens tempo agora? Estás em casa?
Ele: Sim, estou!
Ela: Ok... Podes abrir a porta?

E lá vai ele saltitante, esperançoso e excitado.
Abre a porta (que habilmente foi oleada) e olha para ela, sorridente.

Ele: Entra por favor!
Ela: Obrigada ... (e deixa um silêncio estratégico no ar)
Ele: Então? Vieste visitar-me ou precisas de algo?

Ela dá meia volta na sala, olha para janela parcialmente coberta pela cortina transparente, engole uma gargalhada e faz um sorriso contido.

Ela: Vim cobrar o meu Orgasmo!


Anja Rakas

SEMANA DO EROTISMO - Provocatio III


Vernáculo Pertinente

Foda-se...
É tão simpático
quando ela o diz
de costas voltadas
e me oferece as nádegas
inchadas


Joshua M.

SEMANA DO EROTISMO - Provocatio II


vestida de risos

Não é fácil. Esta menina estava envergonhada naquele dia. Eu acho. Por isso ficou tão bela. Tivesse posto os pés no chão e jamais teria feito pose. Teria saído porta fora antes de...

A.S.

SEMANA DO EROTISMO - Provocatio I


Assina!

Foi assim que me dirigi a ti, quando brincavas de chocolate com pimenta com a minha pele.
Derramaste a prontidão de uma enxurrada de vinho tinto em cada abertura da minha máscara.


Vasculha!

De repente senti contacto de um sólido dermatológico e desejei sua potência.


Ama-me!

Coragem. Foi a coragem que me fez mergulhar num sem fim de pontos... de exclamações.


Sem Soutien!
 
É como estou!
 
 
Anja Rakas

sábado, 12 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO - Crónica Benzodiazepina II


OS OS OUTRA VEZ

Orlando de Sousa nome de homossexual. Osvaldo Silva pederasta. Osvaldo do O. Ambos bissexuais como as gaivotas bissexuais. A noite nos cinco cantos do mundo. Orlando é uma sereia. Orlanda de Sousa uma lésbica. Lesbianíssima. Androginíssima. A mulher da prima do Orlando. A mãe dos dois. Nunca Foram irmãos. A mãe é o pai. Querem psicanalizar o meu poema. Querem psico-críticos escrever denúncias nos jornais. Querem dizer perverso a minha irmã em coitos desalmados. A sensação do diferente. A estranha sensação do igual sempre igual a outro igual. A desigualdade de nascer Osvaldo Orlando. A insatisfação de concreto ser sensação. A indiferença de preparatoriamente viver em viver em perversão. A necessidade de igualmente morrer sensacional. A vontade de reencarnar Orlando Silva. Orlando dos Santos. Orlando dos Sousa. Orlando da Silva. Orlando Lopes. Na piscina Lopes e em casa Santos. Nas nuvens ou no laboratório ou no nunca. Em família com as cores trocadas Sousa navegador das invenções. Em família preso por mudar de roupa. Em desgoto aplauso por perverso prestigiditador de almofarizes. Com borbulhas para desenhar. Condignamente feminino. Orlando Sousa pai de filhos. Orlando Sousa júnior avô de tios. Dezassete meses juvenis dois namoros três amantes. Uma vez Osvaldo Sintra. Uma vez os números apaixonou-se. Duas vezes à cidade. Duas vezes à cidade. Orlando e Osvaldo com os braços dados.Femninos masculinos mistos alemãs. O dois jogadores sorte e azar. Os dois tristeza os dois certeza os dois os dois. Os dois as mulheres perversas. Os dois o corpo aberto. Os dois cada vez mais perto. Os dois homenagem a Joana D'Arc. Os dois bailado russo na televisão. Os dois sofá. Na mão de ambos etc. No peito das lésbicas etc. No púbis da estátua. Pelo poema da estrada. O vento mil vezes homossexual. Osvaldo de guarda-chuva mil vezes lagos. Os céus mil vezes chuva mil vezes dança. Os cegos mil vezes esperança mil vezes um dia mil vezes sol. Osvaldo o ânus etc. Orlando os pés. Maria Maria Maria. Desejos etc. Extensão por percorrer os mundos na rua. Os planetas na rua etc. Os mil mundos extensos etc. Maria. Os desejos Osvaldo Orlando na rua. Nas pingas da chuva etc. Nos cochichos da chuva Maria. Na estranheza da noite Osvaldo Silva. Nos revezes da lua mil vezes etc. A lua mil vezes o chão Orlando Maria. Duas vezes os Santos no Japão. O sol acende os pés. Santos Silva. Santos Sintra. Sousa Santos os os. Sintras os os. Duas vezes sempre. Duas vezes sol. Duas vezes chão. Mil vezes corpo. Mudos na rua.


João Belo

SEMANA DO EROTISMO - Crónica Benzodiazepina I


Gostos De Que Gosto

Gosto do erotismo das pequenas coisas. Gosto de gotas de água que deslizam pelas nucas impertinentes, das que percorrem corpos quentes, das que se arrepiam sem saber porquê. Gosto da parte interna das coxas, daquelas que vibram ao toque de carícias e se derramam em sedes insaciáveis, sem fundo, limite, decoro ou fronteira. Gosto dos incontroláveis e descoordenados impulsos, os que só encontram ritmo sem sossego no corpo vizinho. Gosto da língua desnudada, crua, pura, nua, toda. Gosto de lábios trémulos e de fragilidades masculinas belas. Gosto dos gemidos que se soltam sem dono. Gosto dos aromas que fluem salgados, molhados que usurpam espaços vindos do sangue e da carne,do corpo inteiro. E gosto de pele, porosa, pêssego lustroso e macio, elástica e lustrosa. Gosto do sangue que circula livre e felino, que invade os recônditos espaços da imaginação. Gosto do tempo sem relógio, gosto dos segundos marcados não pelo batente do ferro mas pela implosão dos corpos. Gosto da conquista, das seduções. Gosto das letras que revivem as emoções que geram vida. Gosto de vida. Gosto de matéria. E recolhe as tuas garras que para ti não preciso de chicote nem de amarras.


Lucinda Gray

sexta-feira, 11 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO VI


It's Not God's Fault

Deus não proibiu sexo, mas sim abençoou-nos com a capacidade de fazer sexo, de sentir amor, de dar prazer, de conhecer o corpo de um e de outro.
Não tapou as partes sensíveis de Adão e Eva. Não... de forma a que eles tivessem preconceitos e ideias pré-concebidas acerca das suas diferenças corporais.
Atrevo-me mesmo a dizer que, até ao momento em que a famosa cobra se revelou, eles pouco sabiam das diferenças existentes e muito menos se tratavam como se estivessem num campo de batalha.
Sim... aquilo era o paraíso, onde amor pela igualdade, pelo diferente, era a prova suprema do ser humano acima de qualquer defeito.
Não... diferentemente do que se diz, Deus não proibiu sexo, mas praticou-o e tentou ensinar a prática da paciência entre o homem e a mulher. Chegaria o dia em que Deus ensinaria a Adão e Eva o poder do Amor físico e da satisfação carnal.
Deus criou sexo, o prazer e a ternura.
O Homem é que não teve paciência para esperar o momento certo para aprender a verdadeira arte do sexo, do amor e do prazer.
E ainda hoje pagamos pela inquietude exacerbada do Homem.


Anja Rakas

SEMANA DO EROTISMO V


Vulto Convertido

Deitada sobre a erva, sou terra em comunhão com a vida, terra bruta e humana à espera de ser rasgada e fecundada, leito e regaço onde cada semente germina para fazer brotar flores de renovados desejos. E o meu sonho é toda a realidade plausível: sonho-me envolta na neblina e numa nesga mínima de pudor, quase pública, quase completamente despida, nua até ao mais íntimo do meu ser. Sou eu, sem qualquer embaraço. Sou eu despojada da vontade – a mesma vontade que com prazer te entreguei para me libertares do corpo, para me fazeres sentir livre presa a ti numa comunhão de infindáveis desejos.
Sonho-te a sorrir, tu estás aqui, sempre a meu lado – o vento traz a tua sombra mascarada num tornado e bailas em redor de mim. És loucura em carne, és rodopio e catarse, vulto fugaz que se some nos fios de chuva – ténue fio de memória que se escoa… Estás aqui, breve, sempre breve, para me fustigar a ânsia do corpo e a memória, sinto o odor das tuas explosões pressentidas, sinto o teu Vulto Convertido à minha fantasia. Agonizo em desejos e abro-me ao calor, abro mais as pernas e toco-me, ofereço-me e ofereço a visão dos meus lábios grossos corados de desejo, a minha fenda aberta ao teu vigor, à certeza erecta do teu voluptuoso castigo.
Cerro os olhos para te sentir real entrar em mim e sinto a tua força a submeter-me; e peço-te que me invadas e me entregues – a quem tu quiseres, suplico-te. Voo alto sobre a fantasia e sinto-me nuvem. Tu és céu, estás em todo o lado e tens sete cabeças, sete corpos de fauno. Eu levito emboscada em mim, rodeada de criaturas: todas têm a tua cara, o teu olhar, a tua carne, e a tua espada enristada, gume afiado para me dilacerar a pele de prazer.
Eles banham-se nos meus fluidos soltos em correntes; eu encharco-me nas suas delícias e sorvo o néctar dos seus beijos, cada vez mais profundamente. Sou forçada até às entranhas, até recurvar a cabeça num esgar de prazer, até beber a chuva que se abate tépida sobre mim em brasa. Um sobre o outro, vou vencendo a todos, caída no êxtase de cada investida, repetida até à exaustão da minha volúpia. Sou tua, sou deles, sou rodopio furacão sobre as ervas à velocidade ultra-sónica da terra que abraço. Sou, até me envolver carne na tua carne amálgama, até sermos um só, único, todos num só esparramados sobre as ervas.
As minhas mãos sem as tuas são ainda sempre poucas para me encher, faltam-me os teus braços para me limitar inteira, o teu calor para me abraçar. A tua falta é a saudade que deixa o meu corpo a imaginar, a sentir as tuas mãos e as minhas a contar os espaços vazios. Sinto-te tocando-me, só me posso tocar para te sentir. Sinto os teus braços através dos meus, desencontrados, anelando a dimensão dos nossos corpos – dos nossos corpos insanos – frágeis e prementes. No cúmulo do arco-íris sinto o sol a queimar-me o corpo, os corpúsculos de luz a invadir a pele, a chuva a inundar a mente e todos os fluidos a sitiar o corpo – a minha fenda cada vez mais gruta húmida. Abatida a torrente celeste ergue-se um cheiro ao húmus da terra, à terra ávida e remexida. Toco-me mais freneticamente e a humidade latente no imo de mim ameaça desabar copiosamente, deixando persistentes nos meus dedos, os sabores com que, só, tu me deixas, quando os levo à boca e os trago, sôfrega de mim por não te ter a ti, sinto o teu gosto a longe no meu desejo. E, lá no fundo, só me resta este sabor a ti…

Joshua M.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO IV


A Noiva do Santo

I

Teresa quase cai do segundo andar, enquanto espera, encavalitada sobre o peitoril debruado de sardinheiras, que a mãe lhe acabe a bainha do vestido que vai levar à marcha de Alfama esta noite. O suor já lhe escorre no colo e entre as pernas. Que raio de figurino. Tecido a mais, folhos a mais, comprido de mais, decotado de menos. “Mãe pareço um manjerico. Até as Noivas de Santo António hoje estavam mais bonitas do que eu…”. Não é assunto que a dona Fernanda goste de ouvir a filha falar. O ano passado estava entre as escolhidas para os Casamentos de Santo António, mas desistiu. Foram precisos muitos favores de costura e muitas tartes de amêndoa para calar as más línguas das vizinhas e os comentários jocosos na taberna depois do espectáculo que a Teresinha fez o ano passado, uma semana antes dos casamentos, com o noivo, em frente à Igreja de Santo António…

II

A mãe de Teresa e as vizinhas tinham saído depois do jantar para o habitual passeio recomendado pelo médico do posto para tratar da osteoporose e do colesterol, quando viram a Teresinha ajoelhada aos pés do namorado, o João Paulo, junto à imagem de Santo António no largo da igreja. A dona Fernanda pensou que era a filha a fazer uma promessa ao santinho que desde criança venerou, mas depois o futuro genro virou-se, branco, em pânico, e gritou: “Ó dona Fernanda, a sua filha tem destas coisas e sabe que um homem não resiste!”. A dona Fernanda quase desmaiou, mas teve de acudir às vizinhas que se benziam de boca escancarada. Teresinha levantou-se, limpou a boca com dignidade, sacudiu a saia, deu uma estalada no noivo, benzeu-se perante o seu santo de devoção infantil e fugiu dali com as lágrimas a escorrerem pela face. No caminho para o Miradouro de Santa Luzia, onde ia tomar a decisão de cancelar o casamento, ainda sentiu o sabor amargo da lágrima misturada com um resto de sémen de João. Ele tinha sido sempre o amor da sua vida, era o irmão mais velho da sua amiga Antónia, o rapaz mais cobiçado da Bica, mas que passava a vida a namorar as raparigas de Alfama, onde ia amiúde para casa do avô alfaiate. A primeira vez que tinham feito amor, ou sexo, ela não chegou a perceber, foi no vão das escadas da alfaiataria, depois do seu 22.º aniversário, numa noite fria de Agosto. Já lá iam três anos e depois disso o sexo nunca foi muito explorado, apenas a penetração saudável e agradável que um namoro sério oferecia aqui e ali, nas ausências paternais, ou numa ou outra saída nocturna. Duas noites antes, tinha acordado com uma sensação diferente e muito corada. Sonhou estar vestida de noiva e a fazer sexo oral ao João, ao pé da estátua de Santo António. A excitação que experimentou rompeu o hímen de todos os seus pudores. E assim, num passeio nocturno, enquanto planeavam a vida futura e falavam das almofadas que ela tinha comprado para a cama de casal, ajoelhou-se aos pés dos seus homens, João (o noivo) e António (o santo), e devotou a sua boca, e a sua prece silenciosa por uma vida de paixão, ao prazer que ambos lhe inspiravam. Agora estava tudo estragado. Teresa não queria mais casar com João. A madrinha sempre lhe tinha dito: “Só se desilude quem se ilude”. E era bem verdade.

III

Desce a correr para a rua, com o tafetá a roçar nas paredes da exígua escadaria do prédio. Já está atrasada para o último ensaio da marcha, mas antes tem de ir ter com António. Ninguém sabe, mas naquela noite o santo começou a falar com ela. Depois de sair do Miradouro, onde encomendou o corpo e a alma de João Paulo a um purgatório emocional, regressou ao largo da Igreja, baixou a cabeça e suplicou: “Querido Santo António da minha alma, tu que sempre velaste por mim, diz-me se alguma vez serei feliz se encontrarei homem que me mereça. E já agora desculpa se te faltei ao respeito, mas fi-lo por amor e sabia que não me ias levar a mal. Sabes, eu achei que ao pé de ti não era pecado e que tu me protegias”. Quando olhou para cima, Teresa não queria acreditar, debaixo das vestes de Santo António tinha crescido um alto.… Em miúda tinha lido um livro proibido em que se chamava ao pénis a “lança do amor” e a do santo tinha-lhe agora atravessado a alma.

IV

Desde criança que Teresa suspeitava que a imagem oferecida pela madrinha no dia da primeira comunhão lhe piscava o olho, ria ou esmorecia. Contou à mãe, mas ela disse que era imaginação e que rezasse mas era muitas orações e pedisse a Santo Antoninho que lhe arranjasse um bom casamento. A verdade é que António nunca tinha gostado de João Paulo, pois sempre que saía com ele ou falava dele em casa, a imagem do santo, estrategicamente colocada em cima da cómoda do quarto, aparecia voltada para a parede, como se estivesse a fazer birra, e uma vez encontrou mesmo uma poça de lágrimas que ainda hoje lá está em forma de mancha na madeira.

V

António sai da sacristia a correr. O padre André acabou as confissões e dispensou o seu acólito favorito da missa de amanhã, até porque o dia de hoje, com a celebração dos "casamentos de Santo António", dá conta das pernas e do espírito ao mais santo da paróquia. Abençoados noivos, mas é uma carga de trabalhos gerir a solenidade do sacramento com os directos na televisão, os funcionários da Câmara e a gente toda que acorre ao local para assistir à tradição lisboeta. E o António, ai o António, lá vai ele ter com uma moça que o anda a afastar da vocação… O padre André começa a perder as esperanças de António ir para o seminário. “É um Franciscano de coração, mas tem o corpo inclinado para os prazeres da carne”. Não lhe leva a mal, que o rapaz anda feliz como nunca e parece que até lhe vê aumentada a graça da fé, mas preocupa-se que ele também possa não vir a ser um bom marido e pai de família, pois sinceramente, até lhe custa pensar isto, mas “ele não é bom da cabeça”. Já são algumas vezes que o apanha a conversar com a imagem de Santa Teresa D’Ávila que está do lado esquerdo da igreja, oferecida há uns anos por uma paroquiana abastada. Ao início achava que era por devoção, agora suspeita que será alucinação. E no outro dia, por Deus, jura que o apanhou a mexer nas saias e a apalpar os seios da santa. Mas tem-lhe perdoado, pois não esquece que há um ano, no fim de uma reunião de preparação com os Noivos de Santo António, ele próprio achou que estava a ficar senil quando ao despedir-se da igreja por aquele dia, passou pela imagem e viu com os seus próprios olhos e sentiu com os seus próprios dedos que as vestes da santa da cintura para baixo estavam molhadas e o rosto de Teresa D’ Ávila estranhamente sorridente.

A.S.

SEMANA DO EROTISMO III


Da Kontra-kultura

Sensação estranha esta, de entrar num ano novo desta forma involuntária: amarrada a cordas de fantasia e docemente chicoteada por mão firme – sinto a dor que não sinto, logo sinto desejo. Não queria, mas também ninguém me perguntou quais os meus desejos. É a ditadura do tempo e do modo. Detesto todas as formas de ditadura, até a da maioria. Mas não consigo deixar de me vergar (até ao prazer final) perante as ditaduras que imponho a mim própria, sou escrava dos meus mais intímos desígnios.
Sinto-me assim, a pairar neste suposto novo tempo, sem vontade de me animar com esta pseudo-novidade que dá pelo nome de PRAZER INVERTIDO, FILIA, DEPRAVAÇÃO, ou lá o que seja.
Se calhar o problema mesmo é ser segunda-feira. Outra nova semana sem lhe sentir o gosto de não sentir, sentindo apenas a falta. E passamos a vida nisto! A contabilizar tudo: quanto tempo perdido, dinheiro ganho, amigos fiéis, sucessos, insucessos, gostos, desgostos, dores e risos. Quantos mais? Nunca se está simplesmente a viver, a sentir o que se deve sentir quando se deve sentir, está-se sim a coleccionar vida, como se coleccionam cromos. Aparentemente este fenómeno do prazer deve estar relacionado como alguma estrutura organizativa cerebral do género humano. Seremos para sempre assim? Como será o próximo ano novo?

Lucinda Gray / Joshua M. - Adaptação de uma qualquer realidade virtual

quarta-feira, 9 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO II


As Bodas de Eros


Ela acabara de acordar e já sentia ânsias de anoitecer, pressentia que algo de extraordinário se iria passar ao surgir do luar. Arrepios de prazer mental, imagens, cultos e cenários, – invadiam-na – soltavam-lhe a fecundidade da mente. Sensações antagónicas: vultos fantasmagóricos e figuras esbeltas, esvoaçavam no seu espírito – desejo ardente a nascente, medo crescente a poente – suores frios e quentes, fluidos correntes, cercavam-lhe a seda pele.
Abeirou-se das águas e observou o rasto das rosas que se esgueiravam num imenso mar deleite. Submergiu vagamente e, de olhos fechados, encetou uma dança de movimentos lentos e ritmados: passeou as mãos pelo corpo inteiro e soltou ténues e prolongados vagidos. Sentiu-se invadida por ondas sucessivas de prazer. Fruto do calor das suas mãos e do labor do seu intelecto, as ideias fluíam rapidamente. Ela não estava só no banho, sentia a presença de Eros, ele vinha acompanhado por um magote de homens e mulheres, que não conseguia vislumbrar. Seriam seguramente acólitos de Dionisios e amigos de Eros, os que agora a cercavam e envolviam, incessantes, em múltiplas carícias, levando-a ao êxtase.
Sobreveio um despertar relaxante e perturbador, Ela afinal amava Eros, desejava-o mais ainda, mas não havia podido resistir às delícias tocadas pelas mãos dos seus companheiros, que lhe reclamavam a carne. Na larga espera as horas iam passando, ora lentas ora rápidas, mergulhava no pensamento surpreendida pelas sensações que experimentara no banho, hesitava entre a curiosidade que aumentava e o receio do que a esperava.
Ao início do crepúsculo, começara o cerimonial da indumentária. Era o dia da mais pura união entre os seres e deveria agora vestir apenas as vestes mais alvas. Ela desnudara-se e observava-se atentamente ao espelho, via o seu corpo em carne vivido e estranhamente sentia nele o desejo de se arrojar por um outro mundo, numa descoberta de sensações e de prazeres. Pressentido que era o seu destino, estava resplandecente de beleza, na sensualidade exígua de um manto branco de linho que lhe velava o corpo revelando, expondo intimidades de uma forma dissimulada e assimétrica. Ela sabia que teria de estar pronta para a sua iniciação, o seu sacrifício, num ritual em que todos participariam – deuses, semi-deuses, heróis e até meros mortais .
A aspirante a deusa estava enfim preparada para ser recebida no Olimpo. Eros, o patrono da festa, esperara firme e paciente na antecâmara. Ela chegou junto a ele, deram as mãos e o par foi anunciado à multidão: tocaram os tambores e surgiram os dois pela grande porta dourada. O séquito tramitava no seu encalço pelo corredor, seguindo um rasto de perfumes de incenso e candelabros de círios em chamas lentas. As portas abriram-se prontamente, umas atrás das outras, até à última, a porta da nave principal do templo, um compartimento amplo sitiado por pequenas mesas (onde se dispunham néctares e vitualhas). Junto às mesas acomodavam-se algumas camas térreas almofadadas, revestidas a panos de seda. E entre passos anónimos, heróis e humanos mascarados deambulavam sinuosa e insinuantemente, declinavam o corpo sobre os tapetes tocando-se entre si e despojando-se dos panos que abandonavam pródigos. No Panteão divisavam-se deuses e deusas, que, em poses rituais, ensinavam os corpos nus e apenas mascaravam a vida com os terríveis traços da morte pintados no corpo e no rosto, em obediência às regras do culto e por temor aos céus.
Quando finalmente entraram no templo, os noivos sorriram cumplicidades entre si, olharam em redor, e, de acordo com o protocolo, fizeram a respectiva vénia ao deus maior, perante os urros de delírio de Afrodite que jazia coberta de corpos extasiados em doce fúria colectiva. Seguiu-se um ribombar de madeira contra madeira, quando impacientes os deuses atacaram em simultâneo o soalho com o cajado. Depois da trovoada geral soaram três pancadas fortes e imediatamente a tonitroante voz de Zeus decretou:” - Que comece a folia!”
E assim Eros e Psiké se uniram eternamente, unidos pelos Deuses e pelos Homens – e a afeição não mais deixou de ser o corpo na forma da alma que o procura incessante.


M. Jota

terça-feira, 8 de junho de 2010

SEMANA DO EROTISMO I


Pensamentos de uma amante chamada Inês

Acho que nunca soube muito bem ao que vinha. Acho que não encontro retorno. Acho que me habituei. Acho que não sei ser outra coisa. Acho que isto talvez seja o que sou. E afinal, o que somos todos? O que fazemos ou o que sentimos? Qualquer das hipóteses me torna nada, ou demasiado suja para ser. Será que só isso me define? Ou poderemos um dia ser apenas o que queremos? O dia em que ninguém mais nos calará. O dia em que ninguém mais nos atirará para a terceira idade dos 23 anos, com a dor e o peso de se ser velho cedo de mais. O dia em que ninguém mais, para além de nós, nos fará sentir o que somos.
E se hoje te dissesse tudo isto? E se hoje te dissesse: não voltes! Gritá-lo quando entrares por essa porta, tu, um careca que cedo será decrépito e que gosta de mim somente para me mostrar: o pedaço de carne que o rejuvenesce pelo lapso de gerações que nos separa. Feira de vaidades e medo de envelhecer. Prometo não te dizer que se calhar nem tens assim tanta importância, que não foste tu que me ensinaste a vestir, a maquilhar, a ser inteligente, a ser bonita, a foder. Prometo fingir que cresci por causa de ti. Sabias que sei que sou eu como podia ser outra qualquer? O meu nome é Inês, mas uma Marta, uma Irene, ou uma Luísa seriam exactamente o mesmo prolongamento para o teu esperma.
Ainda assim sorrio sempre que entras, e se te peço ajuda só me respondes com a sugestão de um broche. Eu encho a boca e esvazio a alma. Dão um nome a isto quando se recebe dinheiro no fim, sabias? E eu, nem dinheiro, nem carinho, nem amor. Amor...? Amas-me e deixas que me envolva com outros, porque "é a minha natureza". A tua provavelmente é não sentir e ordenar, e achar estranho o meu não saber. É ser um tão magnânimo ensinador. Um dia, trocas-me por uma virgem e acho que me vais chamar de putinha, quando me lembrares com os teus amigos numa noite de copos. Será que não o fazes já? Gastei toda a minha juventude na ilusão de ser. Hoje, acho que saio por essa porta assim que entrares e nunca mais volto. Juro que só vou dizer adeus, nada mais. Quando chegares eu talvez não esteja aqui. Quando chegares, eu juro, hoje é a última vez.

Virginia Machado

SEMANA DO EROTISMO - Palavras Versadas II


agentes secretos

a tua missão é igual à minha
:
tocar gemer gritar cheirar mordiscar molhar incendiar transpor apertar imaginar querer contrair entrelaçar vaguear lamber transbordar emudecer alhear beijar arfar consumir apalpar beber beliscar descontrair salivar arrepiar rodar experimentar chupar distender gozar arrastar enlouquecer arranhar agarrar abrir espreguiçar fechar esquecer tirar meter inventar repetir entumescer morder voltar cair envolver demorar uivar subir descer inundar rastejar penetrar verter desaguar voar imaginar abraçar sentir
.
agora vem cá
e manda foder o verbo


Bill Engates

SEMANA DO EROTISMO - Palavras Versadas I


OBSERVAÇÃO

Suponhamos uma mulher nua
com um homem cobrindo-lhe o corpo
Depois outro homem dilacerando-lhe a alma
E depois um cavalo e a seguir um touro
Suponhamos o seu corpo ressentido nos meses
improvisando todos os bicos da noite
Suponhamos obscenidades interdições
e gente perturbada por pensar nisso
Suponhamos a mulher com os
cabelos queimados a rebolar nos detritos
gritando de prazer
Suponhamos agora que essa mulher é
tua irmã ou tua esposa
Ou então suponhamos que essa
mulher és tu

João Belo