sexta-feira, 3 de dezembro de 2010


Sem Assunto

Olho para o papel em branco e percebo que as minhas deixas no teatro da vida estão gravadas naquele guião. Sou um actor sem papel previamente definido, salto para o palco e lá decido se rio ou não choro, se sou ou não estou vivo. Vivo como se reinventasse uma cena que não é mais que uma outra minha vida. Sou um diabo quase santo, um anjo renegado em busca do gosto do pecado. Beatifico-me, martirizo-me e fico por ficar, na mesma mesa como toda a resma: tenho a vida de cinco centenas de folhas em branco. São sete ou nove ou não interessa quantas as pancadas, Moliére já morreu e a minha aritmética da pancada certa não acerta contas com o relógio que marca o subir do pano – esta é uma representação em que os actores são pessoas sérias com vidas a sério, aquém do cemitério onde vão acabar como figurantes esquecidos no meio de uma cena sem juizo a final.

No dia em que morrer haverá música, folia e palmas e breves orações. Cada um dos quinhentos circunstantes receberá o mesmo papel em branco com as deixas que não deve dizer, débeis murmúrios de preces de silêncio, desditas em segundos por bocas amarradas ao compromisso de não trautear canções de perecer. A festa, para ser festa, tem de terminar com um fogo fátuo de artifício, explodindo em lágrimas de todas cores entre a abóboda celeste e a terrugem do chão. É sempre um chão daninho que se aproxima de nós em cada guerra, para nos esmagar os ideais com notas floridas e um pranto de pólvora. Restarão o calor e os vermes vorazes que tudo devoram até restar só calor, tudo em atmosfera festiva. Restará um pouco menos de nada, apenas um séquito com um acólito calado, porque a sua folha foi roubada à resma e arroteada com palavras proíbidas, sob o título “Sem Assunto”.


Joshua M.

Sem comentários: