sábado, 1 de janeiro de 2011

Crónica Benzodiazepina


Fui...

Podia ter sido apenas mais uma passagem de ano. Mais uma desculpa esfarrapada para juntar a família. Ninguém se fala, ninguém se toca. As palavras, as mesmas de circunstância, sempre vazias, práticas, contadas à letra. Vamos comer e dançar as diferenças - dizem eles - a mudança, um novo ano. Poder começar de novo a vida para repetir tudo igual com sabor diferente. Tudo repetido.
Eis que um tio se foi, ninguém sabe para onde ou se volta; o que se sabe, e é pouco, é que saiu para comprar cigarros. Talvez se tenha perdido na transição do tempo, no triângulo dinâmico onde se perdem as ligações amorosas, os atilhos frágeis que nos unem projectados através do sonho para o pesadelo. Soube mais tarde, que o meu tio se perdeu de amores por outra mulher. Segundo as línguas despeitadas das minhas tias, a mulher é uma puta, uma destruidora de lares. O meu tio já não é meu tio. Foi perseguido até à morte por caçadores de bruxas e feitiços. A minha tia enviuvou de remorsos. Um dia, muito mais tarde, já eu era adolescente, ela enfiou-se na minha cama. Encostou-se a mim como uma nuvem escura e húmida. Chorou o corpo nas minhas costas, nas minhas coxas, no meu cabelo. Chorou como quem suplica amor.


DuArte

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