sexta-feira, 2 de julho de 2010


JUÍZO PROSAICO

Não sei se a juíza me conhecia de algum imbróglio anterior, mas desta vez estava a ser julgado, reincidente, por ter roubado um pão a um pobre e, com esmeros de perversidade, lhe ter deixado por troca um livro de poesia. O caso estava feio, repetia-me o meu advogado dizendo-me que, ainda o mês passado, se havia condenado alguém por somente haver roubado o pão. E por tal nefando crime foi despedido da fábrica têxtil, onde já era pegador de fios e relegado a administrador de uma empresa pública de esterilidade de ideias, a qual, aliás, é hoje uma das mais conceituadas. Não teria muitas hipóteses de me safar sem uma pena algo pesada, dada a gravidade da minha conduta. Seria fácil ao jurista encarregue de me acusar fazer prova de que estavam reunidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos para uma condenação por crime doloso – o que, com o meu azar e um juiz severo, poderia catapultar-me para alguns anos de degredo à cabeça de uma secretaria de estado ou de uma direcção geral, ou até a algum cargo de eunuco na presidência. Tentei fugir, para a via láctea, para o desusado sistema solar, tentei, mas com o novo terrorismo interestelar e os centuriões da Guarda Sol sempre em campo magnético depressa me descobriram, íman colado aos metais precisos, quando tentava convencer uma estrela a transformar-se em palavras. A juíza, mulher de ar ríspido e olhos perscrutadores, de palavras certas e conceptualizadas, perpassava-me com a sua sabedoria retroactiva. Era um daqueles juristas que havia memorizado mais de três milhões de glosas e possuía na sacola uns milhares de comentários inéditos sobre a lei do estilicídio poético corrente sobre as cabeças vagas. E depois de um longo exercício de prognose póstuma, em que se questionou: se o arguido não houvesse deixado o livro de poesia, ainda que tivesse levado o pão, tornaria a vitima menos infeliz? Pergunta a que não teve dúvidas em responder, em considerar que o principal prejuízo advinha da leitura da poesia, pois ao abandonar o livro aos olhos da vítima o arguido sabia que, com a sua conduta, o tornaria provavelmente feliz, o que lhe iria provocar danos irreparáveis. Compenetrada e segura que asseguraria a habitual justiça, a severa magistrada pronunciou sábia e incisivamente a decisão: Assim, pelos factos descritos e com base nos fundamentos legais citados (matéria a que vos poupo, por ser pesadamente fastidiosa e de conteúdo impenetrável para leigos), decido condenar o arguido a uma pena inequívoca de prestação serviços em favor da comunidade à frente de uma secretaria-geral de relevante importância no aparelho do Estado, devendo este retractar-se diariamente na praça política como um mero prosaico, durante todos os bons anos da sua vida, sendo ainda o mesmo obrigado a proclamar em voz off, perante todos os indigentes, que a poesia não existe, nem nunca existiu, nem é conhecida de quem quer que seja abaixo do astro mais meridional da galáxia. E o aresto terminava com a seguinte determinação: Custas revertem a favor da “Associação dos Indigentes”. Cumpra-se.
Só por curiosidade, o facto provocou os veementes protestos da “Associação para a Desconstrução Prosaica”, por não ter sido contemplada e judicialmente indicada para comungar nas custas, mas o incidente foi ultrapassado quando aquela entidade foi autorizada a realizar um novo auto de fé com livros de poesia surrealista do início do século XX. E assim, de juristas contra a poesia, se fez da justiça dos homens um negócio de alquilaria.

Joshua M.

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