domingo, 30 de maio de 2010

Provocatio


In'Fidelidade (1)

Estaremos condenados a ser monogâmicos para ser fiéis? Ou podemos ser fiéis a mais do que uma pessoa?


In'Fidelidade (2)

A fidelidade é um estado de alma. Reflecte-se na escolha que fazemos cada dia de amar e respeitar o outro, no compromisso de não usar as suas fraquezas para justificar paixões alheias. A fidelidade só sobrevive se o coração tiver liberdade. A fidelidade só se torna 'in' quando se mascara de hipocrisia.


In'Fidelidade (3)

A ti meu querido que um dia na véspera de entrarmos no altar me disseste tanta coisa que hoje faz sentido. A ti, sobretudo a ti, agradeço compreender hoje, um bocadinho mais que ontem, o que é o amor. Como no livro francês da minha vida "Um marido, é um marido".
 
A.S.

sábado, 29 de maio de 2010

Crónica Benzodiazepina


Morreu O Meu Herói

O meu primeiro herói foi o Capuchinho Vermelho, sempre gostei das cores quentes em banho de Maria. Imagino um pequeno rebento a ser lavado na água da gruta à luz das estrelas. Coitadinho... e com o frio de rachar que está sempre por aquela altura do ano, ainda que os climas mediterrânicos sejam mais amenos que os dos civilizados bárbaros do norte. Mesmo antes da colheita da maçã as árvores já eram ignorantes, nunca perceberam nada de heróis. Pois, eu tive o meu primeiro herói ainda antes de existir, nasci um iconoclasta formado, quando me partejaram já estava tatuado de sinais de vitalidade impaciente. Mas, o Capuchinho, aquela cena da avó é bem marada, ainda mais para os putos: caçadores que que comem um lobo que comeu a avó e afinal queria comer o Capuchinho também, não tivesse esta feito um desvio ao habitual caminho. Ah... como todos os desvios à ataraxia da realidade são saborosas chávenas de leite com mel, servidas pelos deuses para nos ensinar que podemos habitar um leito de doçura, muito aquém da sua real inexistência!
As árvores nunca tiveram a sabedoria suficiente para se encarregar do destino dos homens; aos homens nunca foi dada a educação bastante para aprenderem a respeitar as árvores.
Gosto de conchas: elas lembram-me a terra que percorro até ao mar. E gosto do mar: por toda a terrra que me separa dele. A concha é o signo dos romeiros perdidos em busca do que não podem encontrar, caminham sempre e nunca chegam senão à sua própria fé. In hoc signo vinces – diziam já antigos catequéticos. A concha trespassa o norte do marinheiro, até o vergar sobre a mortalha da saudade, até o guiar por mapas imaginários a uma cruz quebrada de pranto. Usei uma concha pendurada ao pescoço quando era jovem, quando me perdia no rio, porque no rio não há conchas perfeitas e salgadas.
Gosto do verde sobre o verde, em várias tonalidades de verde, nos campos de onde tudo desabrocha a partir do verde. Vejo o verde nos olhos das pedras húmidas, sempre verdes em tempos de musgo e líquenes. Nada como as árvores para cobrir tudo de côr, mas o verde persiste em ser vida depois da flor. E como são belas as flores marinhas e as outras pintadas de cores, brotos entre a esperança do verde. Basta-me sol e água para que sobreviva, por isso sou verde e colho o meu alimento da terra bruta: germinei, cresci, entronquei, ramifiquei, frutifiquei e lancei novas sementes – e vou mantendo sempre verde uma parte de mim, deixando intactas todas as fantasias do tempo em que ainda era muito verde. E gostava de ter uma concha pequenina verde água, para me banhar e ver nela os meus olhos reflectidos no espelho.
Estou apaixonado por uma ideia, de que não faço ideia o que seja. Há um lapso temporal ou espacial entre mim e essa ideia – quando julgo chegar no momento certo, a ideia já se ultrapassou a si própria e já é outra; quando julgo que a ideia está mesmo ali, corro, mas ela vai-se distanciando como o horizonte. Por isso vibro de prazer com as ideias, porque quando são livres não se apegam às pessoas em casamentos de conveniência, não redundam em relações monótonas.
As pessoas não fazem ideia do que as espera, e, no entanto, essa é a ideia mais certa do destino.
Um dos meus ídolos caídos é o Pai Natal. Sempre admirei os homens de barba branca que passam o ano a comprar prendas e um dia se enfiam habilmente por uma chaminé, esquecendo a idade e o peso do corpo, só para trazerem prendas aos inocentes que têm pais suficientemente ricos e imaginosos. Hoje odeio o filho do Pai Natal, porque renasce todos os anos à coca do consumo estampado a cores nos cartazes. Por isso acho que vou gerar um novo Pai Natal, cujas prendas sejam virtudes de todas as cores para dar aos mais novos, e, no mesmo acto, engendrar um novo Jesus menino, filho legítimo do Pai Natal, em vez de filho de uma pomba parva.
E se parvo (em pequeno sentido), por infeliz acaso, fosse o senhor das prendas, o dito espírito sacro-santo? Não imagino uma pomba vestida de Pai Natal, isso assustaria qualquer criança, pareceria um palhaço kitsch ou um super-herói sem emprego. Além de que, ele, o velho Pai Natal, e o tal espírito traidor, nunca passaram de uma ideia, comparados com o menino Jesus que se fez um homem, correu mundo e agitou a malta. Nunca chegou a velho, nem nunca deu presentes de Natal a ninguém, senão na forma de palavras políticas - veneno.

Joshua M.

sexta-feira, 28 de maio de 2010


(Re)Encarnación

Encarnación foi encontrada inanimada, no pátio da sua casa, no dia mais aziago da terra. Quase ninguém a via nos últimos anos, fechada no seu eremitério e resignada na sua viuvez. Um dia tenebroso que tinha feito os pescadores responder mais cedo à chamada telúrica, de tal forma ameaçava o mar, prenúncio de desgraça e morte. A notícia de uma Encarnación morta correu tão depressa como a de uma Encarnación afinal viva e recuperada. Os homens que decoravam todos os dias a taverna da vila viram-se, de repente, enlevados com a memória da beleza quase asfixiante de Encarnación, mulher de uma sensualidade singular. Recordaram, em silêncio e cada um à sua maneira, a jovem que todos os dias atravessava a praça com os seus contornos voluptuosos e cabelos ao vento, deixando-os esquecidos em qualquer desejo perdido e carnal. A mágoa de uma deusa caída trazida pela primeira notícia deu lugar ao sonho antigo mudamente acalentado por todos os homens com sangue na guelra, o sonho do toque e do grito dado por uma mulher em chamas de prazer – e que ninguém conhecera a não ser Rámon Furtado, homem de olhos tumulares e rosto apolíneo. As mulheres não se permitiam a vê-la como uma Vénus. Viam-na como uma meretrice que lhes roubava os desejos mais recônditos dos maridos. Desprezavam-na a tempo inteiro. Por isso, quando souberam que afinal Encarnación não morrera, cuspiram mais uma vez no chão e renegaram o seu nome. Não disfarçaram a raiva e a aleivosia que dedicaram sempre a esta criatura do diabo e a memória fugidia de uma mulher polida e recatada não as apaziguava nem no momento de pedir perdão pelos seus próprios pecados carnais. Não tardaram a conjecturar sobre a autoria do crime de que esta mulher teria sido vítima. Sem saber se de crime se tratava.

Berenice Greco

quinta-feira, 27 de maio de 2010


Cirurgia (ou outro sonho sem consequências)

Sei que andava pelas rua às compras com uma amiga, mas não sei quem era... a dada altura ela diz-me "estamos atrasadas, temos de ir para o hospital". E assim fomos. Na altura não sabia o que íamos lá fazer, mas estou habituada a esse ambiente e por isso não me preocupei muito quando nos mandaram entrar para uma sala branca, de mármore, gélido e asséptico.
No meio da confusão, enfermeiras, auxiliares e aparelho médicos, começaram a preparar-nos, às duas em simultâneo, para uma intervenção cirúrgica. É nessa altura que aparece a enfermeira R. e ordena: "as senhoras estão muito atrasadas, vá, vistam as batas, que a médica deve estar mesmo a chegar!". A médica chegou, gorda, de bata branca, olhar esbaforido e carcomido enquadrado por uns óculos de lentes grossas como fundos de garrafa. Parecia uma cientista louca, mas nós continuávamos impávidas e serenas. Estávamos sentadas lado a lado em duas cadeiras ergonómicas, que nos permitiam apoiar o peito inclinado à frente, quando a médica diz: “então vamos lá começar a nossa operação à coluna”. As cabeças inclinaram-se também para a frente e fixaram-se numa espécie de apoios específicos. Olhei mais uma vez para o chão de mármore branco enquanto a médica abria a minha bata nas costas e me afastava o cabelo da nuca, e explicava: “vou fazer duas pequenas incisões na testa, para depois descobrir a vossa cabeça até ao inicio da espinha”, e assim fez. Dois pequenos golpes nas fontes, depois desenrolou o escalpe até ao início dos ombros, tal como se separa papel autocolante da sua película protectora. Saiu tudo limpinho, sem sangue nem dor até que o escalpe ficou caído pelas costas a baixo.
Não me lembro como saímos hospital, mas sei que depois de sairmos de lá fomos viajar, as duas muito direitas para não estragar os pontos dos escalpes cosidos à cabeça. Fomos para uma estação de comboios infernal, cheia de gente, linhas entrelaçadas e sinalética difusa. Juntámo-nos finalmente ao resto do grupo que esperava por nós e entrámos na carruagem. A viagem começou por terrenos suburbanos em direcção ao sul e o sol começou a aparecer pelo meio das nuvens. À medida que a paisagem se tornava mais agradável, com vista para o mar e com sol forte a bater nas janelas da carruagem, comecei a sentir dores na coluna. “Vamos ter de parar”, disse, “não vou aguentar a viagem com estas dores”. “Está bem, amor” – respondeu-me alguém que estava ao meu lado – “vamos sair já na próxima paragem, a minha tia tem um apartamento aqui nesta praia do sul de Espanha”.
 
Ginger T.

quarta-feira, 26 de maio de 2010


Sangue

Hoje sonhei que morria.
Sonhei que me aproximei sorrateiramente de mim mesmo a coberto da escuridão e com um golpe de mestria e aço frio, adamantino, gravei um sorriso macabro e escarlate na minha garganta.
E ri. Ri como um maníaco alienado até o meu riso se transformar em pranto.
E chorei. Chorei como um sem abrigo até o meu lamento se transformar no choro libertador de um recém nascido.
Hoje sonhei que vivia...

Jonathan Strange

terça-feira, 25 de maio de 2010

Palavras Versadas


inauguração

nossa senhora da melancolia
nos valha
que para sangrar desflorar florir
a melancia
são precisos tantos golpes de navalha

fazes-me rir
mas não preciso de tanta tralha
(vai já tudo para a fornalha!)
e gosto de sair
de vez em quando calha

ao descobrir
que o envelhecer não tem cura
nesta vida canalha
decreto que apenas me ames desenfreadamente como uma bomba-relógio
segura, segura
sem jamais em tempo algum explodir
sem falha

larguemos essa sôfrega gentalha
que não pára de ir e vir
que satura
que trabalha
para existir
e inauguremos o nosso museu da loucura

Bill Engates

domingo, 23 de maio de 2010


MMF

— Ele está no meio de nós — ouvi-lhe em surdina, acompanhando os fiéis em coro na igreja meretriz da vila.
— Joana, vamos lá embora daqui que eu não sou gajo para alinhar nessas modernices de ménage a trois.
 
Bill Engates

sábado, 22 de maio de 2010

Crónica Benzodiazepina


Fado Vadio

Se em tempos fui requiem, hoje sou tango. Não um tango daqueles todos aprumadinhos de salão, mas daqueles vadios que nascem das ruas infectas de Buenos Aires. Mozart que me perdoe, mas sabe tão melhor. Não quero ser uma Amália, empalada em vida por um povo que, ainda lhe batia o coração, já andava a talhar com o seu machado as tábuas do seu caixão. Por favor… não!
Viva o Bocage e deixem lá dormir o D. Sebastião, que descanse em paz! Canseira. Já não basta esperar quando temos de ir ao dentista ou quando aguardamos pelo reembolso das finanças? Detesto esperar.
Não sei por que raio essa coisa da “dor” haveria de ser portuguesa! Dêem-lhe outro nome. Paixão, sonho, loucura, visão, audácia, esqueçam a dor! Afinal não contamos nós com esses outros condimentos no nosso tempero? Dêem tréguas à maldita dor e parem de cortar os pulsos a torto e a direito que ainda me sujam o umbral da porta. Sim, escolho outra visão, outro sentimento, mas sou portuguesa, com certeza!
Lembro-me quando em miúda ia para Paris de comboio. Viajava com emigrantes, simples e calorosos, alegres, muito alegres e brejeiros. Acabavam por ser sempre uma festa aqueles dois longos dias de viagem.
Isso é Portugal. Portugal profundo, aquele que apesar de se ver obrigado a partir, a trabalhar onde os cidadãos do país que os acolhe se recusam, come alegremente queijo com banana, num piquenique improvisado no corredor de um comboio por entre chalaças e uns golitos de tinto. Era como se não pedissem mais nada a Deus.
Crise? Nós, portugueses, sempre vivemos em crise. No “tempo da outra senhora”, nem se fala! Não é por isso que a boa da açorda é um prato tipicamente português? De onde pensam que ela nasce senão da fominha negra?! Éramos menos risonhos por isso? Não. Agora, apesar da crise temos mais coisas, muito mais coisas, acreditem. Por isso, há que limpar o ranho, encher o peito e vencer o dia! Viva a necessidade, se dela nascer o engenho. Viva a criatividade!

Lucinda Gray

sexta-feira, 21 de maio de 2010


Viagens (Pela Palma da Mão)

Por nada deste mundo daria a alguém o que ninguém merece, por nada desta vida ensinaria os cantos da minha alma a quem não passa por mim incógnito. Tu tocas-me ao sentir, ao falar da noite e do silêncio, das pausas de vida que somos no esplendor de uma luz inacabada, falas até cair na calma da noite que vem absorver todas as vidas com o silêncio. As maravilhas que inventas sobre as cruzes da estrada são mais do que momentos, são eternos e fugazes momentos, palavras a que ficamos presos pelos nossos lábios sedentos.
Os nossos mais breves prazeres são cortados pela lâmina afiada do tempo vivido, vamos e vivemos e regressamos sem saber de onde vimos. Somos o tempo e não somos. Somos o tempo que morre a cada segundo e somos o prazer de estar, no fim de tudo. Escolhemos outro caminho e voltamos fatalmente ao mesmo lugar. Escolhemos outros lugares e o caminho é sempre o mesmo: todas as direcções têm o mesmo sentido e voar sobre o mundo cansa os músculos atrofiados de quem só pensa em chegar.
Em troca de nada recebemos o espaço que nos deixam livre pela frente, e, para nos libertarmos do viver remanescente, cortamos todas as amarras que nos enrascam a um porto sem marés. Depois abrimos o corpo e atingimos incólumes o cume, oramos, jejuamos, como santos em altares de frigidez. Levamos a mão incerta à tiara que nos cerca a cabeça e nos crava os espinhos na mente e sentimos um prazer vivo, um prazer igual ao da ressurreição dos nossos corpos em fogo. Depois despimos as nosssas ataduras e atingimos maravilhas para lá do que tentamos ser: seres únicos e viáveis.
Por vezes acordamos e não pensamos, em nada, em ninguém, porque nunca somos o que pensamos, mas a refracção da forma como nos vemos e os outros nos vêem. Somos nada e somos tudo, somos a sombra e o vulto que se há-de escapar do invólucro por um fio de ar vital, torrente de vida a escoar-se, lentamente, a escoar-se. É nesse momento, naquele em que não vivemos, que descobrimos o prazer de apenas estar aquém das fossas abissais de nós próprios.
De certa forma, ângulo morto, miramos com os olhos mortificados a tortura de viver cadentes, de nos procurarmos e encontrarmos, sem nunca nos reconhecermos, no espelho da nossa máscara. A vida é sempre o reflexo de nós próprios, a construir-se com pedras lentas desde o fundo do abismo, é o poço onde mergulhamos com escanfandros em busca de uma felicidade eternizada. E, no entanto, sabemos que o afecto mora e não mora no fundo do nosso coração aberto e fechado, está pássaro na palma da nossa mão e nunca foge.
E perguntas-me: quem sou? se sou feliz? E eu digo-te: Sou um anjo breu e talvez, talvez seja feliz quando vivo feto no prenhe ventre das palavras que faço nascer felizes. Sim, talvez seja feliz, quando me encontro comigo próprio no âmago das palavras que vou inventando para me fazer feliz, reinventando-me...

Joshua M

quinta-feira, 20 de maio de 2010


O Outro

Tudo tão negro à volta. As pessoas que passam e me vêem, tanto me vêem que me sabem mortal, que me sabem infame, tão aquém do que podia ser, de tudo o que devia ser, tão vergonhosamente nada. Todos os que passam parecem gritar-me a minha inferioridade, todos me olham pelo canto do olho. Quero fechar-me em casa, sozinha, sem mundo que me envergonhe por ser diminuta, por ser um qualquer resto do que fui. Será que fui? Um vestígio, mastigado e cuspido, de algo irreconhecível. Tudo parece tão claro lá fora, agora que o vejo de dentro. Tudo ferozmente brilhante nos olhos que se esgueiram para baixo enquanto rúbea se torna a face. Fechar todas as persianas, já! Fechar tudo, trancar-me aqui dentro a sete chaves e engoli-las depois. Passos. Parece que me perseguem esses esquadrões da morte que me mostram o quanto tenho de fraco, o quanto tenho de torpe, o quanto tenho de nada. Passos que sei que vêm de dentro de casa, mas não os vejo, não há corpos, só os passos cavalgando por dentro, cada vez mais alto, cada vez mais alto... Param. Tranquei-me no quarto, já não me apanham. O que se passa comigo? Não há aqui ninguém, não há, mera ilusão, só ilusão! E um medo tão grande deste medo que sinto, este medo que são todas as estórias que ouvi e me encheram a alma até rebentar, todas as outras que vivi e se esvaem por entre meus dedos ou demoram até me queimar. Aqui ninguém, e no entanto parece que caras indefiníveis se descolam das paredes. Fecho os olhos, tranco-me aqui dentro, dentro de mim. Assim me dupliquei. Um clone de mim vive a vida que deixei de ter. Será que também tem medo? Espreito para baixo da cama, com medo de me ver por lá, olhar o abismo e ele responder. Olhar, e o abismo ser eu. Assim o sei, tal como o soube o poeta: "se eu quisesse enlouquecia...".
 
Virginia Machado

quarta-feira, 19 de maio de 2010


Farmácias

Na sala há vinte pessoas a escrever ao mesmo tempo nunca pensei que houvesse tantas esferográficas no mundo as esferográficas são feitas de zinco e servem para escrever manifestos políticos vendem-se em qualquer farmácia na europa são só conhecidas cinco farmácias nas farmácias termina-se sempre a falar nos cabelos das mulheres comparando-os com as sensações do sétimo céu espirrou Jesus tenho em meu poder um medicamento miraculoso resulta sempre espirro não! Por favor é demasiada electricidade francamente senhor Franklin! A sua viúva feita noiva toda a noite à sua espera! As farmácias caracterizam-se pelos números do tecto são números luminosos de zero a dez consoante o barulho das vozes zero para o silêncio dois para as conversas ténues um para os leves murmúrios nove para o pandemónio e nas paredes a respectiva tradução das conversas em espanhol dialectos hindu e ainda flamengo.

João Belo

terça-feira, 18 de maio de 2010

Palavras Versadas


O BEIJO DE RODIN

não quero fazer filhos
sobre desejos adicionais
e tardios, desejos sobre a tela tardia da tarde,
desejos sobre o azul infindável
de boas razões indesejáveis.
não quero desejos de desejos,
desejos que retiram desejo a desejos de
tempo raso
e de feitio de auto-pertença e
leves contradições sem alarme e gafanhotos.

não é em vão que
o beijo de rodin é de pedra.

Sylvia Beirute

sábado, 15 de maio de 2010

Crónica Benzodiazepina


A Líbido Em Carne Crua

Há algo de legalmente libidinoso, e ainda assim passível de ostentação pública, na degustação de um bife com pimenta, ou um steak au poivre, a meio do dia. Em tempos de crise, almoçar fora no dia-a-dia é um luxo. O jantar ganhou em glamour, e em prioridade no rol das coisas supérfluas, o que sobra num orçamento limitado para a rúbrica “comer fora de casa”. Almoçar fora é desperdício, jantar fora é terapia que nos faz bem à alma. Concordo. Que remédio. À noite há mais tempo para tudo e o dinheiro parece mais bem empregue.
Não duvido que em breve adiramos todos à prática de outros países do centro e do norte da Europa, tal como nos EUA, em que se reduziu o período do almoço para meia hora, para comer uma “bucha” e vamos lá despachar o trabalho para ir mais cedo para casa.
Por isso, escaparmo-nos a meio do dia, para esticar a hora de almoço até ao limite obsceno das duas horas e mais um quarto… isso pode ser pecado. E pode ser mortal se comermos um bife ensanguentado, trincarmos as pimentas todas a que temos direito, acompanharmos com um tinto e sairmos do restaurante um bocadinho tontos e a pensar que o dia só pode vir a acabar lindamente, se a meio já vai tão bem…
E assim, enquanto comemos com gula o nosso bife apimentado, descalçamos os sapatos, esticamos os dedos e as pernas, sorrimo-nos, sentimos que a nossa líbido é maior que a da vizinha e, sobretudo, que a dos colegas que ficaram no refeitório ou levaram a marmita com o resto do jantar.
Não me espantaria, pois, que dentro de algum tempo, “um bife com pimenta por mês, ao almoço” comece a integrar a ementa das prescrições dos médicos da psique…

A.S.

sexta-feira, 14 de maio de 2010


As above, so below

Principle of Correspondence (from the Emerald Tablet of Hermes Trimegistus)

A partir da segunda estrela da direita, sempre em frente, até encontrares a madrugada, dizia Peter Pan. Não há que enganar! Referi eu baixinho para com os meu botões. É só ter cautela, não acordar os piratas, fintar o crocodilo, ter bons pensamentos e... up, we go! Porquê temer o que nos parece fácil? Como se não o merecêssemos. Sim, merecemos, e aquilo que nos parece bom e fácil poderá ser apenas aquilo que a nossa natureza profunda reclama como adequado. Não me refiro ao "circo dos sentidos". Esse providencia-nos os pólos opostos, electrizantes: que à semelhança do malabarista temos de aprender a domar. Nesse circo, o da vida, não nos podemos dar ao luxo de não conhecer os bastidores, de não servir um público até o superarmos, ou nos superarmos. Não nos podemos dar ao luxo de não conhecer o palhaço sem pintura ou máscara. Temos que ir aos confins dos baús, erguer e desmontar a tenda, contar os tostões e partir. Podemos então seguir caminho com a disposição de um certo palhaço que morreu com um "sorriso ao pé das escadas". Henry sabia. Sabia do poder da música, do poder da cor, do calor anexo ao cheiro das pipocas, do apelo pelo exótico, do vício das palmas, da adição pelo reconhecimento e do poder enganador da falsa liberdade.

Lucinda Gray

quinta-feira, 13 de maio de 2010


vida animal

sou do tempo em que os animais sonhavam. nem sempre
sonhar cegou como um cancro silencioso. sou do tempo,
como outros são de alguém com muralhas ou de um lugar
ao qual inventaram fome. peso aproximadamente 37 gramas
na colher com que deus rapa as cidades nos dias em que a
fé insaciável corre perigo. já amei os animais em contraluz.
e um animal que podia ver-se claramente. sonhei-o no limiar
do apodrecer furtivo das carnes. já descarnei o amor com
o cutelo das palavras. afiei os gumes lustrosos do silêncio
na pedra dos ossos. o sangue cristalizando à solidão. e era
noite cortante no poço da memória quando o ventre azul
das nuvens se precipitava no espanto agoniado das asas. já
me banqueteei na intangível estupidez ufana dos anjos. eu
já me perdi. atirei pedras ao coração quando ninguém via.
já estive ocupadíssimo à espera de amanhã. sou do tempo
que nunca chega. sou da espécie de fantasmas que se senta
no sentido inverso da marcha dos transportes. já vi a vida
andar para trás, acreditando haver tesouros lá no fundo das
crianças. conheci pela primeira vez o som da mão quando
me agarraste pelo poema. perdi tudo na reviravolta violenta
do horário de saída do coração. eu sou do tempo em que os
animais já não arranjam trabalho. com uma mão irrompo no
peito próprio e sustenho o coração para saber o que foi. o que
fui. sou da estação em que é fria a reencarnação da mentira.
havia animais debatendo-se convulsivamente como um músculo
de verdade, a morte luzia no escuro quando sonhavam. na mão
restante tenho força para derrubar qualquer animal sorrateiro
aproximado do avesso que sou. do tempo em que cada palavra
se vergava no dealbar da extinção para o nascimento da seguinte.
sou do tempo em que animais perdidos conheciam a posição exacta
da própria ausência. falavam vagarosamente, como se estivessem
para chegar. como se o passado fosse um instinto de sobrevivência.
como se não fossem do tempo. rumina silenciosamente, regurgita
silenciosamente

Bill EnGates

quarta-feira, 12 de maio de 2010


Woman seated on a bench

Quando cheguei ao jardim ela já lá estava, como sempre, sentada no banco por baixo do acer, a olhar para mim. Não fui logo ter com ela. Passei a noite a ganhar coragem e não consegui. Tremeram-me as pernas. Eu sabia que era aquilo que queria, sabia que era inevitável fazê-lo naquele dia, mas, aquele olhar entregue, tão calmo, tão completamente despido, continuou a assustar-me. Segui em frente, como sempre fiz ao longo destes últimos dois meses e meio, até ao lago, até à esplanada, onde a podia ver de longe a olhar quem chegava, sem que ela me pudesse ver a mim. Bebi um chá de cidreira. Li mais um conto do livro que comprei para o disfarce. Fumei um cigarro e pensei: Porque não? Levantei-me. Dei os passos certos. Contados foram trinta e oito. Por volta do vigésimo quinto, já sabia a resposta. Ela percebeu. Não chegámos a abrir a boca, nem demos as mãos. Ficámos ali sentados, no banco por baixo do acer, a olhar para quem entrava e saía do jardim.
 
Duarte

terça-feira, 11 de maio de 2010

Palavras Versadas

Vivo-te

Vivo-te numa melopeia rectangular
Entre dois ais perdidos
Como se eu fosse a terra e tu a noite
Numa quimera de sentidos
Em tons de ameixa carnuda
Com as mãos abertas os olhos cerrados

Irrespiravelmente preenchida
Entre o teu corpo irrequieto

Quedo-me por omissão
Do calor indelével que quero
E que tu já não tens

Berenice Greco

domingo, 9 de maio de 2010

sábado, 8 de maio de 2010


Numa Nuvem De Cores

Uma gota, apenas uma gota de água, basta para fazer uma nuvem. Num céu vazio e nu cabem muitas nuvens, muitas gotas de água. São águas, são nuvens, são anjos, que sobem ao céu e o fazem desabar corrente. São mares que vão e voltam. Rios, lagos e montanhas que os conduzem direitos ao céu. É a terra inteira lavada e mais a lua, de cara alevantada, água forte a escorrer pelos caudais, a lavrar sulcos na terra - regos de lágrimas cavados até ao sal, para apascentar rebanhos de homens-animais.
O verde, todo ele é nuvem. Nós somos nuvem. Somos árvore e azul. Somos o verde e somos o branco. Somos a ausência e a cor dessa mesma nuvem, mescla mar de todas as cores imaginadas. Somos o arco-íris metafísico, a luz existente aquém e para além dos cromatismos. Somos água. Somos água vertente. Somos margem e rio, inundação até ao próprio limite.
Provamos ser mar e divagamos, por entre vagas, navegamos até um porto onde os barcos nunca atracam e estão sempre a partir. E ficamos por lá, perdidos, de olhos cansados, no adeus da hora partida. Sentimos nela o reencontro, uma parte que não se sente sentida, apenas caminho para chegar, para ser e voltar a zarpar. Passamos pelo mundo e não passamos, vagueamos farrapos arrastados para um céu, que sentimos – sempre perto – e onde nunca chegamos.
Em qualquer dia previsto humanidade somos ser, no íntimo centrípeto do próprio ser, tentamos mudar (mudando) o mundo que somos e caímos em queda fútil no fundo do dever ser. Somos vida sobre-vivida quando apenas queremos ser afecto, água límpida, nuvem tombada, ao brotar de si própria; ilusão que se faz e se desfaz no céu e desaba na terra sobre as flores. E desaba connosco, intensos, porfiando até aos frutos, passando fios pelas nossas mãos cansadas de apartar, de espremer a alma até ao sumo dos desejos que sorvemos vãos.  As torrentes são águas abatidas sobre as nossas cabeças vagas, cadeias de elos ligadas pelos corpos nossos mergulhados, grilhetas apertadas por desejos nossos. Tão cumplíces e chegados, como os nossos beijos – nossos.

Joshua M.

sexta-feira, 7 de maio de 2010


Maternidade

Só mais um café. Mais uma migração tortuosa e hipnótica pela estupidez colectiva. Mais um dia queimado no holocausto vermelho do inútil. Mais um almoço tomado em pé, apertado com outros seres desalmados em manjedouras cerâmicas. Mais um telejornal e três dezenas de apocalipses que se sucedem como ejaculações precoces. Mais uma noite de sonhos de sexo mecânico e rotineiro. Só mais uma dentada, só mais um gole de banalidade.
Não tens mais espaço. Vomita a tua alma que só te está a fazer peso! É ela a causa dessa sensação de tristeza, de que mereces mais do que isto, de que não pertences aqui. Sem ela, tudo ficará bem. Talvez não fique bem, mas também não ficará mal. Talvez fique mal, mas já não te importarás com isso.
Só mais uma dentada... só mais um gole...
 
Jonathan Strange

quinta-feira, 6 de maio de 2010


Fogo-fátuo Arde

Fogo-fátuo arde-me no peito, por azul o dizem frio. Arde, como a mais carmim de todas as labaredas, mas é azul. Azul petróleo. Misto de verde e azul. Fruto da combustão da morte que exala dos pântanos. Sorte que me faz amar o nevoeiro. O mesmo, aquele, que todos, quase todos, salvo os Sebastianistas, temem. Amo em azul esse nevoeiro, que procuro pintar ao meu redor. Protector natural, envolvente, como um pai carinhoso. Nevoeiro que me protege da metade divina que não sou. Não possuo. Fogo-fátuo arde-me no peito e amo o nevoeiro.

Lucinda Gray

quarta-feira, 5 de maio de 2010


Até O Vento Tem Esperança

Não foi por acaso que nos encontrámos naquela encruzilhada.
Houve mão de tudo: destino, acaso, coincidência, dela, dele, dos semáforos, e até das luzes intermitentes que nos cegaram na hora de mudar de direcção.
A dado passo, por um momento, o vento roçou a tua boca, deixando um rasto de desejos no porvir, uma pele por sentir.
Não há acasos sem razão,
Não há aquela surpresa, sem explicação.
A falta de fé é um corpo apertado num corpete justo, entrelaçado com cordéis de veludo maciço.
Há fé em tudo... até num prazer orgástico.

Anja Rakas

terça-feira, 4 de maio de 2010

Palavras Versadas


cavalo-faísca

debrucei-me sobre as paredes invisíveis, provavelmente
quatro que irrequietas observam
o homem pousado

por cada deus com fome há sempre um filão de tristeza

de que matéria será feita, pensei, a eutanásia azul
que usam para encimar os muros
desta cidade malsã?
a minha própria voz cimentada até ao rachar
da cabeça
abriu-se em tons agudos como um tecto indomável
e na antecâmara melódica
obscura do desespero
cri ver à solta a clavícula despenteada de um gato doce
que afinal
se subtraíra à lista de extinções em que ninguém mais acredita
— pudera ser uma crina voadora ou qualquer
outro osso de vento

para mim a fé é sempre com dois cubos de açúcar, obrigado

é tudo mentira
disse-me a vizinha do cotovelo do lado
enquanto revolvia as pedras preciosas com o coração de pau

apaixonei-me novamente pela solidão

um fósforo antes alguém se atirara pela janela
e eu vi. cerrando o covil absurdamente longo
dos olhos
vi claramente
o meu espaço de arder


Bill enGates

domingo, 2 de maio de 2010

NO DIA DE TODAS AS MÃES... II


A Palavra-Mãe

A última vez que te vi estavas ao fundo da estrada do fim do mundo, fazias-me adeus e sorrias, como sempre sorrias quando me falavas das tuas quimeras, dos teus sonhos, que afinal eram sempre os nossos. Resta-me hoje vincada na memória a visão dos teus olhos, de pétalas abertas a dar mel em flor, quando te enlevavas no entusiasmo da palavra que fazia aprender. Foste o começo e o fim do mundo que para mim teve sentido. E no fim de tudo, restou-me começar de novo desde o início de um outro mundo.
Nos largos dias da minha vida estiveste sempre lá, em cada história, em cada acto, em cada realização – eras ponte erguida para todas as travessias, barco em quilha para cortar todas as marés. Eras conforto nas horas perdidas, falavas à minha tristeza com palavras-alegria, ao meu desespero com palavras-coragem. Ainda sei contar as horas repousadas sobre as tuas histórias, cheias de palavras-bálsamo, de palavras-ensinamento, de palavras-afecto, em que os heróis eram tristes mas valorosos e o final era sempre justo e redentor. Sabemos de antemão que todas as histórias têm um epílogo, mas a nossa história nunca acaba, porque nunca hão-de acabar as histórias iguais à nossa.
Antes de cada passo, lá estavas ao lado das dificuldades do trajecto e caminhavas comigo, sempre os dois de mãos enlaçadas, ensinando-me que se enchesse o peito de afeição poderia flutuar, até talvez voar sobre todo o mal do mundo. E assim lograr a travessia: vencer qualquer vereda por mais íngreme e pedregosa que fosse; ultrapassar qualquer obstáculo por mais alto e firme que se erguesse. Ensinaste-me que o mundo nunca seria como tu e eu o desejávamos, mas que, tal como os obstáculos e os caminhos árduos, a vida poderia ser vivida se a quiséssemos vencer com a nossa vontade de ser verdade. E que, a vida valia a pena, se um dia ao depormos o nosso coração na balança de Osíris, ao sujeitarmo-nos ao julgamento dos justos, o nosso órgão vital levitasse mesmo já sem a vida que animara.
Deixaste em mim memórias que ostento como sinais de afectos, só elas me atenuam estas cicatrizes com que a vida me sulcou. Marcaste-me à nascença com aquele sinal amuleto que só nós os dois temos, marca de nós mesmos. Essa marca e o teu sorriso, estampado naquela foto, quando me pegaste ao nascer, foram as primeiras recordações de ti, as que guardarei, no cimo da gaveta das boas lembranças, até te reencontrar.
Hoje esperas-me no final de cada estrada, à noite, para me acalentar a jornada com as tuas palavras-amigas, com as tuas palavras-certas. Sabes, sinto tão forte a tua presença quando tu me falas no meio do sono e me apareces placidamente a sorrir no breu desta longa noite. Tu és a primeira palavra que aprendi e a última palavra que direi, tu és a Palavra-Mãe.

Joshua M.

NO DIA DE TODAS AS MÃES... I


A Minha Segunda Mãe

Quando nasci, não era suposto ser a hora de nascer. Nasci antes do tempo e de certa forma extraordinariamente contrafeita. O resultado era previsível: uma bebé difícil. Recusava-me determinantemente a comer. A minha mãe, que tinha ficado num estado físico deplorável, contava com a preciosa ajuda da “Lalá”, empregada para todo o tipo de serviço e ama das suas cinco filhas. Lembro-me do suplício, uns anos mais tarde, de passar horas a fio em frente a um prato de sopa, com a Lalá, que ora dançava, ora brigava, ora contava histórias e, quando esgotava quase todas as artimanhas, recorria ao último trunfo que tinha na manga: lá bem do alto da sua enorme generosidade e empenho, atirava-se para o chão como se fosse um saco de batatas e encenava uma morte eminente, caso eu não engolisse umas quantas colheres de sopa. Lembro-me que a olhava incrédula, ali estirada no chão, a tremelicar, enquanto balbuciava: “ai, Jesus! Tem de comer a sopa, senão eu morro!”
Os seus timings eram perfeitos, porque arrastava a farsa até o meu cepticismo ceder e quase perto do choro eu lá ia emborcando umas quantas colheres da odiosa mistela - não fosse o diabo tecê-las e eu ficar mesmo sem a minha preciosa Lalá.
A semana passada recebi uma chamada do lar de idosos onde vive actualmente. Com 87 anos, deu entrada no hospital com uma grave infecção da vesícula, tendo sido operada, com elevado risco de vida. Enquanto decorria a operação, eu e a minha mãe aguardávamos na qualidade de familiares numa pequena sala perto do bloco. E não pude deixar de dar por mim a dizer para mim mesma: “Eu como a sopa toda, Lalá! Não morras!”

Lucinda Gray

sábado, 1 de maio de 2010


Aquelas Palavras

Aquelas palavras. Soam-me num baque surdo, ainda, na minha memória, uma gaveta velada por espectros do passado. “Ce n’est point dans l’objet que réside le sens des choses, mais dans la démarche." Saint-Exupéry que me perdoe, mas o olhar de Brigitte ao som destas palavras, naquela tarde tórrida de Julho, deixou-me a transpirar. Até as paredes cinzentas da sala de aula insípida do bafio se tornaram fervorosas e um odor a desejo e paixão carnal invadiu-me as mãos, a boca, os sentidos. Sugava-me numa pulsão incontida. Os olhos dela penetraram nos meus, clamando um ardor desesperado de ternuras irreais. Sorriu fugazmente num misto de provocação e insinuação que me fez antever o frémito da loucura. E deixou-se entrever, em contornos esboçados de um decote cinzelado por mão de artista, aquela Afrodite que se oferecia num silêncio de emoções e num grito de sentidos. Eu imobilizara, entretanto, com a percepção desse momento. E desesperava com a compostura de um cárcere. Ela continuava a lançar um olhar quente que me gelava os nervos sensitivos, enquanto Saint-Exupéry insistia em sobrevoar os meus pensamentos, numa ânsia estranhamente centrífuga.
Nem a perspicácia de um Holmes poderia desvendar as razões que me aprovaram à disciplina de Francês nesse dia.
Agosto. Ardente como as nossas bocas e mãos sequiosas. A tarde, cúmplice dos amantes, passou-se esquecida a beber o sol no meu terraço branco, em homenagem ao dolce far niente. Numa candura de jovem imberbe perdida há muito, de tronco desnudado, eu sorvia nervosamente uma limonada gélida quando Brigitte parou em mim o seu olhar exasperadamente fogoso. Emudecemos ambos. Até que o sol se foi. Como Brigitte.
Nessa mesma noite, moldada por um céu belo de estarrecer, os meus passos levaram-me sem sono ao farol, sentinela esquecida no meio de rochedos insensíveis. Encontrei-a sentada nos degraus da porta, de ar felino e predatório, que contrariava a placidez diurna perante os alunos, envergando um vestido fino vermelho que denunciava as formas dos seus seios, do seu ventre, das suas coxas. O grito da natureza de novo me aturdiu, atingindo-me como um raio. O sangue fluiu. E aquele seu odor mesclado a baunilha e alecrim chegava-me ao corpo. Ela não disfarçou a sensação que experimentou do meu desejo a tocar-lhe na pele. Brigitte era uma feiticeira indomável e dominadora, que me perseguiu nos sonhos durante muito tempo.

Berenice Greco