sexta-feira, 23 de abril de 2010


Palavras Encruzilhadas

Cansados de acordar passamos as imagens pelos olhos, como mel pela garganta dorida, e vemos a nossa vida acontecer porvir por entre as pedras que se erigem obstáculos. Nunca é assim, nunca nada é assim, nunca o presente que será futuro se adivinha no momento do salto no escuro. A vertigem de onde caímos sobre a profundidade cibernética do nosso destino deixa-nos sempre de olhos perdidos no ocaso, num horizonte tão fundo que a bússola apenas nos dá o sentido do norte poético. Tão longe que já não podemos ver as luzes que se acendem e se apagam cruzadas pelos vultos, somente os fantasmas inacabados do que vamos ser, do outro lado da ponte imaginada, permanecerão monstrificados no nosso íntimo.
De qualquer modo, os nossos corpos são sempre pedras, tempo em viagem até ser areia, pó e sobressalto, entre o mar que não ousamos e a terra que prometemos a nós mesmos. Somos linhas rasas na maré, a mesma mansidão, e tanto desejo compartilhado: as nossas bocas cortadas pelo vento sagram desejos que lambemos até à inconsciência de ficarmos lúcidos.Tu sabes bem, este é o sabor das coisas que sabemos.
Por vezes, ao anoitecer, ficamos fado e mergulhamos directos ao fundo de naus quiméricas, onde a realidade é o sal a queimar-nos os lábios e a comer-nos os sentidos aos poucos – e abrimos o peito sentido ao sentir, abrindo as feridas cada vez mais abertas. Outras vezes, sóbrios como deuses, subimos ao céu que fica lá no fundo de nós-imo e arrancamos a pele que vestimos para estar, para nos darmos dados nus à sorte em carne viva. Cortando as mentes fechadas, o suplício dos corpetes trespassa, como espada, cruza o corpo em frémito agudo.
As dores e os prazeres são cravos martelados na razão de ser que não existe, nem precisa de existir, porque o bem e o mal não precisam de razões para existir. Tudo são surpresas no país de Alice e a mesma verdade do outro lado do que somos, maravilhas de que não desistimos para não termos de desistir de nós próprios, equivocados.
No fim da estrada, apertados contra os nossos ossos, caminhamos por um labirinto de cartas e vemos ao fundo o nosso cadáver placidamente acomodado numa sala de chá verde a desfiar os cordéis de Ariadne, sem nunca achar o chão de veludo que o trará de volta. Ficamos, só para nos ver, sorvemos os venenos de Afrodite e aspiramos o ar quente vindo de África, bem juntinho ao chão que beijamos.
Ajoelhamos e só vemos as nossas mãos: as mãos estão por todas as partes, em todas as construções que vão cair, as mãos contam o tempo em rugas e cicatrizes, as mãos são a cega coincidência, entre a vida e os muros que só podemos tactear - são os olhos que perscrutam nos papéis cartográficos a vereda que percorremos e a que vem a seguir. E o prazer está em todas as mãos, fecha-se nas mãos nas mãos que trocam segredos cruzados. 
Um dia, pela manhã, perguntas-me se tenho fé? Digo-te: tenho prazer, orgasmos sobre os papéis que ainda não escrevi.  E esta é a minha fé - uma maldição que se faz de mãos dadas de palavras nas encruzilhadas. São palavras, são ternas e duras palavras, estas que se colam aos corpos fugidios que as cruzam...

Joshua M.

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