sexta-feira, 5 de março de 2010


CONTO CANTO

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Mário de Cesariny, Wellcome to Elsinore

Não sei como começar, ou como dizer, ou acabar por dizer o que tenho em mente dizer, atiçado apenas pela vontade de uma qualquer expressão, não sei, até talvez pudesse cantar uma canção, pois a minha falta de apuro de ouvido daria outro relevo às palavras, cantadas dissonantes da melopeia de fundo. Seriam palavras sobre melodia, palavras isentas de sentido musical, por isso paralelas, nunca se uniriam, em qualquer ponto, à música de que nunca se dissociariam – sempre a eterna imagem dos carris pesados e infinitos a assaltar-nos o espírito.

Podia até inventar comboios que percorressem esses carris, que, mesmo assim, as palavras nunca se uniriam à música; tal como a música, solene e majestosa, nunca desceria ao cavernáculo das palavras – ainda que estas, mal cantadas e a tender para o distanciamento, empobrecessem a divina matemática.

Lembro-me sempre de música e de palavras paralelas quando vou ao médico: disse-me hoje o senhor doutor que devia voltar aos tratamentos, e eu gritei três vezes para mim com os dedos sobrepostos – figas para dar fuga aos meus parasitas mentais – palavras, palavras e mais palavras… Gritei três vezes, como Hamlet, precisamente, até que apareceu uma vizinha, vestida de branco como uma noiva, e me admoestou:

" - Deixe dormir os outros doentes da enfermaria, hoje já não há comboios para o futuro, tem de esperar por amanhã para se querer ir embora!"


Joshua M.

1 comentário:

Duarte disse...

Gostei muito..
Gosto muito de comboios. Adormecer embalado pelo bater das rodas nas uniões mal acabadas. Dar por mim uma ou duas estações mais à frente, parado na plataforma a olhar para trás.
É engraçado, porque ao contrário do texto, belo sem dúvida, a ideia que preenche o meu imaginário não é de linhas paralelas, sempre paralelas, mas linhas que se cruzam, desviadas, nos emaranhados das estações. Talvez porque a vida se faça assim, aparentemente linear, eu goste tanto destas linhas, porque se podem desviar. Como uma alavanca, um botão, um clic de rato, pode decidir o utópico futuro dos passageiros. Eles nem dão conta e já foram desviados; para um túnel escuro ou então, porque a sorte nem sempre é madrasta, para uma paisagem ribeirinha, cavada em socalcos, repleta de luz.