quarta-feira, 10 de março de 2010

Berlim, 28 de Fevereiro de 1923

Era uma das cidades europeias mais modernas e movimentadas, considerado um dos centros culturais de referência na Europa da época. A receber-nos estava um dia nublado, entrecortado por ténues raios de sol que teimavam em espreitar, conferindo alguma luminosidade aos lugares. O Inverno estava no auge e os passeios estavam ainda atapetados pelo nevão caído nos últimos dias, com cristais a luzir debaixo dos nossos passos. Albert viera em negócios, trazia uma agenda bem preenchida e o plano para estabelecer na cidade de uma filial da empresa que dirigia. Normalmente ele viajava só, mas desta vez tinha insistido em que eu o acompanhasse. Já havia alguns anos que estávamos casados e, esta viagem, seria para nós como uma segunda lua-de-mel. Ficámos hospedados num luxuoso hotel, bem perto do centro da cidade, o que me permitiria, sem grandes caminhadas, visitar os mais emblemáticos monumentos do centro e as lojas mais chiques da Alexanderplatz. Estava extremamente curiosa acerca das gentes, queria conhecer a sua agitada vivência e a fauna noctívaga dos kabarett, cuja fama ecoava por essa Europa cosmopolita. Esperava ouvir cantar uma tal Marie Magdalene Dietrich que brilhava nos palcos estrelados da noite e nas telas do cinema incendiava as plateias com Tragödi der Liebe.

Nessa noite, Albert vestiu um smoking e umas calças pretas, camisa branca impecavelmente engomada, com um laço preto e uns sapatos de verniz; por cima um sobretudo de cachemira côr de camelo. Eu optei por um vestido à altura do joelho, cor-de-rosa velho, meias semi-opacas, sapatos de meio salto de camurça pretos; no cabelo de cor preta, curto e muito liso, pus uma casquete; nos lábios apliquei, em forma de coração, o meu batom carmim; por fim, adornei-me com uns brincos e um longo colar de pérolas; e cobri-me com um forte casaco de lã preto para enfrentar as temperaturas negativas que se sentiam ao cair da noite. Após um requintado jantar e um digestivo no foyer do hotel, viera um groom avisar-nos que chegara o nosso táxi. Tomámos assento no banco traseiro e dirigimo-nos directamente à zona de diversão . Impressionou-me o movimento das pessoas na praça e nas ruas adjacentes, magotes de homens e mulheres surgiam daqui e dali elegantemente vestidos, máscaras de felicidade colada nos rostos. O jazz, o foxtrot e o charleston ecoavam por vezes em simultâneo, causando um turbilhão cacafónico.

Assim que chegámos, os porteiros do Kabarett vieram abrir-nos a porta do carro, entrámos numa antecâmara onde deixámos os aconchegos, antes de passar à primeira saleta, onde o ambiente estava ao rubro. Homens e mulheres em trajes elegantes conversavam e riam, os homens fumavam charutos, as mulheres cigarros com boquilha, bebiam Champagne em taças de cristal da Bohemia e brindavam a cada pausa das palavras, com um sonoro prosit. Numa outra sala ao lado, de ambiente mais reservado, para onde resolvi espreitar, notei algumas mesas com bandejas de prata polvilhadas por pequenas linhas brancas e algumas palhinhas em volta. Os homens e as mulheres que entravam, saíam alguns minutos depois em êxtase colectivo. Na sala de baile ao fundo, os casais dançavam freneticamente ao som de Lili Marlene, olhavam-se com uma tentadora sedução, tocavam-se ousadamente e beijavam-se sem qualquer pudor. Absorvidos pelo torpor do álccol e da cocaína, agiam como se apenas eles existissem, sem se parecerem importar com quem ou como desfrutavam do momento. Envolvemo-nos naquela ardente atmosfera de loucura e desejo, entusiasmados seguimos ao sabor dos ritmos, como que atraídos por aquele poderoso íman da música e dos corpos. Finda a noite, resolvemos seguir a pé caminhando pelas ruas até ao hotel, a sentir aquela lufada do ar fresco da noite na cara de ambos. Afinal, ainda sentíamos desejo.

Herta Baüer

Post Scriptum: Avó, quando resolvi preencher com as minhas palavras este diário que encontrei no teu baú, ele parecia-me intacto, mas, ao abri-lo, vi com surpresa que alguèm já tinha escrito nesta última página. Reconheci a tua letra e lá está o teu nome, desculpa, mas li sem querer esta extraordinária passagem da tua vida. Afinal a revolução social já começou há algum tempo. Amanhã voltarei para te contar tudo, como será mais esta noite de greve no campus universitário e de como vamos mudar o mundo. Agora vou para mais uma manifestação...

Melissa Baüer, Paris, 23 de Maio de 1968


M. Jota


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